Em 2016, eu me deparei com um experimento de um editor de texto que permitia ao usuário escrever usando apenas as mil palavras mais comuns da língua inglesa. Ele ainda está disponível, precisa de uns procedimentos meio chatinhos pra funcionar, e era apenas uma prova de conceito. Só que ele deu um estalo em muitas pessoas de que a eleição de Donald Trump para presidente dos EUA naquele ano era inevitável. O Cristiano seu lixo! Botafogo, do podcast Medo e Delírio em Brasília, adora colocar a vinheta do Trump dizendo “I know words, I have the best words”; o problema é que ele realmente tinha as melhores palavras, além de carisma para usá-las sem parecer simplório ou burro — ao menos, naquela época. Havia também a retórica de pânico moral, expediente comum da extrema direita para gerar medo e revolta contra moinhos de vento: a razão governa, mas a emoção elege. De novo, ao que parece.
A pedido da Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, a ABNT tornou gratuito o acesso público à NBR ISO 24495-1, que normatiza o uso da linguagem simples. Esta não terá sido a primeira vez que o Tipo Aquilo fala desse assunto e do quanto ele é importante para nossa atividade de designers, publicitários, artistas e demais profissionais de criatividade. Quando buscamos melhorar nossa comunicação com clientes ou usuários, temos várias ferramentas à disposição para transmitir com maior clareza as ideias que precisam ser compreendidas. Podemos brincar com hierarquia, usando recursos tipográficos para dar destaque às informações certas. Podemos transformar parágrafos em listas, tabelas, diagramas ou outras formas de comparação e narração de histórias mais apelativas e compreensíveis. Existem várias formas de dar a importância certa para os elementos numa peça visual, a fim de contar uma história e/ou transmitir uma informação precisa. Vamos abordar algumas dessas alternativas e alguns pontos importantes da norma sobre linguagem simples na edição de hoje.

Comecemos com uma possível dúvida; “qual é a necessidade de existir uma norma técnica sobre linguagem?”, alguns incautos podem perguntar. Digamos que simplicidade não é um atributo constante entre as pessoas… o que é simples pra mim, pode não ser pra você, e vice-versa. Uma norma sobre linguagem simples estabelece um lugar comum sobre o nível desejado de simplicidade para comunicar com uma parcela considerável da população, o que ajuda a mitigar custos de tempo e dinheiro causados pela interpretação errada de uma instrução ou explicação. Em tempos de fake news, linguagem simples é uma ferramenta importante demais pra ser colocada em segundo plano: ela ajuda a criar confiança, tira a névoa das letras miúdas, do juridiquês e do discurso pomposo, e simplifica a vida de todos que dependem do texto bruto para trabalhar, como designers e tradutores.
A linguagem simples, acima de tudo, coloca o leitor em primeiro lugar; ela lança mão das ferramentas que um idioma oferece para considerar: a) o que os leitores querem e precisam saber; b) o conhecimento prévio dos leitores; c) o contexto em que a leitura será feita. Não se trata de usar apenas palavras comuns, um dicionário restrito de palavras básicas; o idioma não é o único recurso com que é construída uma linguagem simples. Ela também tem poder sobre a estrutura textual, definindo como as informações são montadas do mais ao menos importante; e sobre a diagramação, a “macrotipografia”, buscando as formas mais claras de apresentar visualmente o conteúdo. Em resumo: é sobre usar vocabulário e estrutura visual adequados para comunicar com relevância de forma clara, para que as pessoas encontrem o que precisam, entendam e utilizem essa informação.

Quando colocamos na mesa a necessidade de uma informação relevante ser facilmente localizável e usável, falamos de um modo de comunicar em que não podemos depender apenas dos redatores. Designers tornam-se agente importantes para a comunicação com linguagem simples; eles projetam pontes entre o leitor, em seu contexto, e a fonte do conteúdo — seja essa origem um redator, uma equipe jurídica, um consultor especialista, uma API1 ou uma LLM2. Nesse ponto, temos vários bons exemplos surgindo do legal design e do visual law (que eu já escrevi por aqui), que simplificam contratos e documentos jurídicos em letra e forma. O uso de diagramas, fluxogramas, listas e outros dispositivos visuais, no lugar do texto corrido e modorrento, também mostra-se como uma forma amigável para as partes — contratantes e contratados, advogados e magistrados.
A linguagem simples tem quatro princípios norteadores: relevância, rastreabilidade, compreensão e usabilidade. Isso significa que os leitores precisam ser capazes de:
Obter a informação que precisam;
Encontrar facilmente essa informação;
Entender facilmente a informação encontrada;
Usar facilmente a informação entendida.
Cada princípio tem, segundo a norma da ABNT (e da ISO), diretrizes que orientam a prática de cada princípio listado. Essas diretrizes ajudam a pessoa a entender melhor o público-alvo, o contexto da leitura, a estrutura textual/gramatical adequada, o tom de voz e os recursos de tipografia e design de informação que podem ser usados, como pesos e estilos adicionais, espaçamentos entrelinhas e entreletras, marcadores para listas ou bordas para tabelas, entre outros. Ela também estimula a pessoa a criar para a linguagem simples uma rotina de testes, avaliação e aperfeiçoamento, num processo iterativo (esse termo que a galera do UX adora). A existência dessa norma da ABNT para linguagem simples é importante para que organizações públicas e privadas no Brasil tenham um guia de estudo e aplicação.


Do lado da tipografia e do design gráfico em geral, não faltam recursos para a implementação e adequação de um texto ou mensagem à linguagem simples. Existem recursos mais óbvios, como as próprias fontes com seus atributos formais (com ou sem serifa, baixo ou alto contraste, pesos e estilos, etc.). Sabemos que, em geral, fontes sem serifa tendem a funcionar melhor para frases curtas, que precisam ser rastreadas ao invés de lidas. O uso de maiúsculas em poucas palavras favorece a leitura impromptu, de “batida de olho”, sendo comum em sinalização rodoviária. Frases um pouco mais longas, por sua vez, tendem a beneficiar-se do uso de minúsculas, em que letras como “a”, “g”, “i” e “l” têm formas menos ambíguas. Apesar dessas dicas, eu não sou tão defensor de “receitas de bolo” em tipografia, e a própria linguagem simples estimula o profissional a criar um ciclo iterativo de verificar e aperfeiçoar. Por isso, mesmo essas “receitas” podem ser testadas e postas à prova com o tempo.
Só que temos outros recursos além das fontes; mensagens eletrônicas podem beneficiar-se de ícones e emojis usados corretamente. O uso de pesos, estilos e tamanhos diferentes pode ter uma função estrutural, que ajuda a tornar a comunicação mais clara. Se você vê uma ou duas palavras em negrito e/ou com tamanho maior que o restante das palavras, provavelmente estamos falando de um título ou subtítulo que estabelece uma hierarquia da informação. Essa hierarquia ajuda o leitor a saber de antemão o conteúdo e a relevância da informação para o que precisa, permitindo a ele aprofundar-se no conteúdo, buscar outra coisa e/ou até prevenir erros. O uso adequado de margens e espaços em branco entre parágrafos e seções também colabora para separar o conteúdo em áreas de interesse, facilitando o rastreamento da informação desejada.

Imagino que você lembre do episódio do 89th Academy Awards em 2017, em que erros na hierarquia de informação impediram Warren Beatty e Faye Dunaway de entenderem que estavam com o cartão errado e anunciarem o prêmio para outro filme durante a cerimônia. Mesmo que a fonte e a composição usada não oferecessem problemas de legibilidade per se — texto curto em maiúscula com fonte sem serifa —, a diagramação dos elementos tornou difícil a prevenção de erros e induziu à situação constrangedora em seguida. Isso ajuda a mostrar que, quando falamos de linguagem simples, não é algo que só os UX writers deveriam ter domínio. Ao contrário, é uma oportunidade que o design tem de tomar o vocabulário e as convenções de leitura como ferramentas de programação visual e criação de sistemas mais usáveis, em que o tom de voz é pensado para o usuário na mesma medida que os demais elementos. Em vários momentos, a linguagem simples utiliza princípios do design em suas diretrizes, e torna-se difícil falar de um sem tirar o outro da conversa, mostrando esse velho conhecido aspecto do design de ser multidisciplinar.
Entender a importância da linguagem simples não exige que a gente enxergue muito longe. Segundo estudo da ONG Ação Educativa e do Instituto Paulo Montenegro de 2018, a cada 10 brasileiros entre 15 e 64 anos, três são analfabetos funcionais, não conseguindo compreender textos simples. O mesmo estudo aponta que somente 37% da população brasileira possui níveis de alfabetismo intermediário ou proficiente, com facilidade para entender sinais de pontuação e figuras de linguagem. Por mais que seja impossível uma linguagem que seja entendida por todas as pessoas, comunicar-se tendo como alvo um letramento que menos da metade das pessoas possuem é impraticável. Isso apenas torna as organizações, sejam o Estado ou entidades privadas, pouco inclusivas, inacessíveis e não-confiáveis.

A norma sobre linguagem simples ajuda, também, a centralizar todas as iniciativas dedicadas a melhorar, facilitar e/ou tornar mais empática a comunicação textual. Algumas, como “linguagem inclusiva” ou “linguagem cidadã”, são quase totalmente contempladas pela linguagem simples, facilitando sua adoção país afora. É compreensível que uma língua, em sua complexidade e variedade, não pode apenas deixar seus vocábulos pra trás em nome de homogeneizar a comunicação. Só que, pra tudo, tem seu público: existe os 63% da população brasileira que demandam mais cuidado na criação de comunicação textual, para que não se criem dúvidas ou ambiguidades, e o texto atinja a clareza necessária. E mesmo entre os 37% restantes, sem um esforço apropriado para que o texto seja claro, essas pessoas basicamente não vão ler. Outrossim3, terá um ou outro que, imbuído do espírito ranzinza de Graciliano Ramos, verá uma frase começando com “outrossim” e, após um longo suspiro e uma tragada de café, mandará um “Outrossim… Outrossim é a puta que o pariu!”
Recomendações
🎥 Vídeo: Por quê as placas de trânsito dos EUA são diferentes do resto do mundo?, (em inglês) mostrando as diferenças históricas na consolidação do regulamento de trânsito na América do Norte e na Europa.
🔗 Link: ABNT NBR ISO 24495-1:2024, a tradução oficial da ABNT para a norma da ISO sobre linguagem simples.
🇧🇷 Fonte brazuca: Aconchego, de Henrique Beier e Fabio Haag.
API é a abreviatura de Application Programming Interface, uma interface técnica que permite a aplicativos consultarem uma base remota de dados de terceiros, utilizando os parâmetros adequados, e obterem um resultado desejado para exibir numa interface gráfica.
LLM é a abreviatura de Large Language Model, um princípio de modelagem de dados para o processamento e geração de linguagem escrita, como o ChatGPT.
“Outrossim”: do mesmo modo, igualmente.