Letra Aberta #01 – O começo da jornada
As inspirações, concessões e decisões antes das primeiras letras
A Vanessa Guedes fez, de forma magistral, uma grande reflexão sobre a solidão durante o ato criativo. Grande, não apenas na extensão, mas também na profundidade com que ela aborda os ganhos, dores e a necessidade de um pouco de solitude. Como designer de tipos independente, isso faz parte da criação de um projeto tipográfico na maior parte do tempo; às vezes, eu busco amigos e colegas para compartilhar impressões, fazer perguntas e testar possibilidades. Contudo, a maior parte do trabalho acontece longe dos olhos do mundo; de repente, o mundo sabe que alguém passou muitas horas, vários dias — talvez, até anos — alisando vetores, configurando espaços, programando regras e exceções.
Essa nova seção tem alguns intuitos. O primeiro é fazer a minha jornada atual de desenho de tipos menos solitária, tendo algumas centenas de pessoas testemunhando um diário de bordo de criação de uma família tipográfica. Outro intuito, esse mais alinhado ao Tipo Aquilo, é explicar coisas simultaneamente grandes e pequenas nos desenhos das letras, detalhes que só fazendo fontes permite explicar com propriedade. Por último, é intuito dessa seção nova tirar minha pessoa um pouco das ferramentas digitais de produção tipográfica, e consolidar aprendizados e lições em texto para ter certeza de que eu entendi o que estou fazendo.
Um pouco de como desenhar letras, um pouco de história, um pouco de reflexões malucas. Sejam bem-vindos à Letra Aberta. (=
A história da história
Tem uma ideia que minha mente vem cozinhando há alguns anos, que precisava de um pouco de tempo livre e normalidade na minha vida para acontecer. Enquanto o mundo sucumbia à ideia de ficar em casa para tentar frear uma pandemia, eu escrevi sobre como os tipos romanos surgiram e suplantaram o blackletter como estilo tipográfico padrão. É de minha praxe pegar algo mais tentador e conhecido do público geral como fio condutor, e com sorte, consegui fazê-lo com a história da Comédia de Dante Alighieri.
Para quem ainda não era dessa época: entre 1450 e 1455, Gutenberg desenvolveu em Mainz, na Alemanha, o processo de impressão tipográfica usado por mais de 300 anos em oficinas tipográficas que espalhavam-se pelo mundo. Gutenberg também passou esse conhecimento para frente, com vários clérigos aprendendo com ele a abrir letras em metal, montar matrizes e criar impressos com alto grau de refinamento. Esses aprendizes criaram algumas casas de impressão na cidade, mas precisaram fugir da cidade devido à Guerra Baden-Palatinado entre 1461 e 1463, quando um conflito pela sucessão do Arcebispado de Mainz colocou a região em um conflito militar.
Esses novos impressores migraram para a França e, principalmente, a Itália, onde foram influenciados pelos calígrafos de Veneza e prontamente criaram tipos inspirados nessas letras, que tornaram-se modelo de tipos romanos que usamos atualmente. Nessa primeira onda, destacaram-se impressores como Sweynheim, Pannartz, Von Speyer e Jenson.
Sabendo que a Península Itálica parece uma bota, Foligno fica bem no meio da batata-da-perna. Foi lá que, em torno de 1470, o mestre-da-moeda da Igreja Emiliano Orfini fundou uma oficina tipográfica. É aqui que as histórias mudam entre versões: sabe-se que ele estabeleceu essa fundição com um tal de Johannes Neumeister. Também natural de Mainz, Neumeister era um clérigo versado em caligrafia. Alguns dizem que, sendo conterrâneo de Gutenberg, ele foi auxiliar direto do impressor; outros dizem que ele foi apenas um entre outros aprendizes.
Ao estabelecer uma oficina tipográfica em sua residência, Orfini trouxe Neumeister para trabalhar com ele, e aqui as versões também se dividem. Alguns dizem que o clérigo alemão foi inicialmente um funcionário de Orfini; outros dizem que eles já eram sócios desde início. É provável que, usando de seu conhecimento como ourives, Orfini tenha aberto em metal os tipos empregados nas impressões que fizeram juntos, baseado na caligrafia de Neumeister. O que se sabe, ao certo, é que eles trabalharam juntos em três publicações: De bello Italico adversus Gothos, de Brunus Aretinus; Epistolæ ad familiares, de Cícero; e a que é tida como a primeira edição impressa da Comédia de Dante Alighieri, feita em 1472.
Após esse trabalho, a história de Neumeister é nebulosa. Sabe-se que, a mando de Orfini, o alemão foi preso em Roma até 1475. Depois disso, voltou a imprimir em Mainz e Lyon até o fim da vida, nunca conseguindo sucesso financeiro com a atividade de impressor tipográfico. A Comédia de Dante teve outras impressões mais famosas, como a de Aldus Manutius de 1502, e a de Lodovico Dolce e Gabriele Giolito de Ferrari de 1555. Esta é a primeira a ser vendida com o nome que conhecemos atualmente: A Divina Comédia.
As concessões
Esse lenga-lenga histórico todo, apesar de lenga-lenga, é fascinante pra mim. É aquele negócio de porque, às vezes, é divertido estudar o contexto de alguns momentos históricos e ver como eles desencadeiam uma série de eventos cujos impactos existem até hoje. Naturalmente o processo tipográfico de Gutenberg tornar-se-ia grande demais para Mainz; porém, não fosse uma crise de disputa de poder eclesiástico forçando uma diáspora de impressores, talvez os tipos romanos tivessem demorado mais para virar o estilo de letras mais comum do mundo ocidental.
Ok, se você chegou até aqui, você já entendeu que minha intenção fazer uma família tipográfica inspirada nessa primeira edição da Divina Comédia, um produto curioso de uma encruzilhada de eventos importantes. Vou falar mais deles em outras edições, mas agora, precisamos entender o que significa essa decisão. A primeira, e mais óbvia, é a impossibilidade de trabalhar com os impressos físicos. Qualquer edição que tenha sobrevivido a mais de 500 anos é uma obra rara e pouco acessível a qualquer pessoa. A digitalização feita pela biblioteca da Princeton University, com todas as mais de 500 páginas do volume em alta resolução, será minha fonte primária.
Só que as concessões não param por aí. Eu falei lá na edição #54 que algumas letras demoraram para existir da forma com que são usadas atualmente. Esse exemplar tem… melhor dizendo, não tem vários exemplos, como a letra “j”, que só existiria na língua italiana a partir quase 50 anos depois. As letras “k” e “w”, raramente usadas em línguas latinas, também são ausências confirmadas. São raros os “s” curtos (também já contei sobre o “s” longo na edição #29), inexistem um caso de “Z”, e referências a números eram feitas em extenso ou usando números romanos. Logo, não temos os algarismos arábicos tão comuns no cotidiano. Sabe vírgula? Pois é, também não tem. Ainda vou escrever sobre isso, mas os sinais de pontuação, em geral, são mais recentes do que as pessoas imaginam.
E se vocês repararam, as letras são bem irregulares, diferentes demais entre si, com contrastes irregulares, nenhum alinhamento à linha de base, e letras maiúsculas mais altas do que o normal. Ainda assim, tem algo interessante no desenho das letras e na importância histórica desse impresso que me motiva a seguir com ele.
O que fazer, então?
Lebedenco (2019), em sua dissertação, analisa alguns casos de resgates tipográficos, quando um designer propõe-se a criar uma fonte ou família tipográfica inspirada em impressos antigos, como uma forma de trazer as letras utilizadas nesses impressos para uma nova vida em outra tecnologia. De acordo com a disponibilidade e o estado de preservação de fontes primárias, a qualidade dos tipos que elas apresentam e o intuito do projeto, esses revivals podem ser classificados, de acordo com a fidelidade ao material original, como reproduções fieis, sínteses, interpretações, explorações formais e designs inspirados.
Cada classificação exige do designer um equilíbrio entre o comprometimento aos tipos originais, as possibilidades e limitações da tecnologia atual, e os requisitos determinados para o seu projeto. Neste nosso caso, observando os problemas de impressão existentes na obra, expostos nas digitalizações, quase impossibilitam uma reprodução fiel. Minha vontade reside em preservar pequenos detalhes que conferem identidade a esse impresso, deixando os demais problemas para trás e “normalizando” os tipos de Orfini e Neumeister para o mundo contemporâneo. Isso coloca o projeto entre uma exploração formal e um design inspirado — o que, para minhas ambições e boletos a pagar, está de bom tamanho.
No fim das contas, essa “normalização” significa, grosso modo, criar uma tipografia humanista/garaldina (eu falei na edição #77 sobre classificações tipográficas, mas vou tocar mais nesse assunto no próximo capítulo) inspirada em outras fontes e impressos da época, mas retendo traços e características peculiares dos tipos de Orfini e Neumeister. Obviamente, essa família tipográfica deve ser adequada para o uso contemporâneo de uma tipografia digital, tendo números, acentuação, pontuação e o que mais for possível para um set de caracteres tecnicamente compatível com línguas latinas e nativas da América do Sul (porque gracias a diós soy latinoamericano).
Repararam no tanto que foi dito sem nenhuma janela do Glyphs aberta pra desenhar um mísero vetor? Para o bem da verdade, neste preciso momento, estou com maiúsculas, minúsculas e numerais desenhados (não necessariamente prontos), e já batendo cabeça com algumas provas de impressão, mas eu vou contar essa jornada aos poucos. Só que é preciso um pouco de conceito antes de seguir em frente, de entender as chaves com que pretende-se abrir as portas certas. A história é a minha chave para este projeto; para outros trabalhos, métodos como moodboard, personas, pesquisa com usuários e outras ferramentas do design gráfico também são válidos.
No próximo capítulo, teremos algumas letras de fato, mais curiosidades e reflexões para quem estiver curioso sobre como se faz fontes. Eu sei que é meio meh encerrar assim, sem um final final como em todo Tipo Aquilo regular. O que eu posso dizer é: vem comigo, e confie no processo (mesmo que o processo não saiba que estamos confiando nele).
Escrito em 101275.059
aee! confia no processo, sim :)