Tipo Aquilo #85 – Machado de Assis, escritor e tipógrafo
O ofício da tipografia na vida do mais célebre autor brasileiro
Tempo de leitura: 8 minutos
Esta edição baseia-se no artigo Machado de Assis, Tipógrafo, da pesquisadora e professora do Instituto de Letras da UFBA, Dra. Tatiana Sena dos Santos.
Não é de hoje que a comunidade literária brasileira enaltece Machado de Assis pela curiosidade que os livros dele despertam mundo afora, tendo inclusive matérias em universidades fora do Brasil dedicadas a estudar sua obra. A escritora e podcaster americana Courtney Henning Novak foi mais uma a pegar gosto pela obra de Machado, durante sua jornada de ler um livro escrito em cada país existente e compartilhar sua experiência e impressões no TikTok. Pela reação dela, suponho que ela não esperava a riqueza de Memórias Póstumas de Brás Cubas, nem a comoção que os brasileiros no Tiktok tiveram ao ver seu maior romancista enaltecido. É mais ou menos o que acontece quando gringos elogiam brasileiros por qualquer coisa, um fenômeno que mostra o sentimento de que existir sendo brasileiro é ter que superar obstáculos com o dedo médio em riste para o norte global.
A edição de hoje não é pra falar das Memórias Póstumas. Eu sou um péssimo exemplo de leitor (desculpa, amigos escritores que me seguem aqui… amo, respeito e invejo vocês), deixei Machado pra trás desde o ensino médio. Só que algo na vida de Joaquim Maria Machado de Assis me pegou quando descobri: ele trabalhou como aprendiz de tipógrafo antes de enveredar-se para a vida de escritor. Esse período é tido como um consenso entre estudiosos e biógrafos de Machado, embora alguns questionem as evidências desse período dele trabalhando com tipografia. De qualquer forma, essa é uma oportunidade para falar do autor e da tipografia no Brasil no pós-independência. Então, ao prelo que primeiro imprimiu as palavras dos tipos de seu componedor, dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas esta edição.
Por mais manuais que fossem vários processos da impressão tipográfica, a atividade ainda era vista como fabril e, por isso, proibida no Brasil Colônia. A tipografia surgiu oficialmente por aqui após a chegada da família real portuguesa à sua maior colônia em 1807, fugidos das tropas napoleônicas. Enquanto a América Hispânica já tinha dezenas de oficinas tipográficas espalhadas pelo continente, o Brasil entrou no mundo tipográfico de vez com a fundação da Imprensa Régia, em 1808, no Rio de Janeiro, a nova sede da corte até 1821. O processo de industrialização do Brasil começou a passos módicos após a declaração de independência em 1822, abrindo espaço para o surgimento das primeiras oficinas tipográficas privadas e, (muito) mais tarde, das primeiras fundições de tipos móveis.
Isso não quer dizer que todos os livros vendidos no Brasil Imperial passaram a ser produzidos aqui. Algumas editoras ainda mantinham a impressão de seus exemplares na França e em Portugal, a fim de sustentar uma demanda por livros que o parque gráfico nacional ainda não era capaz de suprir. É nessa onda de crescimento da atividade tipográfica nacional que encontramos Machado de Assis, nascido em 21 de junho de 1839, no Morro do Livramento, Rio de Janeiro. Perdeu cedo os pais, sendo criado pela madrasta e educado na igreja. Começou a trabalhar com tipografia nas oficinas de impressão de Francisco de Paula Brito, jornalista, poeta, escritor e intelectual carioca, considerado um dos precursores da imprensa negra no Brasil.
Paula Brito é uma pessoa importante para entendermos um pouco da formação intelectual de Machado de Assis. Negro e nascido de uma família humilde, Brito fez da tipografia seu ganha-pão. Trabalhou na Imprensa Nacional (nome dado à Imprensa Régia após a independência do país), aprendeu as virtudes do ofício e, mais tarde, comprou alguns estabelecimentos, prelos e tipos móveis, fundando suas próprias oficinas tipográficas. Em 1833, ele fundou o jornal O Homem de Cor, o primeiro jornal brasileiro a discutir questões ligadas à desigualdade racial (não esqueça que a escravidão ainda era vigente no Brasil, durando até 1888) e combater o preconceito contra a população negra no país. Paula Brito também era um agitador cultural, reunindo nomes célebres da literatura romântica nacional em sua Sociedade Petalógica, como Antônio Gonçalves Dias e Joaquim Manuel de Macedo. Foi um de seus jornais, Marmota Fluminense, que publicou em 1855 o poema “Ela”, escrito por um de seus empregados, um certo Machado de Assis.
Machado aprendeu os processos da impressão tipográfica, sendo capaz de compôr outros poemas publicados no jornal. No ano seguinte, ele conseguiu emprego de aprendiz na Imprensa Nacional, dirigida na época por Manuel Antônio de Almeida — outro membro dos Petalógicos —, onde ficou até 1858. Contudo, Machado voltou a trabalhar com Paula Brito como revisor de provas, e O Marmota continuou a receber diversas contribuições do novato, permitindo que o jovem ascendesse no meio literário fluminense. Depois, passou a ganhar a vida como jornalista e cronista, escrevendo contos retratando a sociedade carioca e, mais tarde, os livros da trilogia realista que fizeram dele um dos maiores escritores do Brasil: Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro e Quincas Borba.
Apesar de ter deixado o ambiente da oficina de impressão, a tipografia continuou a fazer parte de sua carreira. Sabendo como funcionam os processos em que os manuscritos tornam-se impressões, tinha cuidado com o uso de palavras que ele julgava poder confundir os compositores, e usava de recursos da composição tipográfica que apenas uma pessoa com conhecimento próprio de tipografia poderia utilizar em suas obras. Ele chegou a escrever, por exemplo: “tenho sempre medo quando escrevo a palavra Parlamento. (…) Sistema Parlamentar, composto às pressas, pode ficar um sistema para lamentar”. Conseguia também, com o conhecimento adquirido nas gráficas, tecer críticas sutis à sociedade carioca usando termos próprios da produção (tipo)gráfica. Em Memórias Póstumas, escreve que “não somos um público in-fólio1, mas um público in-12, pouco texto, larga margem, tipo elegante, corte dourado e vinhetas”, uma alfinetada em um público de elite, porém incapaz de consumir obras mais densas e com poucos adornos.
Esse é aquele momento em que “o resto é história”, com o Machado de Assis cronista e escritor carioca consolidando-se, com o passar dos anos, como o principal nome do realismo literário brasileiro, sendo literatura obrigatória no currículo escolar. A formação do clichê machadiano custou-lhe, contudo, o apagamento de sua identidade racial (sendo descrito como branco pelo escrivão de sua certidão de óbito) e de seu passado como tipógrafo. Embora a tipografia fosse essencial para a produção e disseminação de informação na época, os mãos-sujas da indústria tipográfica não tinham nenhum glamour entre a sociedade. Aliás, sociedade, esta, que herdou da corte imperial o desprezo aos subalternos e prestadores de força de trabalho à nova burguesia brasileira. Machado retratou essa petulância em seus livros e crônicas; ironicamente, sua época como subalterno da Imprensa Nacional e das oficinas de Paula Brito foram apagadas de seu clichê. O buraco que o escritor deixou sobre sua vida, nunca tendo escrito uma autobiografia nem comentando sobre a cor de sua própria pele, tornou-se um silêncio conveniente.
A elite brasileira (da época) era também convenientemente ambígua, adotando seletivamente alguns artistas cuja produção soava-lhe afável, enquanto consumia e valorizava tudo que vinha da Europa cosmopolita. Desde os produtos e bens de consumo ao próprio meio de vida, costumes e hábitos, tudo era importado de Paris, Londres e da antiga metrópole Lisboa. Embora a tipografia já tivesse quatro séculos de existência, a produção gráfica local ainda parecia algo estranho. Os livros feitos aqui ainda concorriam, em quantidade e qualidade, com os livros impressos na França, Espanha, Portugal e Inglaterra — assim como quase todo tipo de bem de consumo. Com a industrialização tardia do Brasil, as próprias gráficas viviam com todos os seus insumos produzidos no exterior, desde os tipos móveis aos prelos e impressoras mecânicas. As primeiras fundições brasileiras surgiram apenas no final do séc. XIX, como a Fundição Henrique Rosa. Sobre fontes… bem… seja bem-vindo à primeira geração de brasileiros usando fontes brasileiras, e não repara a bagunça.
Essa é uma de várias contradições de que o Brasil, em mais de 200 anos de país independente, nunca conseguiu se livrar. Machado foi concebido nessas contradições, expondo-as com algum pudor e elegância. Teve sua imagem de escritor consumida por essas contradições; nascido de pai mulato alforriado, morreu “branco”. Vindo de uma família humilde, sua vida operária foi discretamente suprimida; ninguém imagina um gênio com mãos sujas de tinta. Dessa forma, não parece estranho que ele cause alvoroço ao ser “redescoberto” exatamente quando tornou-se um hype mundo afora. Memórias Póstumas tornou-se, nas últimas semanas de maio, o livro mais vendido na Amazon. Apesar disso, é bom que ele seja trazido de volta num Brasil mais consciente de suas próprias contradições.
Falando em contradições… me desejem sorte para a próxima vez que eu tentar ler Machado de novo. Eu vou, eu juro.
Recomendações:
🎧 Podcast: CBN Podcast – Hora do Expediente – Machado de Assis é pop?, com Dan Stulbach, José Godoy e Luiz Gustavo Medina discutindo sobre o sucesso repentino de Memórias Póstumas de Brás Cubas no Tiktok.
🎥 Vídeo: Antofágica – Conhecendo Memórias Póstumas de Brás Cubas, com o Prof. Rafael Valim comentando sobre a obra mais famosa de Machado de Assis, analisando alguns detalhes e a relevância do livro para a literatura e a sociedade.
🔗 Link: Machado de Assis, Tipógrafo, artigo original da Prof. Tatiana Sena, usada como referência para esta edição.
🇧🇷 Fonte brazuca: Silva Text, de Daniel Sabino.
Escrito em 101414.503
In-fólio e in-12 são formatos de livros com medidas distintas. O in-fólio designava um volume com medidas aproximadas de 43 cm de altura e 33 cm de largura, próprio de enciclopédias e livros com muitas páginas. Por sua vez, in-12 era um volume com medidas próximas de 18 cm de altura e 8 cm de largura, próprio de noveletas e livros mais curtos. Machado usou esses termos como uma forma de dizer que o público letrado brasileiro era averso a conteúdos densos e enriquecedores, preferindo consumir amenidades escritas em livros menores e rasos. O próprio capítulo em que este trecho é encontrado, “Volta ao Rio”, encerra anunciando sua brevidade para que fosse capaz de caber em uma página de um livro: “Mas não; não alonguemos este capítulo. Às vezes, esqueço-me a escrever, e a pena vai comendo papel, com grave prejuízo meu, que sou autor. Capítulos compridos quadram melhor a leitores pesadões (…)”, sabendo que tudo que havia escrito anteriormente ocuparia apenas uma folha, dado seu passado de tipógrafo. Para ver mais formatos de livros antigos, veja esta página da Abe Books.
Machado deve ser lido (ou relido) após os 30, Cadu. Dê uma chance a 'Memórias Póstumas...'. Eu tbm o considero um dos melhores (senão o melhor) livros já escritos até hoje. Te impacta, te conquista e te choca a cada capítulo quando você imagina alguém escrevendo-o quando foi escrito. Parabéns pelo artigo!