Tipo Aquilo #46 – UX: o usuário não lê 🖥 👁
É isso. O usuário não lê mesmo. Durma com essa, boa noite e boa sorte.
(pausa dramática)
Ok, é um pouco mais complicado, já que… bem… você está lendo algo impresso com luz numa tela de pixels luminosos, um dos piores meios de leitura que a tecnologia pode oferecer. É agressivo para o sistema ocular, mais difícil de ser feito numa postura correta, e pouca gente sabe tratar direito um texto lido num display. Os computadores de mesa, de colo e de mão oferecem vários confortos que mitigam o desconforto da leitura em tela; nós comunicamos, pedimos comida às 3h da manhã (como todo paulista ama dizer que pode, mesmo que não faça), recebemos notícias, mandamos notícias, trabalhamos e divertimo-nos quando dá tempo.
Entre os UX designers, existe o desafio de entregar para o usuário uma tarefa que demanda a leitura de um texto para que esta seja cumprida. Existe também a frustração quando o usuário faz o contrário do que a tarefa exige porque ele não leu o texto que dizia com todas as letras: não faça isso. Isso é recorrente, nem sempre dá pra confiar a ilustrações e ícones a complexidade de uma informação que só um texto bem construído é capaz de lidar. Só que, se o usuário não lê, como eu fiz questão de dizer no começo do texto, como fazer para que o usuário leia? E se for importante, mas o usuário deixar de lado, o que se faz? Sexta, às dez da noite, no Globo Repórter. ;)
Todo designer já passou pela tristeza de ver que o usuário deixa de ler informações cruciais para a tarefa que está realizando. “Era só o usuário ter lido bem ali”, diz o padawan entre os amigos na sexta à noite na call antes do fim-de-semana. Era sim, de fato. Só que, como eu disse no começo, a leitura em tela é ruim para os olhos. As telas modernas de LCD e LED são menos agressivas do que os antigos monitores de tubo, mas ainda são desconfortáveis, tendem a causar fadiga ocular e afetam até a compreensão do texto. O modo escuro de interfaces gráficas e o night shift, que reduz o uso de cores azuladas na tela, são recursos que ajudam em contextos de pouca luminosidade, mas não resolvem o problema.
Posto assim, chega a ser injusto que um aplicativo ou site exija do usuário que ele leia algo na tela para que a pessoa tenha o que ela deseja. Além do problema do desconforto, estamos sempre competindo pela atenção da pessoa: se a interface que a gente propõe não é atrativa e não cumpre uma promessa de forma simples, o usuário pula para outro app, outro site, qualquer outra solução que pareça mais compreensível. Aliás, guarde o verbo pular; vamos usar bastante por aqui porque ele se aplica a diversos comportamentos do usuário. Certos pulos são inevitáveis; porém, um dos segredos para garantir que o usuário não pule para outro produto ou marca é a leiturabilidade.
Primeiro, vamos falar dos pulos inevitáveis. A própria leitura é feita de “pulos”, os sacádicos. Conforme as pessoas se alfabetizam e acostumam-se com ler o tempo todo, elas deixam de ler letra por letra, e até mesmo palavra por palavra. Em busca de eficiência, o cérebro processa o texto buscando por palavras mais importantes, como verbos e substantivos, e depois busca por conjunções, preposições, pronomes e outros constructos gramaticais ao redor. Esses movimentos de saltos e vai-e-vem entre palavras são chamados de sacádicos; acontecem com qualquer fonte que você usar, e ficaram evidentes a partir de estudos com dispositivos de eye tracking, que monitoram os movimentos dos olhos durante uma atividade.
Para que os sacádicos aconteçam, as pessoas deixam a leitura linear para rastrear as palavras e suas formas. Isso acontece quando você lê um site de internet, um aviso no meio da rua, um artigo de jornal ou uma página de livro. Sabe aquelas imagens de correntes de zap que dizem que você consegue ler certas palavras mesmo que a ordem das letras esteja ligeiramente diferente? Isso acontece porque nos acostumamos com as formas das palavras, em vez de letra-por-letra, em nome da eficiência. O cérebro adora fazer tudo da maneira mais econômica possível, e confia em certas letras com formas mais reconhecíveis para combinar a palavra que está lendo com a imagem que ele espera.
Falando especificamente de telas luminosas e interfaces digitais, os saltos são ainda maiores porque os usuários estão constantemente rastreando a tela em busca de algo relevante. Uma pesquisa do NN/g chama esse padrão de “cortador de grama”, em que o usuário alterna o foco de um lado para o outro em busca da informação que está procurando. Ao encontrar uma palavra interessante, o usuário rastreia ao redor, começa uma leitura rápida, e prontamente muda para outro canto da tela. Mapas de calor feitos com estudos de eye tracking mostram que é comum o usuário começar a ler e abandonar a leitura quando sente que a informação desvia do que ele está procurando, ou que apenas não é importante no momento.
Quando estudamos tipografia num aspecto macro, chegamos aos conceitos de legibilidade e leiturabilidade. Aprendemos que legibilidade diz respeito à facilidade de reconhecer letras num contexto, e leiturabilidade (do inglês readability) refere-se ao quão confortável é a leitura desse texto. Só que leiturabilidade vai além de um texto bem diagramado: segundo William DuBay, o termo abrange vários fatores de facilidade de leitura além do design, como a organização, escolha de conteúdo e de estilo de escrita, de acordo com a escolaridade, interesse e motivação do público leitor. Nenhuma escolha de fonte ou entrelinha salva um texto mal escrito para o público desejado.
Autores como DuBay e Rudolf Flesch foram pioneiros em defender a redação de textos acessíveis a diversos públicos, como crianças e adultos com diferentes níveis de alfabetização. Algumas diretrizes ajudam a melhorar a leiturabiliade de um texto, como o uso de palavras mais curtas e familiares ao leitor, sentenças mais simples com linguagem neutra, ortografia e pontuação corretas e organização por listas de tópicos ou passo-a-passo. É algo que os designers deviam advogar e também estar atentos, ao invés de apenas delegar isso a redatores e UX writers. Adequar a complexidade textual ao público-alvo também é uma decisão de design.
É compreensível que, na maioria das situações, o designer não é autor dos textos que trabalha. O designer não muda a prosa de um escritor ou a redação vinda da agência publicitária, tendo apenas a dimensão visual da leiturabilidade para trabalhar. Nesses casos, a gente busca opções de tipografia que entregam palavras mais rastreáveis — geralmente, com o “a” de dois andares, distâncias confortáveis entre linhas, hierarquia visual clara e o uso consciente de pesos regular e negrito para que os destaques pontuais sejam evidentes. Geralmente, fontes sem serifa funcionam melhor para textos que precisam ser rastreados, ao invés de lidos em sequência. Isso funciona mais como conselho do que como algo cientificamente provado; segundo essa hipótese, as serifas distraem o cérebro durante o rastreamento.
Quando o designer torna-se autor, é importante que ele seja partidário de uma linguagem simples (plain language), inclusiva e acessível, que ajude o usuário a entender desde uma instrução básica à proposta de valor de um produto ou serviço, e que seja adequado para o modo com que o usuário rastreia, ao invés de ler. Essa inclusão abrange de pessoas com pouca alfabetização a indivíduos com ansiedade, déficit de atenção e transtornos de leitura, por exemlo. Se pensarmos friamente, o usuário lê sim. Apenas não do jeito que a gente pensa. Quando o usuário está lendo na tela, é provável que esteja buscando informação para outra tarefa, ou que esteja alternando entre uma coisa e outra… só que ele nunca entra no modo de leitura corrida, como o faz ao ler um livro, em que a leitura é também um fim, e não apenas um meio. Por isso, entregar textos claros nos lugares e momentos certos é uma decisão valiosa para um produto.
Em 2016, o desenvolvedor Morten Just criou um editor de texto simples. Muito simples. Tão ridículo de simples que o excesso de simplicidade causou certa polêmica. A proposta do Cleartext era aceitar apenas as 1000 palavras mais comuns na língua inglesa. Segundo ele, é muito fácil falar abobrinha, mas é difícil ser claro o suficiente para uma criança de seis anos. Muitas pessoas adoraram, e algumas odiaram, dizendo que isso levaria a um emburrecimento das pessoas por meio da língua. Esse papo rende uma discussão inteira, mas atendo-se ao nosso tema aqui: será que elas esperam que interfaces conversacionais falem como Olavo Bilac? Imagine-o como um guia no Waze quando você estiver atrasado e no meio de um congestionamento.
Uma comunicação confusa do benefício de um produto ou uma marca é um dos fatores que joga no chão as taxas de conversões e vendas e a perda de um potencial consumidor para a concorrência. Hoje existem ferramentas melhores para escrever textos simples, como a Clarice (em português) e o Grammarly (em inglês). Eu entendo quem tenha chegado até aqui pensando “isso aqui não é sobre tipografia?”; UX não é o assunto que eu mais abordo, mas a relação entre tipos e palavras é uma via de mão dupla: uma boa tipografia engrandece uma mensagem adequada. Quando criamos interfaces, preparamos apresentações ou documentamos um produto, precisamos que nossa retórica seja simples e adequada para todos que precisam ler. É isso, ou entenda como quiser os pulos que o usuário dá.
Recomendações:
🎧 Podcast: UXCOPY.CO #1, com Ariana Dias, Janaína Pereira e Ludmila Rocha apresentando a profissão de UX Writer.
🎥 Vídeo: Minicurso de Linguagem Simples com Heloisa Fischer, um dos grandes nomes da Linguagem Simples no Brasil em um curso voltado ao ensino da comunicação textual inclusiva.
🔗 Link: Calculadora de legibilidade, texto e ferramenta da designer Nataly Lima para ajudar a construir textos com melhor leiturabilidade.
🇧🇷 Fonte brazuca: Evo, de Andrea Kulpas e Marcio Freitas.
Nota do editor:
Era pra esse texto ter saído na semana passada? Era. Perdão pelo vacilo. Eu tinha outro tema em mente, daqueles que parecem ótimos, mas quando para pra escrever, apenas… não sai. Acontece. Gaveta serve pra isso, para temas como o dessa semana que só precisavam de algo mais para acontecer, e para outros que ainda precisam maturar.
Aliás, essa edição de hoje faz um agradecimento especial à Ariana Dias, com quem fiz um belo curso de UX Writing para iniciantes no penúltimo fim-de-semana (assim que rolar novamente, aviso por aqui). Desde então tenho prestado mais atenção na minha escrita para interfaces e até mesmo para aqui no Tipo Aquilo. A mudança mais visível de agora pra frente é a adição do tópico geral ao título da edição (como nesta, sobre UX), para que ela pareça menos enigmática na sua notificação e na caixa de entrada. Se você conhece o Brand New… pois é, copiei na cara dura mesmo. :D
Falando em recomendações, deixo este espaço para algumas newsletters que eu tenho acompanhado, entre velhos companheiros e novas descobertas. A mais recente é o Eixo, uma ponte aérea Rio/São Paulo de histórias interessantes e notícias selecionadas. Como eu sou um rato de tecnologia, o Manual do Usuário e o Interfaces compõem meus boletins semanais. O Tá Todo Mundo Tentando, da escritora Gaía Passarelli, tem sido uma ótima companhia também.
Sobre newsletters de tipografia, já falei e cito novamente o Contraforma, da Flavia Zimbardi; o Don Serifa (em espanhol 🇪🇸), do Pedro Arilla; e a mudança recente do I Love Typography (em inglês 🇬🇧) trouxe consigo conteúdo novo para um boletim já bem legal de acompanhar.
Por fim, este que vos escreve está finalmente imunizado com duas doses e no aguardo das políticas públicas de vacinação ajudarem a vida a andar de novo com segurança. Pouco antes da minha segunda dose chegar, perdi um amigo que esperava ver de novo. Pouca coisa desgraça mais a cabeça do que vidas jovens e saudáveis irem embora por causa de uma doença que tem vacina, mas não tem uma política decente de enfrentamento.
A história da Din e do Dani, narrada pelo amigo Rafael Techima no Radinho Velho, é outra que deve ser ouvida e lembrada, mas é um soco. Por muito tempo, nós estaremos perto de histórias assim, que não mereciam ser interrompidas como foram. Pra você que perdeu um conhecido, um amigo ou um parente, espero que a vida te trate com mais leveza nos próximos tempos. :)
Escrito em 99234.15