Tipo Aquilo #72 — G em loop, G em gancho e letras gêmeas
As letras e representações atuais de suas formas históricas
A paleografia é um assunto que chegou há pouco tempo na minha vida e, como vocês puderam ver na edição passada, representou um misto de revolta e tristeza encanto e desencanto com a caligrafia medieval. O encanto vem ao entender melhor o contexto dos escribas da Idade Média e os caminhos para ler e decifrar os documentos da época; já o desencanto vem quando alguns dos costumes desses escribas fariam uma pessoa regularmente alfabetizada dos dias de hoje e ciente de normas básicas de acentuação, abreviação e divisão silábica parecer um poço de cultura escrita. Ok, nenhuma dessas regras existia na Idade Média, e isso faz com que essas coisas que causam um pouco de desencanto tragam choro e ranger de dentes desafios para os paleógrafos.
Há pouco tempo, o parquinho do Space Karen elegeu a letra “g” como objeto de estudo do departamento de paleografia moderna do Instituto Banana Preta. A letra virou, segundo acadêmicos do instituto, fonte de consternação, revolta e ilegibilidade porque, em 2023, alguém lembrou que ele tem sim duas formas amplamente aceitas e usadas mundo afora. Como eu adoro pelo menos uma dessas formas e vou defendê-las até o fim, essa edição prolonga um pouco meu fio da época sobre o assunto (pois é, eu também não ando bem da cabeça há um tempo) e estende o assunto a outras letras que têm (ou tiveram) formas alternativas.
Já que falamos do g, comecemos por ele então. Em algum momento do ensino médio, você aprendeu sobre a civilização fenícia… ou, pelo menos, que o alfabeto usado por eles é considerado a origem dos alfabetos modernos, incluindo o romano/latino que a gente usa todo dia. Já no alfabeto fenício, usado desde 1000 a.C., a letra “g” estava presente como a letra gīmel, representando um camelo. Dessa letra gīmel, veio a letra grega gamma (Γ), da qual originam-se tanto a letra “g” moderna quanto a letra “c”. Quando os etruscos adotaram o alfabeto grego, a letra “g” passou a ter som de “c”, mais adequado à língua etrusca. Por fim, os romanos adotaram o alfabeto etrusco, mas trouxeram de volta a letra “g”, necessária para a pronúncia correta de palavras de origem grega, fazendo dela a sétima letra do alfabeto.
Até essa época, quando falamos da letra “g”, ela tinha apenas a forma maiúscula “G”, já que até os anos 780 as letras minúsculas não existiam. O desenvolvimento das escritas unciais a partir do séc. V é o primeiro passo para a mudança de desenho das letras que, mais tarde, tornariam-se as letras minúsculas. O “G” torna-se mais sinuoso e cursivo, mudando de uma barra superior com uma espinha sinuosa para um círculo ligeiramente menor que a altura das demais minúsculas acompanhada de uma cauda partindo da direita para a esquerda, dando meia-volta e fazendo uma volta sob o primeiro círculo. Esse é o roteiro básico para o desenho do “g” minúsculo, o loop g. A influência da caligrafia humanista italiana, em tempos de renascimento, foi determinante para que o formato tradicional do “g” fosse predominante nas fontes abertas após os tipos criados por Gutenberg… o que não deixa de ser uma ironia por ele ser o mais antigo e, atualmente, o que causa mais estranheza.
Já o “g” minúsculo alternativo, o que parece um gancho ou anzol (em inglês, hook g), começa a dar as caras com o desenvolvimento das escritas blackletter, que simplificam as formas das letras, frente a uma demanda crescente de novas universidades por livros. A mudança mais notável é a porção inferior da letra sendo formada a partir da haste direita da letra, enquanto o “g” carolíngio começava a partir do lado esquerdo. Por alguns anos, as letras góticas preservaram esse aspecto sinuoso da letra “g” forçando um movimento para a direita na haste que alongava o loop inferior. Com o passar dos anos, esse movimento para a direita na parte inferior da haste ficou cada vez menor no blackletter, e foi deixado de lado nas escritas chancelerescas (itálicas) e nas cursivas copperplates, feitas a partir da pena flexível.
Acabou que, por volta de 1820, quando foram criadas as primeiras fontes tipográficas sem serifa, elas tornaram-se abrigo tanto para o “g” minúsculo sinuoso tradicional quanto para o “g” em gancho vindo do itálico e do cursivo, e as duas formas estão presentes até hoje. Enquanto algumas famílias tipográficas sem serifa tendem a usar o “g” em gancho, como Arial, Helvetica e Akzidenz Grotesk, outras com relação de contraste mais evidente acabam adotando o “g” em loop, como a Franklin Gothic e a America, da Grilli Type, que foi usada como base para a fonte proprietária do Twitter, fonte desta e de outras confusões. A Futura, por sua vez, conta tanto com um “g” em gancho tradicional e, em algumas distribuições, um “g” com loop geométrico.
O “g” não é a única letra que causa discórdia; a letra a também é uma fonte de dúvidas por causa de suas duas possíveis formas. Ela também tem sua ancestral no alfabeto fenício como a letra āleph, cuja forma triangular representava uma cabeça de boi, passou pelos gregos, etruscos e romanos, e chegou aos dias atuais sem muitos conflitos quanto ao seu som e sua função. No entanto, a letra “a” também é protagonista de eine große Konfusion a partir do surgimento das letras góticas, as blackletter: a forma da letra “a”, herdada de sua contraparte maiúscula, manteve-se até as minúsculas carolíngias, em que a haste direita formava um triângulo junto com o bojo à esquerda.
A mesma simplificação de formas das letras góticas que mudou o “g” também fez o “a” deixar de ter uma forma triangular e tornar-se mais compacto e quadrado, semelhante à letra “q” sem o prolongamento inferior da haste direita. Nos primeiros estilos blackletter, como a textura e a precisus, o traço diagonal que dava origem ao bojo da letra foi mantido, mas nos estilos fraktur e bâtarde, por exemplo, a letra “a” foi simplificada, fazendo com que o bojo fosse a forma final da letra. Essa tendência foi repetida nas letras itálicas e cursivas, fazendo com que as fontes produzidas atualmente optem pelo “a” redondo (também chamado single-storey) em suas formas itálicas e o “a” tradicional (double-storey) nos estilos regulares. É comum, também, que algumas fontes utilizem o recurso de caracteres alternativos do OpenType para ter as duas formas de “a” e “g” dentro da mesma fonte, a gosto do usuário.
Antes de irmos para outros exemplos, vale uma palavrinha sobre porque essa variedade de formas para “a” e “g” não comprometem a leitura, ou mesmo o reconhecimento dessas letras dentro de cada palavra; conforme desenvolvemos a leitura, deixamos de fazer uma leitura linear do texto e passamos a completar espaços com palavras que “encaixam” nestes espaços, por termos visto as mesmas palavras repetidas vezes ao longo da vida. Além do mais, ao ler textos longos, é comum que a gente pule direto para palavras mais longas, que provavelmente precisarão mais da atenção, e deixe pequenos acessórios como artigos, pronomes e conjunções pra trás. Esses movimentos de varredura por palavras maiores, e provavelmente mais relevantes, são feitas em sacádicos, fazendo com que a leitura seja mais rápida do que uma leitura letra-por-letra. Como as formas possíveis para “a” e “g” possuem perfis semelhantes, usar tanto uma forma quanto outra não traz prejuízo para a leitura.
Outras letras já tiveram formas alternativas históricas, mas que caíram em desuso. O s longo (ſ), que já teve uma edição inteira pra ele por aqui, é um desses casos; usado com certa constância até o séc. XVIII, ele fazia com que a letra “s” funcionasse de forma análoga à letra grega sigma (σ/ς), com a forma longa usada no início ou meio da palavra e a forma sinuosa no final. Pra não dizer que o “s” longo morreu completamente, ainda há um resquício dele na letra alemã eszett (ß), que é essencialmente uma ligatura de um “ſ” com um “s” utilizada em palavras alemãs como “fußball” (futebol), “straße” (rua) e “groß”/“große”.
Por um breve período, a letra “r” também teve uma forma gêmea semelhante à sua contraparte maiúscula “R” sem a haste à esquerda e na altura das demais minúsculas. O chamado half r era usado sempre à frente de letras com formas redondas à sua direita, como “or”, “br” ou “pr”, e a origem dela remonta às letras capitais quadradas usadas a partir dos anos 400, em que o “R” tinha uma haste extremamente fina, comparada aos demais traços. Apenas na formação das letras insulares e, posteriormente, nas minúsculas carolíngias, que o “r” minúsculo que conhecemos atualmente surgiu. Dessa forma, as escritas blackletter aceitavam as duas formas da letra “r”, mas sob a regra de usar o half r junto ao bojo da letra anterior. Se forçarmos um pouco a barra, também tem a história das letras “u” e “v” que, por muito tempo, foram a mesma letra com formas posicionais — se a letra aparecesse no início da palavra, era utilizada a forma “v”, e nas demais a forma “u” era preferida.
Parece um certo preciosismo comentar sobre as histórias dessas letras, supondo que daqui a alguns séculos elas ainda serão as mesmas. Falar de como essas letras mudam diz respeito também à nossa relação com a escrita, cujas ferramentas atuais são bem diferentes das penas da caligrafia medieval. A forma com que organizamos dados, pensamentos e ficções em nossas interfaces de escrita lembra muito pouco o caráter documental que a escrita tinha no medievo. Também muda, conforme os ventos, o quanto a sociedade entende-se como pragmática, focada em padronização e resultados; ou centrada no bem-viver e num futuro mais aberto e inclusivo para todas as formas de letras.
Recomendações
🎧 Podcast: Estudos Clássicos em Dia – Civilização Fenícia, com a professora do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP Maria Cristina Kormikiari contando sobre a história da civilização que formatou o alfabeto que deu origem ao nosso alfabeto atual.
🎥 Vídeo: Khan Academy – História do Alfabeto, um breve resumo da história da formação do alfabeto romano.
🔗 Link: Shape Type, (em inglês) um jogo que testa sua habilidade de acertar as curvas dos contornos de letras.
🇧🇷 Fonte brazuca: Gal Gothic, de Daniel Sabino.
Nota do editor
Eis que, nesta semana, vocês têm a oportunidade de ler textos deste que redige-vos não uma, mas duas vezes — e, ainda, pelo preço de uma. A convite da Flora de Carvalho, eu escrevi pra Revista Recorte sobre tropos e estereótipos de etnia e gênero em tipografia, expondo a natureza racista e sexista de algumas fontes e aplicações de fontes de acordo com o contexto.
“Mas Cadu, porque não escrever sobre isso aqui mesmo?”
Primeiro, porque é pra fazer vocês irem lá na Recorte e conhecer os textos de mais um punhado de gente muito melhor que eu. Segundo, porque é um texto longo demais para este cantinho aqui. Terceiro, porque é um conteúdo relevante pra todo designer gráfico e que merece exposição e alcance que a Recorte oferece. Quarto, porque um texto inédito é minha forma de prestigiar o trabalho da Flora, da Dominique Kronemberger e todo mundo que mantém a Recorte de pé. (=
Escrito em 100822.11