Tipo Aquilo #77 – Dando nomes aos bois
Sobre os termos usados em educação e análise tipográfica
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Existem algumas práticas e exercícios comuns para desenhistas de letras, sejam type designers, calígrafos ou artistas de lettering, que buscam evitar que a gente leia o que está escrevendo ou desenhando em alguns momentos. Às vezes, usamos palavras sem sentido, como hamburgefontsiv (ou hamburgevons) ou adhesiv para desenhar as primeiras letras de uma fonte, ou viramos a superfície de cabeça para baixo, para vermos as letras sem lê-las. Isso parece contraditório pra quem ainda não é iniciado em tipografia, já que o grande propósito das letras é para que sejam lidas… afinal, não é isso o que dizem sobre legibilidade? Reconhecer letras?
A resposta é meio óbvia, mas não exatamente. Para que isso faça sentido, primeiro precisamos entrar num pequeno universo da educação tipográfica que esforça-se em nomear apropriadamente as coisas da tipografia. Comumente, ela apoia-se em analogias e comparações para facilitar o entendimento e a comunicação dos fundamentos de composição tipográfica e de desenho de letras. A edição de hoje do Tipo Aquilo falará sobre algumas dessas convenções tipográficas para o alfabeto latino e de como elas são importantes para analisar letras e desenhar caracteres mais concisos e legíveis.
Usar a expressão “dar nomes aos bois” tem um significado especial para a história da escrita. Pense, por exemplo, na origem da letra “A”, cuja forma vem da letra fenícia aleph. Esta, por sua vez, é tida como uma possível representação pictográfica de uma cabeça de gado, presente na escrita proto-sinaítica. Elementos importantes para a vida dos povos antigos, como animais domésticos e objetos do cotidiano, nomeavam as letras e conferiam-lhes significados. O ancestral proto-sinaítico da letra “B”, bayt, significava “casa”, evidenciando que, desde os tempos mais primórdios, o importante na vida era ter casa e comida.
O comércio entre povos de diferentes lugares possibilitou a criação de relações exteriores (não exatamente uma diplomacia como entendemos atualmente, mas era um começo) e o compartilhamento de conhecimento de diversas áreas, tornou mais complexa e dinâmica a economia. Isso contribuiu para que as letras deixassem seus significados para trás e fossem instrumentalizadas como ferramentas de registro de ideias, abstratos e pensamentos complexos. Contudo, isso não significou o fim de uma “retórica” nas formas dessas letras. As serifas, criadas para as imperiais romanas, mimetizavam os ornamentos de colunas greco-romanas e conferiam um aspecto monumental às letras, representando uma grandiosidade arquitetônica dessa civilização.
O Renascimento resgatou esse caráter escultural das letras, dando ênfase à racionalidade no desenho dos novos tipos romanos entre os séculos XV e XVI. Essa racionalidade era representada tanto no desenho das letras em si quanto na sistematização das formas das letras em componentes reutilizáveis. Observe, por exemplo, as letras “b”, “p”, “q” e “d”: são quatro caracteres diferentes com miolos (ou ocos) iguais. Assim, era necessária apenas uma punção (ou melhor, contrapunção) para gravar quatro matrizes. Aliás, você reparou que eu falei em “miolos”? Quando falamos de anatomia tipográfica, tomamos emprestado termos da geometria, da arquitetura, da anatomia humana ou de objetos comuns para nomear e destacar partes específicas das letras.
Por exemplo, “b”, “p”, “q” e “d” compartilham hastes e bojos, assim como chamamos de olho o buraquinho fechado do “e”. Temos também a espinha do “s”, os ombros de “n”, “m” e “h”, a cauda do “Q” e do “y”, as barras no “A”, “H”, “T” e “f”, a cabeça do “t”, o braço do “E” e “F”, a perna de “R” e “K”, os arcos de “a”, “g” e “j”, e a cintura do “x”, “X” e “Y”. Temos também termos que designam certos parâmetros de tipografia, como o contraste (diferença entre traços espessos e finos de uma letra), o eixo (ângulo de inclinação do miolo de formas redondas), e alguns mais comuns, como ascendentes e descendentes. Alguns desses termos podem ser diferentes, de acordo com autores e traduções distintas; isso é um tópico importante, mas ficará para outra edição.
Até mesmo o tamanho dos tipos já tiveram nomes próprios. Ao invés de convenções numéricas, mais comuns atualmente, era usual que, se você fosse um impressor francês, você usasse fontes de tamanho gallarde, petit-romain ou cicero. Na Inglaterra e EUA, os tamanhos mais-ou-menos correspondentes eram bourgeois, long-primer e pica (!!). Na Itália, estes eram chamados de lettura, garamone e garamoncino; na Espanha, lectura, entredos e medio texto. A história da padronização de medidas tipográficas rende uma edição apenas por si (a quinta série não perde por esperar um texto com tanta pica), mas por ora, tudo que você precisa saber é que estes nomes correspondiam aos tamanhos de corpos 9, 10 e 12.
Outra pequena bagunça do universo tipográfico é a classificação de fontes. Até pouco tempo, tínhamos o sistema Vox-ATypI como uma referência “canônica” de classificação tipográfica, criada pelo escritor e historiador francês Maximilien Vox em 1954. No entanto, além de não representar um consenso entre vários livros de tipografia, a própria ATypI deixou de adotá-la, em prol de um grupo de trabalho orientado a um sistema mais abrangente e capaz de classificar tipos de diferentes sistemas de escrita, tidas anteriormente como non-latin. Um estudo de Childers, Griscti e Leben (2013) mapeou 25 classificações tipográficas diferentes, observando critérios, nomenclatura, frequência e categorização de estilos. Achou que o Tipo Aquilo ia deixar o Halloween passar em branco? Pois veja esse horror de bagunça de classificações tipográficas.
Os sistemas vão dos mais simples, propostos por Craig (2005), Bartram (2007) e a Letraset (1959) com apenas cinco categorias, aos mais complexos, como as 25 sub-categorias da Paratype e as 30 sub-categorias de Dowding (1961). A maioria percorre uma linha histórica, saindo das romanas clássicas (chamadas de venezianas ou garaldinas), passando por um miolo de transicionais, modernas e/ou didones, chegando às sans-serifs grotescas, geométricas e humanistas. Essa abordagem histórica é questionada por autores como Noordzij e Kupferschmid, que defendem classificações centradas nas formas das letras ao invés de nacionalismos ou momentos históricos.
Nomear as coisas do nosso universo é importante para que possamos conversar sobre elas, reconhecer a existência e relevância de termos e seus significados, e adotar métricas que ajudam a analisar e desenhar belas letras belos grupos de letras (mais uma vez, citando Matthew Carter por aqui). Com os termos certos, podemos falar, por exemplo, de alturas-de-x maiores para fontes de telas digitais, de contrastes mais suaves para tipos de texto impresso, de como melhores tecnologias de manejo de metal permitiram serifas e barras mais finas, ou de entrelinhas mais confortáveis para leitores disléxicos. Todo esse papo de taxonomia e classificação, por mais avanços que sejam necessários, ajudam a construir pontes entre achar que algo está estranho e saber o que está realmente comprometendo a legibilidade.
Nota (importante) do editor:
Durante os dias 9, 10 e 11 de novembro de 2023, acontecerá o Pavão 2023, evento independente de cultura, design e arte organizado por alunos da graduação da Esdi/Uerj desde 1993. Após um hiato de alguns anos, a edição de 2023 tem como principal objetivo celebrar a produção dos estudantes e recém formados, e vai receber trabalhos de alunos de diversas instituições. Além da Mostra Pavão, o evento também será palco de oficinas e palestras.
Pavão 2023
Data: 9, 10, 11 de novembro
Local: Esdi Rio de Janeiro (Rua do Passeio, 80 – Lapa – Rio de Janeiro, RJ)
Ingressos: Sympla (a partir de R$ 12 para público geral, gratuito para alunos de graduação da Esdi)
Programação e mais informações: @pavaoesdi / newsletter
Recomendações:
🎧 Podcast: Visual+Mente #50, com Rafael Ancara, Ricardo Cunha Lima, Almir Mirabeau, Lia Alcântara, Leonardo Buggy e Ricardo Esteves discutindo sobre educação tipográfica (eu sei que já falei desse episódio em outra oportunidade, mas faz sentido com o papo dessa edição).
🎥 Vídeo: Anatomia Tipográfica, um complemento da disciplina de Planejamento Visual Gráfico da Prof. Bárbara Emanuel sobre aplicação de terminologias da tipografia em prática.
🔗 Link: Shape.Method.ac, um jogo/exercício de desenho tipográfico de redesenhar caracteres de fontes comerciais.
🇧🇷 Fonte brazuca: Cantorias, de Gabriela Paolla de Barros.
Escrito em 101429.33
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