Tipo Aquilo #29 – O “s” longo está morto, viva o “s” longo
O congreſſo da ſociedade de deguſtadores das ſalſichas ſuecas, em inuſual conſenſo, recuſou com ſatisfação a ſubſtancial propoſta de ſaborear guloſeimas eſcandinavas a cuſtos inſignificantes ſob a circunſtância nefaſta de manifeſtar ſolenemente sua eſcolha propenſa aos petiſcos noruegueſes.
Tá insuportável, né? Eu entendo. Pode ser ainda pior, se o seu cliente de e-mail tiver algum problema com codificação de texto e mostrar algum diacrítico esquisito ao longo dessa edição. Se acontecer, me avise. ;)
O abandono do “s” longo foi daquelas raras vezes na história em que linguistas e tipógrafos concordaram que, ao invés de lidar com várias regras e exceções sobre o uso de duas formas da mesma letra, é mais prático lidar apenas com uma. Houve outras vezes em que a indústria tipográfica ajudou a moldar a ortografia, mas por ora, vamos para a história dessa forma antiga do “s”.
Embora a letra “s” tenha origem fenícia, a forma que ela tem hoje vem das letras usadas no império romano. Enquanto o “s” curto e o “S” vêm das letras imperiais, utilizadas em monumentos gravados em pedra, o “ſ” vem das letras cursivas, utilizadas no dia-a-dia e até em alguns documentos oficiais. Ler documentos escritos em cursivo romano é uma atividade restrita à paleografia, mas algumas letras já tinham aparência semelhante às letras romanas atuais.
A letra “s” tinha aparência semelhante à letra grega gamma (“γ”), feita com um movimento que começava na altura das letras comuns, fazia uma volta na linha de base, e subia novamente até uma altura superior à das outras letras. Por isso, a representação do “ſ” parece um “f” com a barra cortada; na verdade, a barra cortada é o início da escrita do “s” longo, em que o lápis desce até a linha de base no sentido vertical, e depois sobe pelo mesmo caminho até a altura das ascendentes.
O “ſ” foi usado até o séc. XIX; por isso, quase todas as escritas contemplavam o “s” e o “ſ”, assim como as primeiras fontes tipográficas tinham tipos para as duas formas. Cada língua tinha sua forma de lidar com essa ambiguidade, embora algumas línguas eslavas tratassem-nas como letras diferentes. Em línguas latinas, era comum que o uso do “s” fosse restrito à ultima letra de cada palavra, e as demais fossem “ſ”; de certa forma, a letra sigma do alfabeto grego funciona de forma análoga, tendo uma forma intermediária (“σ”) e uma forma final (“ς”).
No entanto, o “ſ” já não é mais usado em textos comuns em nenhum idioma há muito tempo, e a morte dele geralmente é creditada a dois grandes nomes da história da tipografia: François-Ambroise Didot e John Bell. O primeiro, francês e pai de Firmin Didot, decidiu não gravar mais tipos para o “s” longo em 1781, encorajando outras fundições a seguirem o mesmo caminho. O segundo, inglês, encomendou à fundição de William Caslon uma fonte tipográfica sem o “s” longo em 1788, utilizando-a em seu jornal e demais publicações. Ambos deram força a uma tendência vista pela primeira vez na Espanha, em um volume impresso por Gabriel Ramirez em 1761, e seguido por Joaquín Ibarra dois anos depois.
Após o início do séc. XIX, o uso do “s” longo foi progressivamente encerrado. Nos Estados Unidos, o uso mais famoso do “ſ” está na United States Bill of Rights de 1789, grafando o primeiro “s” de Congress; apesar disso, o país recém-independente foi um dos primeiros a abandonar o “s” longo. Um exemplo desse abandono repentino está na Guerra Anglo-Americana de 1812, em que o documento de declaração de guerra das ex-colônias usa apenas o “s” curto, e a resposta britânica ainda utiliza o “ſ”. Contudo, novas fontes eram vendidas apenas com o “s” curto, e os poucos volumes ainda impressos com o “ſ” até o fim do século vinham de gráficas antigas.
Dessa forma, o “s” sinuoso estabeleceu-se como a única contraparte para o “S” maiúsculo. Alguns resquícios do “s” longo ainda existem, como a letra eszett (“ß”), comum no idioma alemão; o símbolo de operação matemática de integral (“∫”); e o caracter esh (“ʃ”), usado no alfabeto fonético internacional, que representa o som fricativo que faz em vogais nas palavras chave, queixa ou coxixo. Algumas línguas que usavam o “ſ” como uma letra distinta do “s” substituíram-na por um “s” curto com diacrítico. No fim das contas, para o bem da simplicidade, o “ſ” ficou para a paleografia e o “s” para o nosso uso cotidiano. Assim como o “g” caligráfico, o “s” é uma das letras mais odiadas difíceis de trabalhar para designers de tipos, mas isso é assunto pra outra edição e eles que lutem. ;)
Recomendações:
🎧 Podcast: IconicCAST #102 – Desenhando Letras, com Henrique Lira, Aline Kaori, Gui Menga, Isabella Lião e Lygia Pires conversando sobre a atividade e ensino de lettering e caligrafia.
🎥 Vídeo: Exploring the 18th Century: the Long “S”, que conta sobre a história do uso e abandono do “s” longo no séc. XVIII.
🔗 Link: Quirks of Old Documents: Spelling, Tildes, Ampersands, and the Long S, um apanhado de recursos caligráficos e tipográficos utilizados em documentos antigos.
🇧🇷 Fonte brazuca: Thelo, de Tassiana Nuñez Costa.
Escrito em 98232.89