Tipo Aquilo #32 – As letras abertas da América Latina
Um dos melhores sites da Internet de todos os tempos é o Spurious Correlations, uma coleção de gráficos que relacionam contextos distintos com progressões semelhantes e correlações absolutamente não-causais. Por exemplo, apresentam progressão semelhante a quantidade de divórcios no estado norte-americano de Maine e o consumo per capita de margarina nos Estados Unidos. Nessa edição, eu começo com dois dados interessantes sobre a América Latina, e que o cruzamento deles também caracteriza uma correlação estranha, a princípio.
De um lado, temos Argentina e Chile logo à frente do Brasil entre os países com mais hábito de leitura na América Latina; do outro, temos Argentina e Chile logo à frente do Brasil em projetos selecionados na última bienal do Tipos Latinos. Se a gente olhar para como a tipografia se espalhou na América durante e após os períodos de colônia — história esta que vamos conhecer mais hoje —, dá pra entender melhor os resultados do Tipos Latinos; se você quiser partir para uma reflexão mais profunda e entender a tipografia como um elemento na formação de registros escritos e uma memória coletiva da população, e também na alfabetização, educação e propagação de cultura, a correlação fica um pouco menos estranha.
Por um certo fetiche nosso, se você perguntasse a uma pessoa não tão leiga onde foi estabelecida a primeira oficina tipográfica da América, ela diria que foi nos Estados Unidos, e estaria errada. Em verdade, a primeira prensa instalada em solo americano foi na Cidade do México, em 1539 pelo impressor lombardo Juan Pablos. Antonio Espinosa, impressor mexicano formado na Espanha, provavelmente foi o primeiro gravador de tipos do Novo Mundo: data de 1554 o Recognitio summularum, um antigo documento impresso na oficina de Juan Pablos com tipos gravados por Espinosa após seu regresso ao México. Atualmente, a imprensa de Pablos é o museu Casa de la Primer Imprenta de América.
O Peru é o segundo lugar onde se tem registro de prensas tipográficas instaladas na América, sendo instalada em Lima, 1584. Enquanto o Vice-Reino da Nova Espanha (que reunia toda a América Central e o sul e leste dos EUA) era a porção colonizada mais próxima da península ibérica, o território peruano compunha o antigo Vice-Reino do Peru, que tornou-se a maior fonte de ouro e prata explorados pela metrópole. A maior parte dos registros históricos da colonização espanhola vêm destes dois lugares.
Além do registro das atividades de exploração de ouro e prata, as imprensas coloniais tinham a função de preparar material catequético em línguas nativas para o processo “civilizatório” das populações indígenas, massacradas nos primeiros anos da colonização. As missões jesuíticas fizeram com que outros pontos das colônias erguessem universidades e, em consequência, oficinas impressoras nos séculos seguintes. Entre 1610 e 1612, foi estabelecida uma oficina de impressão nas proximidades de La Paz; no final do séc. XVII, missões instaladas no atual Paraguai, que tinham notável reputação com a fabricação de livros, adquiriram suas próprias oficinas tipográficas.
Nestas mesmas missões paraguaias, há registros de tipos móveis feitos com estanho por volta de 1703, e dois anos mais tarde, sendo usados para produzir o primeiro livro “totalmente feito na América”. Anos mais tarde, a oficina de impressão de Loreto, na Argentina, também passou a produzir impressos para evangelização das populações nativas. A Companhia de Jesus em Loreto dispunha de uma impressora móvel, que ela conseguia levar para outros pontos próximos e fazer impressões localmente; isso fez com que seus tipos sofressem grande degradação e perda de qualidade, ao ponto de que várias impressões preservadas de Loreto apresentem problemas sérios de consistência entre letras e entrelinhas. Nos anos seguintes, Bogotá (1739), Quito (1760), Nueva Valencia (Venezuela, 1764), Córdoba (1766), Santiago (1776) e Buenos Aires (1779) estabeleceram suas primeiras oficinas impressoras locais.
Acho que vocês estão sentindo falta de um certo lugar, né? Então, dizem boatos que a invasão holandesa à Capitania de Pernambuco em 1630, talvez, quizás, sais pas, tenha estabelecido uma impressão local, mas a falta de registros coloca isso no campo da mera especulação. O que existe realmente registrado é a iniciativa de Antônio Isidoro da Fonseca de montar, no Rio de Janeiro, a primeira oficina tipográfica da América Portuguesa. Em 1747, Isidoro começou a produzir alguns de seus numerosos impressos, e também em 1747, teve que fechar sua oficina por ordem da coroa portuguesa. O fechamento decorria da proibição de qualquer atividade fabril na colônia e da necessidade de exame prévio do Santo ofício sobre o conteúdo de qualquer impresso.
Isidoro nunca conseguiu uma licença real para estabelecer uma oficina impressora em solo brasileiro; apenas quando Dom João VI precisou fugir de uma invasão napoleônica à Portugal, em 1808, que o Brasil finalmente teve sua imprensa oficial. A modernização necessária para acomodar o novo status do Brasil de Reino Unido a Portugal trouxe no mesmo ano os primeiros jornais brasileiros: o Correio Braziliense, impresso em Londres, e o Gazeta do Rio de Janeiro, de imprensa nacional. O impacto da presença de impressos periódicos na sociedade brasileira é análogo à prensa tipográfica para a reforma protestante na Alemanha, em que de repente, muitas pessoas passaram a ter acesso a esse conteúdo, e novos pensamentos efervesceram nas pessoas junto com o desenvolvimento do país.
Também no séc. XIX, o Brasil abrigaria suas primeiras fundições de tipos móveis. Até a independência do Brasil, outras cidades, como Recife, Belém e Vila Rica (Ouro Preto) também tinham tipografias instaladas; depois de 1822, diversas oficinas surgiram no Brasil, o que alimentou a demanda por tipos móveis que não podiam mais depender apenas de importação. No entanto, os tipos móveis fabricados pela Typographia Americana, Fundição Franceza, Henrique Rosa e, posteriormente, Funtimod e Manig tinham seus caracteres licenciados de fontes produzidas majoritariamente na Europa.
O único registro de tipos móveis desenhados e criados no Brasil no séc. XIX é datado de 1821, em que o paraense João Francisco Madureira apresenta uma solicitação ao governo do Grão-Pará para que pudesse imprimir e produzir tipos em sua oficina. O grande detalhe dessa solicitação, como eu contei lá na primeira edição, é que ela foi composta e impressa por tipos produzidos pelo próprio Madureira, com desenhos de letras originais. Apesar de tamanha inventividade, ele nunca conseguiu licença oficial para o exercício de tipógrafo no Brasil.
O pioneirismo de Madureira não impediu que o Brasil entrasse com grande atraso no mercado de criação de fontes tipográficas, junto à chegada das cartelas de fontes decalcáveis e, posteriormente, dos computadores e formatos digitais de fontes. Isso eu deixo pra contar outra hora porque são histórias que merecem um cuidado especial. Um reflexo desse atraso é o quanto o peso da economia brasileira em relação à América Latina não se reflete na quantidade de projetos selecionados no Tipos Latinos de type designers brasileiros. Não que falte qualidade por aqui; arrisco que falte mais type designers brasileiros mesmo.
Comprovar uma causalidade entre menos fontes produzidas e menos hábito de leitura demanda mais do que apenas essa história toda, mas dá pra levantar uma suspeita. Apesar do recorte tipográfico que eu consigo pesquisar mais facilmente, o Brasil não é um país que parece ter uma boa relação com as letras em geral, tanto com a leitura quanto a escrita. Ainda amargamos dados como 11 milhões de analfabetos, menos de um quinto das cidades brasileiras com ao menos uma livraria e o hábito de leitura menos frequente entre os brasileiros. É complicado fomentar uma cultura de desenhar e criar letras quando o povo não é incentivado sequer a gostar de ler.
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Recomendações:
🎧 Podcast: Scicast #373, sobre a colonização da América Espanhola.
🎥 Vídeo: D Todo - Casa de la primera imprenta en América (em espanhol), uma visita ao museu mexicano que abriga a primeira tipografia da América.
🔗 Link: Tipos Latinos, organização que promove a tipografia na América Latina e realiza as Bienais de Tipografia Latino-Americana.
🇧🇷 Fonte brazuca: FS Irwin, de Fernando Mello.
Escrito em 98499.76