tipo aquilo #43 (o texto mais cringe dessa newsletter)
um erro comum de novatos em tipografia é achar que paul renner, criador da futura, foi professor na bauhaus. embora sua famosa família tipográfica comungue com diversos princípios defendidos pela escola alemã durante os anos que funcionou, a bauhaus teve sua voz tipográfica expressa pelos cartazes e letras de esquadro e compasso de herbert bayer. o designer austro-americano formou-se na escola fundada por walter gropius em weimar, e mais tarde foi nomeado diretor de impressão e propaganda, cargo que ocupou até 1929. seu trabalho mais notável em tipografia, que nunca deixou o estágio de projeto, aliás, foi sua proposta de uma tipografia universal, que simplifica radicalmente as letras em formas geométricas e propõe o ocaso das letras maiúsculas, em prol de um texto mais parecido com o que as pessoas falam corriqueiramente
Tá esquisito de ler, né? Tudo bem, vou parar de fingir ser jovem daqui pra frente. ;)
Quase 100 anos depois, os adolescentes da dita “geração Z” adotam uma visão semelhante para o texto escrito, sem letras maiúsculas e pontuação correta para uma comunicação mais ágil e eloquente na Internet. Ou, pelo menos, é o que os millennials entenderam e dizem que resume a próxima geração enquanto tomam café e pagam boletos. Não quero me aprofundar nessa discussão geracional porque, fora da discussão acadêmica, ela toma como exemplo a sociedade norte-americana e aplica as dinâmicas sócio-econômicas desse país a fórceps no resto do mundo. Ao invés disso, hoje é dia de falar delas, as letras maiúsculas.
Pense por um instante que, se você fez todo o percurso tradicional da educação, você passou dos cinco ou seis anos até os 18 por etapas de ensino fundamental e médio, e dependendo da faculdade, terá passado pelo menos mais quatro anos sem entender porque existe esse artifício de letras maiúsculas no texto escrito. É uma noção tão estranha que sequer tem correspondência na linguagem falada; uma pessoa alfabetizada é capaz de saber se a palavra dita é escrita com ou sem letra maiúscula somente com um contexto claro. Sabemos que, nas línguas que usam alfabetos latinos, nomes próprios de entidades são escritos com a primeira letra maiúscula. Sentenças são sempre iniciadas em letras maiúsculas. Siglas sem pronúncia clara são escritas com todas as letras maiúsculas — ou deveriam, mas o CNPq discorda. Na língua alemã, todos os substantivos são escritos com a primeira letra maiúscula: em “Ich trinke Schampus mit Lachsfisch”, os substantivos, champanhe e salmão, são distinguíveis.
Voltemos na história para quando essa bagunça começou, em que não existiam nem millenials saudosistas ou adolescentes debochados, mas existia Alcuíno de York. Ele era um monge bastante letrado, que viveu durante quase todo o século VIII e teve uma oportunidade que pouquíssimas pessoas tinham durante a Idade Média: encontrar pessoalmente um rei. Em 781, enquanto regressava de Roma para York, encontrou-se com Carlos Magno, que ficou impressionado com o conhecimento que Alcuíno tinha. No ano seguinte, o monge foi nomeado mestre instrutor do Palácio de Aachen, instruindo o monarca pessoalmente, e levando a cabo sua missão de reformar o sistema educacional. Dentre suas instruções, foi estabelecido como principal forma de escrita um estilo que combinava letras de formas simples e ágeis de escrever, sem ligações complexas entre letras, mas com espaços claros entre palavras.
Outra particularidade dessa escrita, derivada das semi-unciais cursivas, era o uso de formas diferentes para letras iniciais, mais altas e largas que as demais. Com o tempo, essas formas diferentes foram uniformizadas e tratadas como maiúsculas (ou capitais) e minúsculas. Esse sistema de escrita é o que conhecemos atualmente como as minúsculas carolíngias, em que o alfabeto latino tornou-se oficialmente um sistema de escrita bicameral. Com o tempo, outros sistemas de escrita, como o grego e o cirílico, também tornaram-se bicamerais, e os estilos de escrita desenvolvidos na Europa a partir de então sempre contaram com formas de letras diferentes para minúsculas e maiúsculas.
A escrita carolíngia foi base para outras escritas importantes para a tipografia: os tipos gravados por Gutenberg reproduzem o estilo blackletter, desenvolvido a partir de evoluções das letras aperfeiçoadas por Alcuíno. As minúsculas carolíngias também foram influências para as caligrafias humanistas que, mais tarde, foram base para a criação dos primeiros tipos romanos na Itália renascentista do séc. XV. Das minúsculas carolíngias, também descende o chamado alfabeto fundamental, desenvolvido pelo inglês Edward Johnston no começo do séc. XX que é ponto de partida na caligrafia para todo entusiasta que empunha uma pena quadrada pela primeira vez.
O grande motivo para a existência das minúsculas é a agilidade que essas oferecem em relação às maiúsculas: as formas das letras são mais uniformes ao longo do alfabeto e demandam menos movimentos para serem feitas. As maiúsculas, por sua vez, nunca perderam o aspecto “monumental” que carregam desde as letras imperiais romanas, funcionando como pilares que sustentam o resto do texto. As maiúsculas eram base para o desenho de iluminuras e adornos para documentos e escrituras: nas escritas de pena quadrada, elas ganhavam traços adicionais e efeitos de cor e profundidade; nas escritas de pena flexível, como as cursivas copperplate, as maiúsculas ganhavam novas curvas e floreios que conferiam imponência e classe a essas letras.
As letras minúsculas, por sua vez, são um resultado de várias adaptações que as primeiras letras sofreram para que fossem mais ágeis de serem escritas, demandando menos traços e aproveitando melhor alguns gestos manuais. Por isso, algumas letras são parecidas, e na tipografia agrupamos essas letras similares para encontrar pontos comuns em seus desenhos e espaçamentos. É o caso de grupos como “o”, “c” e “e”, que essencialmente são formas circulares com pequenas diferenças. Além da letra “o”, grupo “h”, “m”, “n” e “r” junta algumas das primeiras letras que todo type designer faz ao começar um novo projeto, pois além de compartilharem formas semelhantes, o par “n” e “o” ajuda a definir as principais métricas de espaçamento. Aquele monte de “nnnnnooooonnnnn nononononon oonnoo” é o insumo inicial do ritmo de uma fonte para essa gente doida que desenha letras.
A essência monumental das maiúsculas foi preservada na tipografia, assim como suas proporções em relação às minúsculas. Com os tipos romanos de Speyer e Jenson, as maiúsculas tornaram-se levemente mais baixas que a altura dos traços ascendentes de letras como “b”, “d” e “h”, mas conservaram o aspecto “arquitetônico” das letras imperiais romanas, e assim o são até os tipos criados atualmente. Como eram menos frequentes na composição de um texto do que suas contra-partes minúsculas, os tipos maiúsculos eram guardados na parte de cima das caixas, enquanto os minúsculos ficavam na parte de baixo, mais próximos do compositor. Sim, esse é o motivo das letras maiúsculas serem chamadas na tipografia de “caixa alta” (uppercase), enquanto as minúsculas são letras de “caixa baixa” (lowercase).
Essa facilidade de acesso às minúsculas foi mantida em várias tecnologias de reprodução de tipos. Nos teclados das máquinas da Linotype, as letras de caixa baixa ficavam à esquerda do operador, enquanto a mão direita cuidava das letras maiúsculas, números e sinais de pontuação. Um operador presto contava com destreza semelhante à de um guitarrista, em que a mão esquerda precisa de precisão com rapidez, enquanto a mão direita, menos utilizada, dita o ritmo. Nas máquinas mecânicas de escrever, o acesso às letras maiúsculas era feito com o uso de uma tecla auxiliar que literalmente levantava (em inglês, shift up), os marteletes de caracteres, enquanto as letras minúsculas eram acessíveis com o simples pressionar das teclas. Você conhece algo que funcione assim hoje em dia? Creio que não. ;)
O pareamento com letras maiúsculas em letras iniciais de sentenças e nomes próprios é o que ficou caracterizado como um uso cânone do alfabeto em textos e documentos oficiais. Estará em todos os livros, reportagens e artigos que você terá lido do início ao fim da sua vida alfabetizada. Esse par forma o sentence case, que permite identificar onde uma sentença começa e, no meio das palavras, entender quando se fala de alguma entidade importante, da qual a frase provavelmente diz respeito. Algumas línguas usam esse destaque das letras maiúsculas em relação às minúsculas para estabelecer, por meio da ortografia, o que é importante para o povo falante daquele idioma: no inglês, por exemplo, o pronome “I” é escrito em maiúsculas desde o séc. XIII para que a letra “i” demonstre de fato a importância do autor para quem está lendo, ao invés de ser uma letra solta que poderia ser apenas um erro do escritor.
Apesar da consolidação das letras maiúsculas na escrita, sempre houve quem lembrasse que elas não se diferem das minúsculas foneticamente. “A” e “a” são falados da mesma forma, grosso modo. Foi com esse pretexto que Bayer propôs suas letras universais, cuja simplicidade visava poupar tempo de type designers ao dispensar as letras de caixa alta e serifas, e adequar a escrita ao estilo “internacional” de arquitetura, proposto pela Bauhaus. Apesar do conceito, as letras de Herbert Bayer nunca foram gravadas em tipos de metal: o então professor da Bauhaus nunca teve um treinamento próprio em tipografia, o que, segundo o próprio, explica muitas tentativas de quebrar conceitos básicos dessa área.
Outro a tentar “simplificar” a linguagem escrita foi Bradbury Thompson. Prolífico designer gráfico e diretor de arte, Thompson também fez experimentos usando apenas letras minúsculas em suas composições, inclusive com “capitais minúsculas” no início de manchas de texto. Em 1958, Thompson criou o Alphabet 26, um grupo de letras baseadas em tipos Baskerville, em que minúsculas e maiúsculas tinham formas iguais, diferenciando-se apenas em tamanho. Apesar de não ter tido sucesso em sua empreitada de livrar o mundo de uma complexidade excessiva em letras diferentes, o Alphabet 26 é referência para vários trabalhos de tipografia unicase, com letras minúsculas e maiúsculas desenhadas com a mesma altura. Tanto Thompson quando Bayer tiveram notável influência da “nova tipografia” proposta pelo designer alemão Jan Tschichold, cuja vida e obra vale uma edição única mais pra frente.
Com a massificação do uso de computadores e da Internet, o uso de letras maiúsculas ganhou novos questionamentos. Pense, por exemplo, que apenas há pouco tempo URL’s (o endereço público literal de qualquer página ou arquivo) tornaram-se case sensitive, em que letras maiúsculas e maiúsculas são semanticamente diferentes. Em programação, é possível (mas de forma nenhuma recomendável) escrever algoritmos inteiros apenas com letras minúsculas em algumas linguagens de programação. Essas influências fizeram o uso único de letras minúsculas parecer “descolado” e antenado com a modernidade, o que parece ter influenciado a mente da dita “geração Z” em achar “cringe” (cafona, digno de vergonha alheia) o uso de maiúsculas. A Internet sempre teve sua própria “gramática”, de risadas “kkkkkkkk” ou “lksajdklasjas” ao entendimento de que SE VOCÊ ESTÁ FALANDO DESSE JEITINHO VOCÊ ESTÁ GRITANDO SEU GROSSO MAL EDUCADO DO C#*&@%$!!!
Só que Bayer, Thompson e qualquer um que queira “simplificar” a linguagem escrita abolindo as maiúsculas esbarra no fato de que as letras, do jeito que existem, já são facilmente lidas e escritas. Outro obstáculo para o fim das letras maiúsculas é que a alegada aproximação entre o que se fala e o que se escreve é utópica: ninguém fala do mesmo jeito que escreve, todos nós temos “personas” para cada forma de comunicação. Essas “personas”, por assim dizer, não apenas se expressam diferentemente, como apreendem informação de forma diferente entre discursos falados e escritos, pois cada um deles têm dezenas de nuances em volta dos discursos propriamente ditos. O cérebro está pronto para perceber tons de voz diferentes e palavras-chave ditas com mais ênfase do que outras pela audição; para a escrita, o cérebro tem seu próprio método de ler usando sacádicos e adaptar-se para uma leitura dinâmica ou mais demorada.
Por isso, quando surgem essas pequenas tentativas de revolucionar algo tão institucionalizado quanto a escrita, acho legal a oportunidade de revisitar tudo o que existe a respeito, mesmo que seja para dar de cara num muro. Nada impede um jovem de conversar apenas em minúsculas com os amigos (texting geralmente flui melhor desse jeito mesmo), ou a Rupi Kaur de escrever poemas apenas em minúsculas. No fim das contas, tudo diz respeito ao que você está pronto para receber e trabalhar. É bom ter minúsculas e maiúsculas para trabalhar além das regras de ortografia que regulam-nas; tornam-se mais uma ferramenta de expressão, de composição, de o meio ser mensagem e aquelas coisas todas.
Recomendações:
🎧 Podcast: Diagrama #19, com Rogerio Lionzo conversando com a type designer Flavia Zimbardi sobre design editorial, tipografia e resgate tipográfico de letras da Bauhaus.
🎥 Vídeo: the rise of all-lowercase song titles [em inglês], uma amostra da tendência de artistas modernos de escrever letras de músicas usando apenas letras minúsculas.
🔗 Link: Why Gen Z Made Capitalization Irrelevant, [em inglês] um artigo que comenta a relação da geração Z com a mídia escrita.
🇧🇷 Fonte brazuca: dT Jakob, de Gustavo Soares e Eduilson Coan.
Nota do editor:
Essa nota provavelmente servirá mais para a posteridade do que para o momento atual. A ideia de escrever sobre isso surgiu do meme (se tudo der certo, estará praticamente morto no momento em que você está lendo) que é o millennial tentando entender a geração Z e o termo “cringe”, reduzindo o adolescente a letras minúsculas, TikTok e vergonha alheia de tudo que o millennial faz de excêntrico. Um ou outro millennial fica realmente triste em constatar que não é mais jovem... o resto da Internet faz o que sempre faz de melhor: piada sobre o assunto.
Discussões geracionais, eu deixo para quem saiba dissertar melhor sobre o assunto sem esquecer que adolescência não é um processo uniforme no mundo. Grande parte dessas discussões tomam como referência as divisões de gerações feitas a partir de eventos históricos da Europa ou Estados Unidos, e com isso, molda-se o mundo todo em boomers, millennials e todas as letras possíveis de gerações.
Uma geração querer fazer graça da outra é tão velho quanto… sei lá, a coisa mais velha que você conseguir pensar. Tá, você pensou em algo velho demais, volta um pouco… agora sim! O cerne da questão está no fato de que coisas vão e vem entre gerações: moda, linguagem, música etc. Certas coisas eu espero que não voltem. As coisas que a gente fazia baseadas em racismo e preconceito de identidade de gênero, por exemplo, podem ficar no passado mesmo.
Escrito em 99076.14