Tipo Aquilo #89 – Mãos-sujas em greve
Três histórias de greves dos trabalhadores da tipografia
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Greves, em geral, são um mal necessário às relações trabalhistas, quando existe um desequilíbrio profundo e insustentável entre as políticas do trabalho e os poderes econômicos de seus empregadores. O desandar que vários filmes e séries enfrentaram após as greves de roteiristas de Hollywood em 2007 e 2023 mostra o quanto esse desequilíbrio não pode ser absorvido apenas por uma classe sem que o consumidor final seja afetado. Sendo filho de um ex-sindicalista dos eletricitários, eu tenho algumas histórias boas (e outras, nem tanto) sobre greve. Pra mim, o pior momento de um piquete grevista é quando alguém bota pra tocar no alto-falante “Pra não Dizer que não Falei das Flores”, do Geraldo Vandré, o que claramente é uma estratégia de dissuasão de outros trabalhadores para que nem tentem entrar no recinto.
Antes dos sistemas informáticos serem o grande paradigma do consumo e produção de informação, isso ficava a cargo dos mãos-sujas, os trabalhadores que operavam prensas, compunham matrizes e produziam os impressos que, por sua vez, armazenavam e transmitiam informação e conhecimento. Os tipógrafos e impressores, postos num novo modo de trabalho com a consolidação das fundições, tinham uma importância vital para a sociedade até o séc. XX. Eles tinham noção da importância deles, e não foram poucas as vezes que recorreram a greves para que tivessem suas reivindicações ouvidas — e, nem sempre, atendidas. O Tipo Aquilo de hoje traz a história de três dessas greves que tiveram uma grande importância para a história da tipografia e das relações entre trabalhadores, empregadores e as sociedades de onde elas aconteceram.
Comecemos pelo nosso querido Brasil. O processo que levou ao fim da escravidão, ao longo de todo o segundo reinado, foi vergonhosamente lento, preservando a sociedade numa mentalidade aristocrata e deixando a economia vulnerável a cada nova restrição ao escravismo. O tráfico negreiro havia sido proibido pela Lei Eusébio de Queiroz em 1850, e o encarecimento da mão-de-obra fez subir os preços de todos os produtos e serviços. Em 1858, os compositores tipográficos do Rio de Janeiro cansaram-se de ver seus salários corroídos pela “carestia” (termo da época que refere-se ao encarecimento pela inflação) dos alimentos, bens e aluguéis; em 8 de janeiro, os 32 compositores do Jornal do Commercio, 26 do Correio Mercantil, e 22 do Diário do Rio de Janeiro, cruzaram os braços e, com apoio da Associação Tipográfica Fluminense, declararam a que é considerada a primeira greve1 de proletários da história do Brasil.
Os grevistas, importante ressaltar, eram apenas os compositores; os impressores e demais trabalhadores da então indústria gráfica tinham que associar-se em outras entidades. Os três jornais foram substituídos pelo Jornal dos Typographos, um folhetim que durou até março de 1858, e foi o meio com que os grevistas dialogavam em uníssono com os proprietários dos jornais e a sociedade, expondo as causas da paralisação, os abusos cometidos pelos donos dos periódicos, o ponto de vista deles sobre os problemas sociais, e um chamado para que os trabalhadores se unissem em entidades de classe. Embora tivessem seus salários aumentados em 1855, a inflação da época anulou os ganhos e deixou os tipógrafos em situação difícil, devidamente explicada ao imperador Pedro II em carta, com a intercessão da Associação dos Tipógrafos da então capital federal.
Os donos de jornais reagiram, cobrando que a polícia prendesse e punisse os grevistas e acusando-os de vandalizar as gráficas e instalações. Contudo, ao ouvi-los, a polícia não tomou outra atitude além de recomendar moderação. Outra reação, feita com apoio do Ministro da Fazenda da época, foi deslocar provisoriamente os trabalhadores da Tipografia Nacional para os jornais — alguns destes publicariam, meses depois, algumas crônicas do escritor e tipógrafo Machado de Assis. Esse desvio, forçado pelo ministro Souza Franco, não foi bem aceito pelos grevistas e os tipógrafos envolvidos. A legislação trabalhista da época era regida pelo recente Código Comercial Brasileiro, promulgado em 1850, que pouco arbitrava sobre rompimento de contrato de trabalho por justa causa (Gabriel, se quiser me ajudar nessa questão, agradeço imensamente; inclusive, sigam o
); dessa forma, os grevistas reivindicavam, além do aumento, uma câmara que julgasse apropriadamente a causa desta e de outras greves. Após três meses de negociações, os compositores retornaram a seus trabalhos, tendo seus salários aumentados, e enfim semeando o movimento sindicalista no país.Outro movimento grevista bastante influente foi a paralisação dos impressores de Toronto. Em 1872, a super revolucionária e disruptiva ideia de trabalhar apenas nove (!!) horas por dia, ante jornadas de 10 a 12 horas, motivou os trabalhados da Toronto Typographical Union a reivindicarem em bloco a redução dos períodos diários de trabalho. O Nine Hour Movement era um movimento formado por ferroviários de Hamilton (próximo de Toronto) que, logo, ganhou adeptos nas cidades próximas e, com o tempo, em todo o Canadá. Só que, ao verem a demanda ser ignorada pelos donos de jornais e gráficas do país, os gráficos, liderados por J.S. Williams e John Hewitt, cruzaram os braços em 25 de março e organizaram protestos pacíficos pela cidade. No mais famoso, em 15 de abril, dois mil grevistas partiram da King St. em direção à Yonge St., marchando em direção ao Queen's Park, onde cerca de 10 mil manifestantes juntaram-se para reivindicar menores jornadas de trabalho.
Os donos de jornais e periódicos, representados pelo jornalista e político do então partido liberal George Brown, ordenaram o imediato retorno ao trabalho, ameaçando os grevistas de prisão. A atividade sindical era proibida na época, o que levou os organizadores a serem presos — incluindo Williams e Hewitt. A represália truculenta de Brown, então dono do jornal Toronto Globe, revoltou os cidadãos da cidade, simpáticos aos grevistas em sua maioria, e motivou mais protestos a favor da jornada de trabalho de nove horas. A exemplo do curso da greve brasileira, Brown trouxe às pressas outros trabalhadores temporários para ocupar as gráficas vazias — em sua maioria, trabalhadores rurais apelidados de “ratos caipiras” pelos grevistas e jornalistas simpáticos à causa. Sob a batuta de George, os donos de periódicos organizaram-se no Master Printers’ Association, que entrou em litígio contra o sindicato dos tipógrafos por conspiração. Estes movimentos, contudo, apenas alimentaram a antipatia popular contra Brown.
Aproveitando-se desse momento de fragilidade política, o então Primeiro Ministro John Alexander Macdonald, conservador e rival de Brown, conseguiu a aprovação do Trade Unions Act, uma nova legislação que regulamenta e protege a atividade sindical no Canadá desde então. A curto prazo, a promulgação dessas leis protegendo os sindicatos foi a única vitória dos grevistas; contudo, outras entidades de classe solidarizaram-se e passaram a reivindicar a jornada de trabalho de nove horas, consolidando os sindicatos e associações de trabalhadores no país. Embora os patrões e empregadores tenham conseguido manter as jornadas de trabalho como estavam, após a Primeira Guerra Mundial e a crise econômica de 1929, os movimentos trabalhistas no mundo obtiveram sucesso em pautas ainda mais robustas, como jornadas de oito horas por dia e outros benefícios. O Dia do Trabalho no Canadá, comemorado em toda primeira segunda-feira de setembro, existe como lembrança desses movimentos iniciados pelo Nine Hour Movement.
Contudo, não é só de sucesso que se faz a história das greves dos impressores. O caso mais recente, aliás, levou a uma das crises mais profundas do sindicalismo no Reino Unido, em que a Wapping Dispute foi brutalmente vencida pelos empregadores, apoiados em peso pelo governo de Margaret Thatcher. Até 1986, as gráficas dos principais jornais ingleses concentravam-se na Fleet St., onde apenas os afiliados dos sindicatos da indústria gráfica eram admitidos como empregados — prática chamada closed shop. Os jornais ainda eram, em sua maioria, feitos por composição a quente, utilizando as máquinas da Linotype, e os empregados comumente eram filhos de antigos gráficos, em decorrência da impossibilidade a não-afiliados de serem contratados. Rupert Murdoch, dono da News International e, por consequência, de alguns dos jornais mais lidos da Grã-Bretanha, tinha a ambição de modernizar o parque gráfico de seus jornais, migrando para a impressão offset e o desktop publishing, e aumentando a eficiência dos processos de redação e impressão.
Só que essa modernização tinha como consequência a demissão de todos os impressores e compositores que viviam em função da composição a quente. Diante dessa ameaça, os sindicatos ingleses de impressores anunciaram greve no início do ano. As propostas de pagamento de compensações de até 30 mil libras aos demissionários foi sumariamente recusada pelos sindicatos. Em represália, a News International montou, na surdina, um novo parque gráfico no distrito portuário londrino de Wapping. Nessa nova instalação, o poder de closed shop dos sindicatos de gráficos não teria influência porque os computadores e equipamentos modernos de impressão eram operados por trabalhadores de outro sindicato. Thatcher incentivou esse movimento, operando sua política de colocar sindicatos de diferentes classes em rota de colisão e até permitindo a desfiliação de trabalhadores. Mais de 6 mil funcionários foram demitidos do dia para a noite, com a transferência da redação e impressão para Wapping.
Os liberais promoveram um boicote aos jornais de Murdoch, e os grevistas organizaram piquetes e outras tentativas de impedir a produção e distribuição destes jornais, além do acesso dos trabalhadores às instalações em Wapping. A hostilidade entre sindicalistas e a News International perdurou até fevereiro de 1987, com diversos protestos duramente reprimidos pela polícia, em que mais de 500 agentes ficaram feridos e mais de 1500 trabalhadores foram presos. Contudo, vendo os ganhos de eficiência promovidos pelo desktop publishing e a impressão offset, outros jornais também deixaram a Fleet St. e migraram para o distrito, aprofundando a crise dos impressores e o clima de tensão contra as empresas de mídia e o governo Thatcher. Após um ano de repressão violenta sem salários, os sindicatos encerraram os protestos e a greve; derrotados, eles ficaram incapazes de negociar qualquer pauta. A Fleet St. deixou de ser o grande centro londrino de produção gráfica, e todos os sindicatos do Reino Unido viram seu poder sumariamente enfraquecido.
Embora eu faça um pouco de piada sobre o sindicalismo dos anos 1990 (eu vivi, logo, eu posso), a articulação em conjunto de trabalhadores é responsável pelos benefícios que conferem um mínimo de dignidade à atividade laboral. Temos um futuro em que, por exemplo, jornadas de trabalho de quatro dias por semana não parecem mais algo tão utópico (ou uma previsão keynesiana que não deu tão errado). É para alcançar essas utopias e manter os direitos conquistados ao custo de suor e sangue de vários manifestantes, que eu me dou ao trabalho de trazer essas histórias e incentivar que você, designer (ou não, seja qual for a sua classe), busque seus pares e lute pelos seus direitos.
Só, que… sem Vandré, por favor. ;)
Recomendações:
🎥 Vídeo: The Nine Hour Movement, (em inglês) um vídeo do GeoMinute explicando em resumo o Nine Hour Movement, que deu origem à greve dos impressores de Toronto.
🔗 Link: Escravismo, proletários e a greve dos compositores tipográficos de 1858 no Rio de Janeiro, o artigo do prof. Artur José Renda Vitorino sobre a greve dos tipógrafos cariocas e a sociedade da época, que foi base para o texto desta edição.
🇧🇷 Fonte brazuca: Machado Serifada, de Marconi Lima.
Escrito em 101682.263
Embora seja a primeira greve de trabalhadores assalariados no Brasil, a greve dos tipógrafos não foi a primeira greve de fato; paralisações de escravizados aconteceram antes, como a greve dos negros carregadores de 1857 em Salvador.
Opa! Desafio aceito!
Eu às vezes tenho a impressão de que quando um sindicato é criado e vai se afiliar à CUT, recebe um CD com as MP3 para tocar nos piquetes, entre essas Geraldo Vandré mas também Índia Seus Cabelos e outras. XD