Tipo Aquilo #39 – O Cozinheiro Nacional
De vez em quando, eu gosto de usar esse canto aqui pra falar de livros antigos. Não apenas pelo lado tipográfico, de entender como era o uso dos tipos móveis e outros meios antigos de produção gráfica, mas também como uma maneira de entender melhor a sociedade da época desses livros. Hoje, essa edição dedica-se ao nascimento das duas grandes editoras brasileiras pós-independência, por meio de dois personagens: o Cozinheiro Imperial e o Cozinheiro Nacional, dois dos livros mais antigos de gastronomia do Brasil.
Há algumas semanas, falei aqui da expansão da tipografia pela América Latina e de como o Brasil chegou atrasado nesse processo. A proibição de atividades fabris durante o período colonial frustrou tentativas de produzir impressos em solo brasileiro, como a de Antônio Isidoro da Fonseca, e a demanda por livros e impressos era suprida exclusivamente por Portugal. Isso começou a mudar a partir de 1808, com a abertura comercial da colônia e a instalação em solo brasileiro da Biblioteca Real. Também chegaram o prelo, as caixas de tipos e as prensas que formariam a Imprensa Régia, detentora da exclusividade de impressão tipográfica no Brasil até 1821.
O processo de independência do Brasil foi movido por uma elite que havia enriquecido durante a presença da realeza no Brasil, que consumia livros importados da França e Inglaterra, mas tinha uma demanda latente por volumes impressos no Brasil. Essa elite fez nascer e prosperar, mais tarde, a Livraria Universal, fundada em 1833 pelo alemão Eduard Laemmert. O sucesso da livraria motivou Eduard a expandir a livraria para uma editora, junto com seu irmão Heinrich. Aprendeu o ofício de tipógrafo, trouxe três impressoras para o Brasil e, em 1838, fundou a Typographia Universal, impressora de vários dos livros mais antigos do Brasil, como os populares Almanaques Laemmert.
Em 1840, foi lançado o primeiro livro de gastronomia impresso no Brasil, o Cozinheiro Nacional ou Nova Arte do Cozinheiro e do Copeiro em Todos os Seus Ramos, assinado por um suposto cozinheiro da família imperial chamado apenas por suas iniciais, R.C.M. Suas receitas eram inspiradas em dois volumes portugueses antigos, A Arte da Cozinha de 1640, e Cozinheiro Moderno de 1780. No entanto, ele não trava-se apenas de um compêndio de receitas: apesar de estar focado em receitas vindas da Europa, o livro trazia também ilustrações de ingredientes especiais, informações sobre o modo certo de preparar ambientes para banquetes, medidas convertidas para unidades locais da época, para quê servia cada tipo de talher e louça, o roteiro correto de comidas a servir, e tudo que alguém precisava saber para orientar os serviçais — em maioria, analfabetos e escravizados.
Agregar essas informações em um volume único era comum para a época, à exemplo dos almanaques que buscavam condensar em volumes únicos todo tipo de curiosidades que pudessem. Os livros produzidos pela Typographia Universal, feita no Rio de Janeiro, precisava viajar para vários cantos do Brasil, a fim de atender às elites locais (burgueses e nobres) e projetar nelas os ideais de luxo e realeza da então capital do novo império brasileiro; por isso, agregavam todo o conhecimento possível num encadernado. O livro funcionava como um guia para tudo relacionado à cozinha. Embora as oficinas tipográficas começassem a aparecer pelo Brasil, poucas tinham a qualidade de impressão e encadernação da fábrica de livros dos irmãos Laemmert. A presença deste e outros livros numa casa era vista como um luxo.
A atenção à cozinha local começou com a publicação de A Doceira Brazileira, em 1850, também pela Typographia Universal. O livro de autoria de Anna Maria das Virgens e Constança Oliva de Lima reforçava a tradição feminina da confeitaria, mas começava a incorporar receitas trazidas pela população africana escravizada. Essa tendência consolidou-se com o terceiro livro brasileiro de gastronomia, Cozinheiro Nacional ou Collecção das Melhores Receitas das Cozinhas Brasileira e Europêas para a preparação de sopas, molhos, carnes, caça, peixes, crustáceos, ovos, legumes, pudins, pastéis, doces de massa e conservas para sobremesa; acompanhado das regras de servir a mesa e de trinchar.
O concorrente foi lançado entre 1860 e 1870 pela Garnier, outra livraria nacional nascida após a independência. Diferente dos irmãos Laemmert, a editora de Baptiste Louis Garnier concentrava sua produção em Paris e Londres, imprimindo nesses lugares livros de vários autores brasileiros, como Olavo Bilac, Joaquim Nabuco e um certo Machado de Assis. O Cozinheiro Nacional era impresso na França, mas trazia diversas receitas comuns na gastronomia brasileira, influenciada pela população indígena e africana. Seu sucesso comercial motivou os irmãos Laemmert a adicionar receitas nacionais nas edições seguintes do Cozinheiro Imperial; algumas dessas adições foram feitas pela própria Constança, do Doceira Brazileira.
Assim como seu concorrente, o Cozinheiro Nacional funcionava como um almanaque de conhecimentos consoantes à cozinha, trazendo desde as receitas aos modos à mesa, instruções de refeição, como gelar bebidas, e até elixires caseiros para aliviar dores e desconfortos. Outro destaque do Cozinheiro Nacional era um guia de substituição de ingredientes, que auxilia o cozinheiro a produzir no Brasil receitas com insumos indisponíveis no país. Algumas dessas substituições são curiosas: a recomendação de usar chuchu ou abóbora d’água ao invés de pepino, abóbora no lugar de cenoura e tomates no lugar de uvas desperta curiosidade sobre porque esses ingredientes comuns na nossa cozinha atual eram descritos como incomuns, e um breve perfil da dieta dessa sociedade.
Outra peculiaridade desses livros é que as receitas tinham poucas indicações de quantidade. Entendia-se que os leitores já tinham noções prévias de cozinha antes de aventurar-se pelas receitas, ou que as receitas não demandavam medidas exatas por serem transmitidas oralmente entre gerações. Quanto tempo a sua geléia de galinha (não me pergunte) precisava assar no forno à lenha? Só os experientes sabem. O toque final de sabor ficava à cargo do cozinheiro, que contava com sua intuição para garantir uma boa refeição para grandes banquetes e também jantares íntimos de… 12 pessoas. Numa sociedade sem restrições de procriação, os núcleos familiares eram muito maiores que os atuais.
As editoras dos Laemmert e de Garnier foram as grandes livrarias dos primeiros anos do Brasil Império; no período em que seus fundadores estavam vivos, as duas editoras foram as grandes impressoras e vendedoras de livros da elite brasileira. Além dos livros de cozinha, os Almanaques Laemmert eram grandes sucessos de venda e importantes registros da vida cotidiana brasileira, sendo até hoje registros importantes para o estudo da economia e sociedade da época. A Garnier, por sua vez, foi uma grande tradutora de volumes antes disponíveis apenas em francês, além de popularizar grandes autores brasileiros e os formatos franceses in-oitavo e in-doze de livros. As duas ajudaram, enfim, a colocar o Brasil como um pólo de produção editorial. Fomentaram o começo da produção tipográfica no país, ainda que numa escala muito pequena, com desenhos de letras e ornamentos vindos de fora feitos por pequenas fundições, como a Henrique Rosa.
A virada para o século XX, infelizmente, trouxe tristes destinos para as duas editoras, enfrentando algumas fatalidades e sucessivas mudanças de donos. Seus livros podem ser encontrados em bibliotecas públicas, e o conteúdo de alguns deles, em domínio público, são impressos até hoje. Os próprios Cozinheiro Imperial e Cozinheiro Nacional têm impressões recentes disponíveis à venda, e são um registro importante de uma sociedade que estava, enfim, aprendendo os ofícios da tipografia e os meios necessários para imprimir sua história.
Recomendações:
🎧 Podcast: Pastelando #12, com Leticia Dáquer, Meg Ganciné, Guilherme Atêncio e Tupá Guerra discutindo sobre os dois livros e os costumes culinários do Brasil pós-colônia.
🎥 Vídeo: Imprensa Nacional comemora 210 anos, uma reportagem da NBR sobre a história da imprensa no Brasil, desde a fundação da Imprensa Régia até a estrutura da Imprensa Nacional.
🔗 Link: Biblioteca Brasiliana, que reúne um grande acervo de obras antigas e raras no Brasil, como exemplares dos livros desta edição.
🇧🇷 Fonte brazuca: Guanabara, de Rodrigo Saiani.
Escrito em 98946.7