Tipo Aquilo #61 – A letra (tipográfica) da lei
A tipografia dentro do legal design e do visual law
Dona Lena tinha o sonho de ver a filha virar médica e o filho advogado. A filha virou uma ótima fisioterapeuta; o filho até tinha futuro, mas um anjo torto, desses que vivem nas sombras, disse “Vai Carlos! Ser designer na vida”. Pelos devires da vida, hoje eu estou mais perto dos que tiveram as almas perdidas ao não ler os termos de uso numa brincadeira de 1º de abril do que dos advogados que acharam que isso seria uma forma engraçada de convencer as pessoas a ler os contratos que aceitam. Humor de advogado (vai entender…) ou um incentivo para que as pessoas atentem-se a detalhes muito importantes desses contratos, que você nunca poderia viver sem saber, como a cláusula de uso do iTunes que te impede de usá-lo para fabricar armas nucleares.
Apesar da piadinha, o universo do direito é tido como complicado e distante das pessoas. Quase ninguém pode dizer que teve uma experiência agradável ao ler contratos, memorandos, petições, sentenças e outros documentos supostamente carregados de juridiquês e vocabulário complicado, e formatados sem nenhuma preocupação de tornar o conteúdo mais confortável de ler. Essa confusão parece exclusiva ao público comum, mas também afeta juristas e magistrados, que precisam lidar com petições mal-redigidas ou sentenças confusas, e oferecer uma resposta correspondente. Essa resposta deve ater-se ao que a causa precisa para que a justiça seja feita, mas é influenciada por vários fatores, como redações ruins e formatações que inspiram, no mínimo, desconfiança. Esses são alguns dos motivos que levam juristas a trazer inovações em seus processos e produtos, capitaneados pelo legal design e o visual law, temas do episódio de hoje.
Em grupos de design gráfico e tipografia, correu há alguns anos a notícia de uma ação trabalhista extinta por causa da fonte utilizada na petição inicial. Sem saber o conteúdo da ação, é possível achar descabida a atitude do juiz, já que a dita imparcialidade da justiça deveria prevalecer mesmo que o advogado escrevesse um documento inteiro com Papyrus (por favor não!). Se entendemos a petição como um produto de design, identificamos o juiz, um ser humano com vieses e possibilidades de cometer erros, como principal usuário desse produto. É o magistrado quem faz a leitura e toma a decisão correspondente; assim, um documento que proporcione uma leitura confortável de seu conteúdo, tanto em formatação quanto em texto, tem mais chance de ser deferida… ou menos chance de virar anedota.
Podemos estender essa forma de apresentar conteúdo a outros lugares fora dos tribunais… comecei esse texto falando de termos de uso de softwares e serviços on-line porque quase ninguém lê esses termos do início ao fim. Contratos de prestação de serviços também entram nesse status de coisas que deviam ser lidas, mas que poucos leem porque infelizmente são feitos para não serem lidos. Além da formatação nem sempre confortável, a redação abusa do juridiquês para conferir a maior objetividade possível e não dar margem para interpretações fora do desejado, prejudicando a leitura por pessoas comuns. Iniciativas como a do Pinterest, que traz um “simplificando” no final de cada seção explicando-a em linguagem simples, são mais que bem-vindas para o usuário. O GitHub também apresenta uma versão resumida de cada seção antes que você precise se aprofundar no texto inteiro, e até o termos de uso do Google são um bom exemplo de como abrir mão do legalese.
(se você queria uma tradução em inglês para juridiquês, hoje foi seu dia de sorte)
Já tive a oportunidade de defender o uso da linguagem simples em outra edição, e fico feliz que ela esteja avançando em outros campos além do UX. Muitos advogados, ao escrever documentos oficiais, enchem o texto de termos complicados, frases longas e conhecimentos comuns do universo do direito, com o intuito de fazer o conteúdo menos dúbio possível. No entanto, mais palavras nem sempre representa maior objetividade: de acordo com o grupo de pesquisa Visulaw, uma das grandes queixas entre magistrados e juristas é que a redação da maioria das petições, por exemplo, apenas reforça o óbvio e não destaca o que o juiz tem pouco conhecimento. Argumentação genérica (71,9%), redação prolixa (71,2%) e número excessivo de páginas (62%) são vistos como os maiores problemas de petições entre juízes.
No caminho oposto, o relatório do grupo aponta que, dentre os mais de 500 juízes entrevistados, uma redação objetiva com boa leiturabilidade é um fator de agrado para 96% dos magistrados. A defesa de uma boa tipografia vem logo em seguida, com 66% dos juízes apontando uma boa formatação textual como fator de agrado em petições. Esse é um momento em que o legal design ajuda não apenas o advogado a ter uma petição deferida, mas também o juiz a ter uma leitura melhor do documento. Não se trata de maquiar e embelezar um documento, mas sim de tomá-lo como um produto de design com requisitos, usuários e objetivos bem definidos, centrado nos seres humanos, e tornar mais acessível a comunicação entre os agentes do meio jurídico. Até juízes simpáticos ao legal design têm visto uma melhor compreensão de seus documentos, como sentenças melhor entendidas pelas partes.
O legal design ainda é uma área em desenvolvimento tanto no design quanto no direito, mas já existem no Brasil várias consultorias sobre o assunto. No entanto, a área tem mais a oferecer do que documentos melhores: o legal design propõe-se a repensar, humanizar e tornar mais acessíveis todos os aspectos do meio jurídico, desde impressos até a estrutura física e os pontos de contato virtual dos tribunais. Nesse ínterim, o visual law surge como uma ferramenta do legal design que, segundo Presgrave et al. (2021), utiliza técnicas que conectam a linguagem escrita com a linguagem visual ou audiovisual. Esse é um ponto em que o direito e o design de informação trocam figurinhas, pois este oferece formas de descrever elementos de documentos jurídicos que são mais agradáveis, atrativas e acessíveis do que o texto puro. Ao contrário do que as pessoas podem pensar, por mais conservadoras que pareçam as tradições jurídicas, a grande maioria dos juízes federais são receptivos ao uso desses elementos visuais em petições, desde que o uso moderado delas favoreça o entendimento e análise das peças processuais.
Alguns usam o visual law como desculpa para transformar documentos jurídicos em algo parecido com apresentações de PowerPoint, cheios de cores e formas, mas que pecam em não apresentar uma linha narrativa concisa e qualquer familiaridade com o tipo de documento em questão. Segundo o relatório do grupo VisuLaw, documentos que trazem uma apresentação visual menos familiar com as demais tendem a desagradar mais magistrados. A ideia que norteia o uso do visual law em casos bem sucedidos é o de usar outros recursos além do texto puro para mostrar e organizar informação, indo desde simples listas e tabelas até gráficos demonstrativos, fluxogramas e outros dispositivos visuais que tornem um conjunto de informações melhor compreensível.
(desde que essas informações façam algum sentido, né Deltan…)
A tipografia, nesse contexto, não deve ser resumida à gaveta de fontes do Microsoft Word; combinada com uma boa redação, ela torna-se um importante instrumento de persuasão do advogado ou do juiz. Quando as escolhas de estilo e formatação conferem uma leitura agradável, com hierarquia de texto bem definida, tamanho de corpo de texto e entrelinhas agradáveis, espaços entreletras confortáveis e margens que dão respiro à mancha de texto, há maior conforto cognitivo para o leitor, melhorando sua capacidade de julgamento. A ausência de regras de formatação em documentos jurídicos abre um espaço sutil para que, mesmo usando fontes mais ortodoxas e voltadas para leitura de texto corrido, o autor expresse sua personalidade e diferencie-se no meio de um mar de documentos em Times New Roman e Arial.
Essas iniciativas de simplificação de linguagem são bem-vindas e ajudam a reduzir a desconfiança das pessoas comuns acerca do direito. Séries como Law & Order, Suits e Os 7 de Chicago têm um mérito, por mais que você tenha gostado ou não de assisti-las: elas fazem o universo do direito parecer compreensível. Na vida real, não tem alguém gritando YOU CAN’T HANDLE THE TRUTH no tribunal. No cotidiano, casos como o do menino Evandro Caetano e da modelo Ângela Diniz dependem da boa vontade de alguém para puxar fios soltos de grandes meadas de documentos oficiais, filmagens de julgamentos modorrentos e quase intermináveis, e outros recursos parados em repartições públicas para que virem boas histórias. Esse tipo de realidade é o que o legal design busca mudar, uma petição de cada vez.
Recomendações:
🎧 Podcast: JurisCast #61, com Erik Fontenele Nybo e Tiago Fachini conversando sobre o legal design dentro do jurídico brasileiro.
🎥 Vídeo: Visual Law ou ABNT? uma análise do assessor jurídico Júlio Xavier de como evitar o mau uso de recursos de visual law.
🔗 Link: Typography for Lawyers, (em inglês) a edição online do guia de Matthew Butterick para um bom uso da tipografia em documentos jurídicos.
🇧🇷 Fonte brazuca: Petala Pro, de Marconi Lima.
Nota do editor:
Vim aqui só pra trazer mais um link que acabou sem espaço no texto, mas acho que vale a atenção de vocês e é meio correlato ao tema de hoje; é o TOSDR, que faz um trabalho primoroso de ler os termos de uso dos principais serviços online disponíveis e mostrar um resumo dos pontos mais críticos em relação a privacidade e proteção de dados pessoais. Vale a pena ver os resultados dos serviços que vocês têm conta e, talvez, quem sabe, tomar mais cuidado com os nudes e outras informações pessoais. (=
Escrito em 100111.04