Tipo Aquilo 26 – A Divina Comédia da tipografia italiana
Da nossa vida, em meio da jornada,
Achei-me numa selva tenebrosa,
Tendo perdido a verdadeira estradaDizer qual era é cousa tão penosa
Desta brava espessura a asperidade,
Que a memória a relembra inda cuidosa.
Poucos livros são tão importantes para a formação e consolidação de uma língua inteira como a Divina Commedia de Dante Alighieri é para o italiano. Escrito entre 1304 e 1321, a Comédia representa um grande marco para a literatura em diversos aspectos: a estrutura de rima em tercetos que percorre toda a obra é, por si só, um feito impressionante. A escrita do livro no dialeto florentino, em contraponto à maioria das obras escritas em latim na época, foi outro ponto de virada para que a história da busca de Dante por sua Beatriz atravessasse Inferno, Purgatório e Paraíso, e chegasse ao nosso tempo.
O poema de Dante, escrito por amor a Beatriz e por ódio a vários religiosos e políticos, também ajudou a compor parte da mística do cristianismo, especialmente em relação à representação dos mundos liricamente percorridos pelo autor. A influência da Divina Comédia para a literatura ocidental pode ser percebida com todas as centenas de cópias manuscritas e recitada nos centros urbanos da futura Itália nos anos seguintes, e por como ela passou pelas mãos hábeis de impressores que ajudaram a consolidar os tipos romanos que conhecemos hoje. A história de hoje, passada nesse meio-tempo entre a escrita da Divina Comédia e suas primeiras impressões, é digna de um alinhamento exótico de estrelas.
Mais de quarenta anos após a morte de Dante, na comuna italiana de Subiaco, o abade Bartolomeu de Siena dispensou vários monges do Mosteiro de Santa Escolástica, a pedido do Papa Urbano V. Vários conflitos internos e desavenças fizeram o líder da igreja considera-los teimosos e pouco fervorosos. Isso abriu espaço para monges vindos de outros lugares da Europa nos anos seguintes, especialmente da Alemanha. Dos 280 monges registrados entre 1360 e 1515 no mosteiro, 110 eram alemães, enquanto 83 eram italianos e os restantes vinham de outros territórios próximos. No entanto, o mosteiro, situado a 40km para leste de Roma, não foi o único destino dos clérigos alemães na Itália.
No meio do séc. XV, Mainz viveu um conflito armado pela liderança local, poucos anos após Gutenberg imprimir suas cópias da Bíblia de 42 linhas e começar a passar para frente seu ofício. As batalhas iniciadas na década de 1460 fizeram com que clérigos buscassem refúgio em outros lugares; em consequência, clérigos que haviam aprendido a criar tipos, operar prensas e produzir livros estabeleceram diversas oficinas tipográficas em solo itálico. Arnold Pannartz e Konrad Sweynheym foram pioneiros nessa migração, estabelecendo-se no mosteiro de Subiaco em 1464 e trazendo consigo material para a criação de tipos móveis.
Algo digno de nota é que, ao invés de reproduzirem a escrita blackletter alemã, os clérigos produziram tipos móveis inspiradas na caligrafia humanista, em voga na Itália, e nas letras imperiais romanas, que seriam os desenhos de letras mais lidos, estudados e reproduzidos até hoje. Em setembro do ano seguinte, finalizaram a impressão de De Oratore (“Sobre o Orador”), do filósofo romano Cícero. Tão impressionante quanto a rapidez para produzir livros um ano após chegarem a Subiaco, são os registros da época que relatam as cópias de De Oratore de Pannartz e Sweynheym como dotadas de grande qualidade; nada mal para o que, provavelmente, é o primeiro livro impresso na península itálica.
Os tipos criados por estes dois alemães, utilizados no De Oratore e outras publicações impressas em Subiaco, são tidos como proto-tipos romanos. Embora guardem muitas características da caligrafia humanista italiana, especialmente das letras de manuscritos venezianos, os tipos criados posteriormente pelo alemão Johannes Von Speyer em 1469 são os primeiros a ter características das letras romanas que usamos atualmente, sendo aperfeiçoados pelo francês Nicholas Jenson no ano seguinte. De qualquer forma, é notável o esforço de Pannartz e Sweynheym ao produzir tipos consonantes com a caligrafia comum da região. Os dois mudaram-se para Roma em 1467 e criaram tipos novos, o que leva a crer que as matrizes que eles criaram ficaram em posse do mosteiro.
Apesar de todo este progresso tecnológico, a produção tipográfica demorou a ter demanda correspondente à capacidade que estes impressores tinham de finalizar volumes inteiros e coloca-los à venda. Como reflexo da incipiência desse mercado, Pannartz e Sweynheym tiveram grande dificuldade para manterem rentável sua produção gráfica — predominantemente de textos de filósofos clássicos —, mesmo após mudaram-se para Roma em 1467. Ulrich Han, outro tipógrafo alemão estabelecido na Itália, conseguiu manter sua oficina rentável com a produção de textos eclesiásticos, mas não fez fortuna com seu ofício. Assim como os dois primeiros, Han também produziu tipos baseados na escrita local.
Em 1470, outro clérigo vindo de Mainz estabeleceu-se na Itália — desta vez, em Foligno, a norte de Roma. Com ajuda do sócio Evangelista Angelini, em 1472, Johannes Neumeister imprimiu 300 cópias do que se entende atualmente como a primeira cópia impressa da La Commedia, o primeiro nome da obra de Dante antes de ser renomeada em 1555 por Lodovico Dolce. Assim como Pannartz e Sweynheym, Neumeister também foi aprendiz de tipografia em Mainz e não tardou a produzir seus próprios tipos inspirados nas letras cunhadas pelos clérigos de Subiaco. A prensa utilizada encontra-se em exposição no Oratorio della Nunziatella; e 14 das 300 cópias de Neumeister ainda estão preservadas. Embora os tipos que Neumeister gravou não sejam tão belos quanto os de Speyer e Jenson, seus exemplares ainda têm grande importância histórica, como o brilho de velhas estrelas.
Os exemplares que produziu atingiram sucesso comercial suficiente para que outros impressores fizessem mais cópias, embora o próprio Neumeister não tenha ficado rico; ao contrário, ele não conseguiu quitar suas dívidas com seu sócio, foi preso em Roma no ano seguinte, e voltou para Mainz. Ainda em 1472, outras duas edições foram impressas, e várias somaram-se com os anos. Algumas edições que merecem nota são a de Nicolaus Laurentii, de 1481, produzida em Florença como uma homenagem da cidade ao poeta, contendo gravuras desenhadas por Botticelli; e a de Aldus Manutius, de 1502, que publicou o volume em um formato portátil, fácil de transportar, e compôs com os mesmos tipos itálicos que criou apenas dois anos antes. O formato editorial proposto por Manutius tornou-se um padrão por dezenas de anos seguintes.
A aceitação do livro de Alighieri pela Igreja é curiosa, mas compreensível: em sua época, o autor era um crítico da instituição religiosa, acusando-a de intrometer-se politicamente em assuntos da cidade; este e outros motivos levaram Dante a ser expulso de Florença, escrevendo seu poema em exílio. No entanto, a própria Igreja Católica passou a estudar a obra, preserva-la e adotar certos aspectos das representações de paraíso, inferno e purgatório em sua liturgia. Entre 1320 e 1470, foram escritas cerca de 600 cópias da Comédia; nas décadas seguintes, as oficinas tipográficas, em maioria controladas pela Igreja, não tinham problemas em reimprimir o poema de 14233 versos.
Essa aceitação ajudou o mercado editorial a tornar-se rentável para dezenas de tipógrafos e editores na Itália e, posteriormente, toda a Europa. Por isso, a Divina Comédia tem sua importância para os tipos romanas que temos hoje: eles alastraram-se pela Europa, ganhando características peculiares em vários locais — principalmente França, Inglaterra e Holanda —, e são os que nós temos mais contato diariamente. Por sua vez, o poema de Dante caiu num certo hiato até ser recuperada por William Blake no séc. XVIII; não antes de contribuir para a consolidação do dialeto florentino como a base da língua italiana atual. Ao ser redescoberta por Blake, a Divina Comédia voltou a ser reimpressa e vendida, e os tipos que compõem-na são tão numerosos quanto, num céu noturno, são as estrelas.
À fantasia aqui valor fenece;
Mas a vontade minha a idéias belas,
Qual roda, que ao motor pronta obedece,
Volvia o Amor, que move sol e estrelas.
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Recomendações:
🎧 Podcast: AntiCast #153, com Ivan Mizanzuk e Anna Schermak conversando sobre a obra desta edição.
🎥 Vídeo: Riccardo Olocco – The success of Jenson’s roman type (inglês), do acervo de apresentações do congresso da ATypI 2018, comentando sobre os tipos criados por Nicholas Jenson.
🔗 Link: Società Dantesca Italiana, associação científica italiana sem fins lucrativos, dedicada à promoção, estudo e preservação da produção literária de Dante Alighieri.
🇧🇷 Fonte brazuca: Adriane Text, de Marconi Lima.
Escrito em 98045.24