Tipo Aquilo #54 — As letras recentes
Tem duas coisas que eu adoro assistir a um historiador explicar, reclinando a poltrona e pegando uma pipoca. A primeira delas — não muito séria, apenas por ser chato e causar constrangimento desnecessário — é o costume, no meio acadêmico, de usar o futuro do presente para eventos do passado seguintes a outros eventos do passado em destaque. Algo como, “Constantino se converte ao cristianismo em 312, mas só em 325 ele vai ordenar a destruição de templos pagãos”. Não, ele não vai… ele já ordenou, já até morreu e não pode nem desordenar. É passado, aceita!
A segunda — essa um pouco mais séria — é a discrepância das versões portuguesas de certos nomes. Um exemplo bem estranho é quando algum James aparece com o nome “traduzido” como Tiago; tal como o pequeno James Stuart, que ainda com 13 meses de idade e cara de joelho foi proclamado o rei Tiago VI da Escócia. Outra “tradução” que puxa o assunto de hoje é o dos Wilhelms e Williams que aparecem aqui como Guilherme. Para entender como um W vira um G ao longo da história, a gente precisa falar de algumas letras que estão conosco há não tanto tempo assim. O Tipo Aquilo de hoje é sobre as últimas letras a entrarem no nosso alfabeto latino.
Já que falamos de Constantino, voltemos um pouco ao Império Romano em 395, quando o imperador Teodósio morre e os impérios do Ocidente e do Oriente nunca mais teriam (ou terão, se você for historiador) um único monarca. Essa divisão ajuda a explicar porque, do lado oriental da Europa, é comum o uso do alfabeto cirílico, e no lado ocidental nosso alfabeto é quase o mesmo desde muito tempo, importado das letras usadas pelos etruscos em 600 a.C. Na época, 21 letras eram usadas para escrever o latim como língua oficial do império… só que, a oeste do mediterrâneo, esse império acabou e deu lugar a uma série de reinos com línguas e culturas próprias; com o tempo, as 21 letras do latim seriam insuficientes para essas línguas. Ah sim, as 21 em questão: A, B, C, D, E, F, G, H, I, K, L, M, N, O, P, Q, R, S, T, V e X.
Começar pelo Z é curioso porque, apesar dela ser a última letra do nosso alfabeto, ela não é tão recente assim. Ela vem da letra fenícia zayin que foi adotada pelos gregos como Ζ (zeta) em 800 a.C. e fez seu caminho até as letras usadas no império romano até cerca de 300 a.C., quando deixou de ser usada e foi substituída pela letra G. No entanto, pela influência de palavras do idioma grego que usavam o zeta, o Z voltou da padaria já no primeiro século da era comum, e a forma maiúscula dela foi usada posteriormente para escrever a forma minúscula, ao contrário de sua contraparte minúscula grega ζ.
O Y é outra letra recente pero no mucho, que desde o séc. II já começava a ser usada pelos próprios romanos para escrever certas palavras vindas do Grego, mantendo a grafia da letra grega Υ (upsilon). Após a queda do império, o Y tornou-se uma letra recorrente em várias línguas latinas e anglo-saxônicas, mas nem sempre como vogal. Atualmente, no francês e espanhol, o Y é sempre vogal; já no inglês, ela pode ser vogal em palavras como myth e fly, mas funciona como consoante em laywer, year e yard, representando uma oclusão temporária na pronúncia.
O uso do Y como consoante traz um arcaísmo comum do inglês antigo, quando se fala de estabelecimentos antigos que se chamavam “Ye Olde” alguma coisa e falamos o “ye” como “iê”. Y, nesse caso, é uma substituição à letra Þ (thorn); essa, de origem nórdica (ᚦ, thrus), funcionava como o atual th, mas a grafia do Þ era similar ao Y no estilo blackletter. Quando a tipografia espalhou-se pela Inglaterra, tipos com a letra Þ eram escassos, ao passo em que o Y era onipresente. Por isso, para nós, o “þe” é mais parecido com “ye” do que “the”, e essa confusão virou “estilo”, um capricho quando deseja-se evocar um espírito medieval a uma taverna ou hospedaria, por exemplo. Pronunciar “þe” como “yee” é divertido quando você brinca de LARP e/ou toma hidromel, mas pra fins históricos, “Ye Olde” alguma coisa se pronuncia como “The Old” alguma coisa.
Ainda falando de runas que quase chegaram lá, falemos do wunjō (ᚹ), que deu origem à letra Ƿ (wynn). A história dela puxa outras duas letras que tornaram-se comuns em seu lugar, o U e o W. No estilo de caligrafia uncial, a letra V das capitais romanas tornou-se parecida com o U; por um bom tempo, essas duas formas existiram como apenas uma letra. No inglês arcaico, as duas formas funcionavam de forma análoga ao S e o ſ (“s” longo, que eu já contei a história dele aqui): a forma V era usada no começo das palavras (como em “vpon” ou “vnder”) e a forma U no início ou final (“excuse” ou “haue”). Apenas no séc. XIV elas começaram a tornar-se letras distintas no inglês antigo, e nas línguas latinas a distinção entre seus sons foi consolidada apenas no séc. XVII. Na língua francesa, só em 1762 essa distinção tornou-se plenamente aceita.
Voltando ao Ƿ (wynn), essa letra foi usada na Inglaterra desde o fim do império romano até o séc. VII e XIII, pela falta de uma letra no alfabeto que representasse o som que os povos nórdicos e germânicos escreviam com VV (ou UU). As expedições vikings à região da Normandia fizeram com que o VV substituísse o G em palavras vindas do francês antigo, como em garantia (garant → vvarant), prisão (garden → vvarden) e… um tal de Guilherme da Normandia. Após a conquista normanda da Inglaterra, Guilherme tornou-se o rei VVilliame I e difundiu o uso do VV/UU no lugar do Ƿ. Assim, o wynn perdeu (rá!), e o dígrafo seguiu caminho até virar a letra double u no séc. XIV. Já a banda que até hoje pergunta what is love?, isso é outra história e eu só queria te lembrar dessa música. De nada. ;)
A mudança do VV/UU até a grafia W é consolidada a partir do séc. XVI, quando gravadores de tipos tomam a forma de V’s com pernas cruzadas, feitas por alguns escribas, como a forma ideal de representar essa nova letra. As formas ligadas e soltas do W permaneceram em uso até que toda oficina tipográfica tivesse essa letra à disposição. Sabe o pôster do filme “A Bruxa” (The Witch, 2015)? Embora o tempo em que se passa o filme (1630) já contasse com a letra W em muitas gavetas de tipos, a escrita “THE VVITCH” presente no pôster ainda era comum. A propósito: o filme é legal; menos assustador e cabeçudo do que parece, mas é legal.
Por fim, vem a letra J, que aparece em vários documentos antigos como uma letra I com floreio na escrita de números romanos. O número 43, por exemplo, aparecia como XLIIJ. A primeira distinção entre I e J aconteceu no séc. XVJ (opa, desculpa!), no ensaio do linguista italiano Gian Giorgio Trissino sobre novas letras a serem adicionas à língua italiana. Entre outras propostas, ele estabelecia a diferenciação entre as letras V e U, recém estabelecida no inglês, e as letras I e J. Essas duas diferenciações passaram a fazer parte da língua italiana e espalharam-se pela Europa até, enfim, comporem o alfabeto que lidamos atualmente, sem maiores mudanças desde então.
Até poderiam surgir outras letras, mas os diacríticos existentes acabam resolvendo 99% dos problemas de sons que precisam de uma grafia. Se eu tivesse que apostar em algum motivo para o surgimento de novas letras no futuro, faria duas apostas completamente não relacionadas com sons ou fonemas: representação de identidade nacional e de gênero neutro. Vocês conseguem imaginar o alfabeto sendo diferente de um país para outro? Pois isso acontece no alfabeto cirílico, em que letras possuem grafias diferentes entre países como Rússia, Sérvia e Bulgária. Tem também o eszett (ß), orgulho da Alemanha; o IJ, do qual os holandeses não abrem mão.
Sobre gênero, isso é uma discussão longa e eu quero deixar para vocês terem suas opiniões por enquanto. Os mexicanos Aldo Arillo e Mario García Torres criaram a secte, uma proposta de letra para o espanhol que ocupa o lugar de A e O em substantivos e adjetivos com gênero implícito, e que funciona mais ou menos como o E em “todes” e “alunes”, ao escrever sem especificar gênero. Não sei dizer se a secte ou outra letra com proposta semelhante vai vingar no futuro porque representar gênero textualmente é uma discussão que tem tomado vários caminhos, alguns mais espontâneos que outros. Só sei que algo vai acontecer para a linguagem ser mais neutra na gramática e na tipografia, e os historiadores do futuro que vão se virar pra explicar isso (agora sim um uso correto do futuro do presente). ;)
Recomendações:
🎧 Podcast: mimimidias em prosa #31, com Clara Matheus, Leonardo de Oliveira, Tavo Silva e Jana Viscardi discutindo sobre o uso de linguagem neutra na língua portuguesa.
🎥 Vídeo: History of the Alphabet (em inglês, com legendas), uma palestra da professora e type designer Lynne Yun sobre a história do alfabeto latino.
🔗 Link: Forvo, um guia de pronúncia de palavras em diversas línguas e sotaques do mundo.
🇧🇷 Fonte brazuca: Acarau Display, de Fio Gonçalves.
Nota do editor:
Durante as férias do Tipo Aquilo, entrei com outras milhões de pessoas na ondinha do Wordle e alguns de seus derivados, como o Term.ooo. Aliás, o mecanismo muito inteligente do Wordle de liberar só uma palavra por dia é importante para evitar que certas pessoas descontroladas façam do Wordle um sifão de vida (né, Cadu!). Só por não comprometer a produtividade do mundo, o desenvolvedor merece o valor de seis dígitos pago pelo The New York Times.
O legal de jogar tanto o Wordle quanto os forks em português é comparar a lógica das combinações possíveis de letras em certas posições; por exemplo, é menos comum em português e demais línguas latinas que palavras acabem em consoantes, ao contrário do inglês. Três consoantes seguidas também é algo mais escasso (mas não ausente). Letras como K, W e Y também inserem um grau de dificuldade nas versões em inglês; elas estão nos teclados do term.ooo e Letroca, mas só tornaram-se partes do nosso alfabeto depois da reforma ortográfica. Ainda assim, apenas para nomes de origem estrangeira. Enfim, devaneios, já que hoje o tema foi letras…
Ah sim, na edição passada eu deixei sem essa notinha porque já foi bem grande, mas quero agradecer a todo mundo que se inscreveu recentemente no Tipo Aquilo. Tenho algumas ideias para esse ano que espero darem certo, e até lá… desculpa a bagunça, vivam bem, comam a sobremesa e aproveitem a nova temporada. (=
Escrito em 99782.83
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Este episódio foi escrito por Cadu Carvalho, que também produz essa newsletter, mas poderia passar o dia resolvendo palavras cruzadas. Debora Sales faz a revisão e espera que o Cadu não viva de resolver palavras cruzadas.