Vamos falar de fontes #4 – Brasilêro e 1 Rial
Letras vernaculares brasileiras na tipografia digital
Falar do cenário do letreiramento vernacular brasileiro é algo que facilmente ocuparia várias edições do Tipo Aquilo. A forma com que os abridores de letras manifestam-se em lugares diferentes do Brasil ainda é pouco estudada, perto do que ela pode oferecer em soluções criativas e inspiração para calígrafos, type designers e ilustradores de letras. A variedade de trabalhos que apoiam-se em pesquisas como as dos pintores de letras de Pernambuco e do Pará, desde suas publicações, é um exemplo do quanto a letra popular brasileira merece ser estudada.
Por isso, essa edição do Vamos falar de fontes foge de seu estilo tradicional para tratar de dois frutos tipográficos do olhar cuidadoso ao letreiramento popular brasileiro, e prestar reverencia tanto aos designers citados e suas fontes, quanto a todos que aventuram-se com uma necessidade na cabeça e um pincel na mão para pintar letras.
Brasilêro, de Chrystian Cruz
Esse interesse pelas letras vernaculares como referência tipográfica não é um fenômeno recente. Durante a onda experimentalista de tipografia digital no Brasil na década de 1990 e o começo dos anos 2000, vários designers aventuraram-se em criar fontes digitais baseados em referências populares. Algumas, mais específicas, como o Profeta Gentileza ou o Bispo do Rosário; outras, mais abrangentes, agregando desenhos espalhados em pontos diferentes.
Essa abordagem abrangente foi tomada pelo designer e professor Crystian Cruz para a criação da Brasilêro (sim, com ê mesmo), que é uma das fontes brasileiras mais usadas tanto no Brasil quanto mundo afora. É improvável que voce não tenha visto ela sendo usada em alguma peça publicitária, capa de livro ou CD, revista ou banner digital. Desenhada em 1999 e lançada em 2003, a Brasilêro inspira-se em letreiros populares discretamente perdidos pela paisagem urbana ou espalhados em beira de estrada, feitos sem o rigor técnico de abridores ou tipógrafos com mais experiência.
Só que é exatamente esse abraço às formas tortas e sem eixo uniforme, casamentos improváveis entre formas cursivas e romanas, e desenhos pouco ortodoxos (como o “A” quadrado) e até “errados” de letras (como o “N” e o “S” invertidos), que torna a Brasilêro tão distinta, famosa e bem-sucedida. Cada letra facilmente faz você pensar em “eu já vi uma placa com um ‘J’ desses lá perto de casa” ou algo assim.
Mas não é apenas de imperfeição que a Brasilêro é feita. Ela não se limita a uma colagem de letras espalhadas em placas diversas, oferecendo um contraste uniforme entre as formas das letras e uma leve aleatoriedade no alinhamento das letras com a linha de base, dando um caráter manual a textos compostos com a fonte. Também há uma certa aleatoriedade no contraste das letras, mimetizando a pincelada pouco hábil durante a abertura das letras. A fartura de caracteres com sinais diacríticos permite a ela ser usada mundo afora, em aplicações onde a manualidade da Brasilêro reforça valores lúdicos ou naïf.
1 Rial, de Fátima Finizola
A efervescência da produção tipográfica digital no Brasil também teve como fruto a 1 Rial, da designer e professora Fátima Finizola. Assim como a Brasilêro, ela toma o letreiramento vernacular como referência, trazendo letras maiúsculas advindas de placas de pequenos comércios de Recife, capital de Pernambuco. Lançada em 2006, a 1 Rial (sim, com i mesmo) traz um set de caracteres maiúsculos com diacríticos para a língua portuguesa, favorecendo seu uso em várias aplicações. Das mais famosas, a arte do álbum “Brasil Afora”, dos Paralamas do Sucesso.
A 1 Rial apresenta caracteres que mimetizam letras abertas de forma rústica, com pincel retangular em traços com pouca precisão. Nota-se também uma simplificação do desenho de algumas letras, como o “A”, o “O” e o “U” que utilizam desenhos retangulares, que o abridor de letras consegue replicar e harmonizar com outras letras mais facilmente. Dessa forma, a fonte proporciona uma unidade com outras letras que naturalmente lançam mão de ângulos retos e traços retos proeminentes.
Formas redondas aparecem na 1 Rial em letras como “C”, “G”, “J”, “Q” e “S”, onde é possível ver uma simplificação do traço redondo, que naturalmente exige maior destreza do pintor de letras. É possível notar também uma leve inclinação das letras — mais acentuada nas letras “M” e “N”. Essa pequena inclinação não é aleatória; ela cria um efeito de “itálico” nas letras que afasta elas de uma cultura mecanizada. Por mais retos que sejam os traços das letras, elas ainda parecem criadas por uma pessoa.
Embora a 1 Rial seja um belo trabalho de design tipográfico que presta reverência ao letreiramento popular, ela representa um recorte de um estilo específico de letras manuais. A pesquisa acadêmica que deu origem ao livro “Abridores de Letras de Pernambuco” tem importância fundamental para mostrar a riqueza da diversidade das letras vernaculares do estado, e expôr essa riqueza para o Brasil.
Onde adquirir
Brasilêro, Crystian Cruz, no site pessoal do designer.
1 Rial, Fátima Finizola, sob consulta da Corisco Design.
Escrito em 101387.181
Cara, que legais essas fontes!