Tipo Aquilo #87 – A fundação das fundições
O nascimento da indústria tipográfica e das fundições de tipos
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O assunto de hoje é meio denso, então hoje vamos sem preliminares (ui!). Se conhecer a história e formação das type foundries (empresas que fabricam tipos e criam fontes tipográficas) te interessa, vem comigo que vai ser legal. Se não… bem, talvez eu tenha escrito algo mais interessante nos últimos cinco anos. Deixa um recado nos comentários, sendo esse o caso, e a gente se vê de novo daqui a duas semanas.
Comecemos pelo começo, então. Entender como a tipografia funcionava antigamente, e o como são abismais as diferenças dela para o modelo atual, demanda que a gente entenda alguns conceitos elementares. Por isso, vamos pelo básico do básico: existiram os dinossauros e o insumo mais básico da tipografia é a letra, representada pela unidade de alguma coisa em que a forma da letra está gravada. A ideia é que, com várias unidades dessa alguma coisa, a forma da letra possa ser reproduzida muitas vezes em infinitas configurações possíveis. No tempo de Gutenberg, essa alguma coisa eram os tipos móveis de metal — geralmente, alguma liga metálica com predominância de chumbo —, que podiam imprimir milhares de vezes as letras que tinham gravadas, e são chamados de “móveis” porque podem ser montados, desmontados, guardados e remontados infinitas vezes de infinitas formas, como peças de Lego.
Só que, assim como as peças de Lego precisam de uma fôrma, os tipos móveis também precisam de um “molde” e uma “receita” para serem fabricados. Por isso, os mestres gravadores tinham o domínio de algumas ferramentas específicas e um processo de produção manual, passado apenas para alguns aprendizes. Se, em pleno começo da Idade Moderna, você quisesse ter uma gráfica, você precisava conhecer um agiota saber gravar seus próprios tipos móveis, fazer suas ferramentas e equipamentos, dominar o processo de fabricação, adquirir insumos como tinta e papel, e ter muita sorte em fazer sua gráfica ser rentável. Muita sorte mesmo. No começo, foram poucos os que se aventuraram nessa indústria e conseguiram fazer dinheiro, ou não terem tudo tomado por dívidas. Nem Gutemberg conseguiu.
Só que a demanda por livros e outros impressos cresceu consideravelmente após o séc. XV, quando as primeiras tipografias conseguiram estabelecer uma produção inicial com custos não tão proibitivos quanto algumas décadas antes. Em meados de 1490, um livro custava em média um mês de salário de um professor; cem anos antes, um livro podia custar o equivalente a uma casa. Esperar que cada gráfica criasse seus próprios tipos móveis e equipamentos não era mais viável. Com isso, vender conjuntos de tipos móveis tornou-se um novo negócio para os gravadores. A primeira type foundry que se tem conhecimento é a de William Caxton, criada em 1476 na Inglaterra. No entanto, os gravadores holandeses rapidamente alcançaram um patamar de qualidade no começo dos anos 1500 que fez com que seus tipos móveis fossem requisitados por toda a Europa — até na Inglaterra de Caxton. Gravadores como Henric Pieterszoon, Tavernien, Henrik Van der Keere e Christoffel Van Dijck foram reconhecidos por seus tipos de alta qualidade e suas formas barrocas de letras que passaram a ter um “gosto” holandês apreciado por impressores.
Essa divisão de trabalho permitiu dissociar de um único indivíduo ou grupo seleto as atividades de fundição e de impressão, criando um novo mercado em que os holandeses lideraram até o séc. XVIII. Embora a fundição de Caxton tenha sido a primeira da história, o mercado interno inglês foi dominado pelos tipos holandeses, muito superiores em qualidade aos produzidos no sub-continente bretão. Isso mudou com William Caslon e John Baskerville. Em 1720, Caslon estabeleceu sua fundição e conseguiu, enfim, rivalizar com os holandeses em qualidade e custo, tornando-se populares nas gráficas inglesas e rapidamente ocupando as impressões estabelecidas nas colônias que correspondem aos atuais EUA e Canadá. A própria carta da Declaração de Independência dos EUA foi composta com tipos Caslon. Baskerville, mais tarde, deu um passo além em qualidade e estilo, embora seus tipos não tenham sido tão adotados quanto os de Caslon.
O uso de ligas metálicas mais maleáveis e resistentes ao uso diário, além de melhorias na qualidade de tintas e papeis, permitiu aos cortadores de letras que seus caracteres tivessem mais contraste entre traços finos e espessos. Esse aperfeiçoamento tecnológico, somado à mudança de mentalidade numa Europa caminhando para o Iluminismo e o pensamento cartesiano, mudou o próprio desenho das letras. O contraste formado pelo desenho com a pena quadrada deu lugar aos traços finos feitos com régua, esquadro e compasso, tão geometricamente perfeitos quanto possível. As Romanas do Rei, criadas para a Imprensa Régia francesa, são um exemplo fiel dessa concepção de desenho de tipos. Os 270 alfabetos criados por Giambattista Bodoni entre 1758 e 1813 também ilustram essa mudança de uma tipografia “clássica” para um desenho moderno, com constrastes marcantes, sem resquícios da pena quadrada.
Bodoni, chamado de “rei dos impressores”, é um dos últimos românticos gravadores de letras clássicos, que devotaram suas vidas inteiras a um único modelo ideal de desenho de letras, assim como Nicolas Jenson, Claude Garamont (sim, com “t” mesmo), Baskerville, Caslon e outros que o precederam. Tanto que as fontes digitais que levam seus nomes atualmente são reconstruções de letras que os respectivos gravadores fizeram e aperfeiçoaram ao longo de suas vidas. Do séc. XIX em diante, as necessidades da indústria gráfica colocaram o gravador e o impressor em lugares separados. O número de type foundries cresceu em toda a Europa, fornecendo caixas de tipos móveis de diferentes estilos de letras, numa proporção de uma fundição para cerca de cem oficinas de impressão. Por sua vez, o impressor fornecia livros, folhetos, e uma série de novas demandas que o recém-criado mercado publicitário passou a exigir, como cartazes, pôsteres e outros grandes formatos.
A variedade de type specimens (catálogos impressos pelas fundições com exemplares de seus tipos disponíveis para venda e fabricação) mostra como um grande número de type foundries tentavam atender essa demanda crescente. Abriu-se, por exemplo, um mercado para tipos altamente decorados, com ornamentos internos que tentavam restaurar um traço da essência das antigas iluminuras e miniaturas medievais. Tipos com serifas toscanas e adornos vitorianos também apareceram nessa época. Num caminho oposto, essa concorrência de fundições e fontes fez com que surgissem as fontes sem serifa, com suas primeiras aparições em 1832 nos catálogos da Vincent Figgins e da Fann Street Foundry, ambas inglesas. Provisões de tipos para outros alfabetos além do latino também eram diferenciais para algumas fundições. Além dos tipos de metal, algumas fundições especializaram-se na fabricação de tipos de madeira, feitos para atingir tamanhos de corpo de texto inviáveis de serem fabricados com metal. Geralmente feitos com desenhos de letras condensadas para o mercado publicitário, os tipos de madeira ajudaram a popularizar novos estilos de serifa, até que elas simplesmente ficassem para trás, definindo o estilo tipográfico grotesco.
Também nos anos 1800, as primeiras type foundries foram estabelecidas fora da Europa, com a John Baine & Grandson criando uma sede em Philadelphia em 1790. Alguns anos depois, outras fundições de tipos foram criadas em Boston e New York, e até o fim do século, em San Francisco. No Reino Unido, entre fusões, falências e aquisições, existiam cerca de 30 fundições até os anos 1900. O forte crescimento da economia alemã e a anexação de territórios vizinhos fez com que ela chegasse a 87 fundições nesse mesmo ano, abastecendo um mercado de mais de 6 mil gráficas espalhadas pelo país teutônico. Outras dezenas de fundições espalhavam-se pela Europa, tomando proveito de inovações trazidas pela revolução industrial, como os pantógrafos mecânicos que reproduziam com fidelidade o desenho de uma letra em diferentes escalas. A galvanotipia, um processo eletroquímico que permitia a pirataria descarada rápida reprodução de moldes em metal, também tornou-se presente em várias fundições. Como brasileiro não desiste nunca, também entramos em cena com a Fundição de Typos Henrique Rosa em 1899 e a Funtimod em 1932.
Só que a revolução industrial não parou por aí. A mecanização dos processos industriais levou a invenções como as máquinas de composição com metal quente, como o monotipo e linotipo. Essas máquinas compunham linhas inteiras em poucos segundos injetando metal quente contra uma fileira de moldes e, ano após ano, tornaram obsoleta a composição manual nas gráficas de jornais. Com isso, no início do século XX, observa-se num cenário global uma queda no número de fundições, contrariando a tendência de séculos anteriores. Ok, a gente leva também em conta o dano causado por duas guerras mundiais, mas o mercado mostrou um grande número de fusões, aquisições, associações e outras maneiras que as fundições encontraram para tentar continuar sendo relevantes. Elas precisavam, antes de tudo, sobreviver ao avanço da mecanização e da tecnologia, e às próprias dinâmicas do capitalismo que, ora caminham para uma concorrência aberta e franca, ora rumam para a formação de cartéis e monopólios.
A revolução industrial parece um ponto final na história da fundação das fundições, mas será um final apenas para este texto. Olhando uma linha do tempo inteira, ela soa mais como um ponto-e-vírgula; o linotipo e o monotipo não nasceram com o mesmo charme e as mesmas possibilidades da composição manual, mas isso foi apenas um mero detalhe que nunca impediu a massificação da composição a quente. Também foi assim nas décadas em que a fotocomposição foi a grande bola da vez, e está sendo assim nestas últimas quatro décadas de tipografia digital. Só que, nos 45 do segundo tempo do século XX, os computadores passaram a mudar a curva do número de foundries mundo afora, permitindo que existam milhares delas espalhadas por todos os continentes, cada uma com sua voz e seus princípios até que a Monotype compre todas elas e nunca mais exista tipografia. Contudo, não deixa de ser um tanto poético e bonito que elas honrem a mais singela das tradições de séculos anteriores: mesmo que não derretam um grama de metal, e que seus únicos fornos sejam o microondas de esquentar miojo, elas ainda são type foundries.
Recomendações:
🎧 Podcast: Bring to Front #2, (em inglês) com Margot Trudell (do Toronto Design Directory) conversando com o type designer e professor Jamie Chang sobre a vivência em uma foundry independente.
🎥 Vídeo: Uni Mainz – The production of metallic type, (em inglês) um vídeo resumindo os passos da criação de tipos móveis utilizados desde Gutenberg.
🔗 Link: How Type Traveled Across Nations and Foundries, (em inglês) um artigo do Letterform Archive sobre a expansão das type foundries pelo mundo.
🇧🇷 Fonte brazuca: FS Brabo, de Fernando Mello.
Escrito em 101586.634
Uma história incrível. Vc manda muito bem. A história das fundições teve um novo capítulo recente que foi a compra da centenária Linotype pela centenária Monotype. E outro ponto que sempre quis saber sua opinião: a IA está para os "designers" assim como os tipos móveis estavam para os escribas?
Como professor de História e amante das letras, livros e tipos, achei bem interessante o texto!
Você conhece algum romance histórico e/ou filme que fale, ainda que de forma paralela, sobre esse processo de desenvolvimento da indústria tipográfica?