Tipo Aquilo #50 – Tipos brasileiros da era do bit lascado
Esta edição é baseada nos livros O Design Brasileiro de Tipos Digitais, de Ricardo Esteves, e Fontes Digitais Brasileiras: de 1989 a 2001, organizado por Priscila Farias e Gustavo Piqueira.
Em algumas edições do TA, as histórias mostram com certa clareza os atrasos que o Brasil teve em relação à tipografia. Dois momentos cruciais foram a proibição de atividades manufatureiras no período colonial e a reserva de mercado de produtos de tecnologia, imposta durante a ditadura militar. Nestes dois momentos, perdemos o bonde de transformações importantes que a produção tipográfica vivia no mundo. Especialmente nos anos 1970 e 1980, em que a tipografia digital chegava a seus primeiros formatos de criação e distribuição comercial, mas o Brasil mal tinha computadores para abastecer um mercado latente, e uma redação ou outra tinha o luxo do desktop publishing.
Isso parece triste, a princípio; no entanto, os anos seguintes foram marcados por uma intensa corrida contra o atraso que teve dois resultados importantes. Primeiro, uma produção de fontes sui generis, que olhava para o que vinha de fora mas também refletia sobre as letras abertas por aqui. Segundo, a formação de uma comunidade ativa, pensante e producente de designers, professores e pesquisadores brasileiros que criaram fontes, trocaram conhecimento, ministraram workshops, palestras e conferências, e disseminaram a palavra da tipografia para que ela alcançasse o nível de excelência e reconhecimento internacional que várias fontes brasileiras têm no mercado. A edição de hoje é uma pequena reverência a esse momento da tipografia brasileira, movida a disquetes, internet, cerveja e muita experimentação.
Para entender como essa corrida começou, precisamos voltar a 1989. Nessa época, o Muro de Berlim foi abaixo, o Macintosh completava cinco anos no mercado e aplicativos como o Fontstudio e o Fontographer ofereciam um ambiente poderoso para criar fontes vetoriais. No Brasil, a transição lenta, gradual e segura (risos) permitiu aos brasileiros escolherem um presidente pela primeira vez em 25 anos, e algumas iniciativas de criação de fontes em solo brasileiro compreendiam experimentos de reproduzir fontes tradicionais para uso em legendas, e a criação de letras derivadas de logotipos feitas pelo uruguaio Eduardo Bacigalupo.
A reserva de mercado de tecnologia acabaria apenas dois anos mais tarde, mas com jeitinho, um computador ou outro chegava a escritórios e casas brasileiras. Num deles, instalado na redação da Folha de S. Paulo, o ilustrador Tony de Marco deu vida à primeira fonte digital brasileira com desenho inédito de que existe registro, a Sumô. Tony desenvolveu outras fontes digitais nos anos seguintes, inaugurando um período de desenvolvimento de tipos majoritariamente experimentais, que seguiam a tendência do design desconstruído de designers como David Carson. A falta de livros e materiais didáticos sobre tipografia fez com que as primeiras fontes digitais fossem criadas desbravando os recursos das ferramentas existentes por conta própria.
Essa primeira fase da produção tipográfica brasileira teve uma explosão entre 1997 e 2001, conforme mais lares e escritórios informatizados ganhavam acesso à Internet. Até que a conexão caísse por um modem queimado ou alguém tentando usar a linha telefônica, a Internet era um espaço aberto para a colaboração e troca de conhecimento, experiências, e até das próprias fontes e ferramentas de criação, como o recém-criado FontLab Studio. A possibilidade de publicar e vender fontes autorais foi outro motivador para as dezenas de fontes produzidas por designers independentes e pequenos estúdios, como o Tipos do aCASO, Fontes Carambola, Subvertaipe, Tipos Maléficos, Gemada Tipográfica, Elesbão e Haroldinho, Tipograma, entre outros.
As fontes corporativas das empresas Graal, TransBrasil e Ultragaz, projetadas por Fernanda Martins, são exceções a esse período experimental e inauguram a lista de fontes feitas sob medida por designers brasileiros. No entanto, a maioria das fontes brasileiras desse período mostravam formas que colocavam a legibilidade à prova, exploravam as possibilidades do desenho vetorial, consumiam funcionalidades como o live tracing, simulavam a escrita manual, a sujeira da impressão no desenho tipográfico, e até usavam fontes clássicas como insumos para produzir novos vetores. Dessa forma, designers usavam a tipografia não apenas como um recurso a favor da desconstrução de projetos gráficos e das noções tidas como canônicas no design gráfico, mas como uma forma de expressão per se. Fontes como a Gema e a Underscript, de Claudio Rocha, a LowTech e a Quadrada, de Priscila Farias, foram as primeiras a serem revendidas internacionalmente, por meio da distribuidora T-26.
A virada do século inaugurou uma fase de amadurecimento da produção tipográfica no Brasil, uma passagem do bit lascado para o bit polido da tipografia digital. Três marcos inaugurais dessa nova fase foram: a exposição “Tipografia Brasilis”, realizada em São Paulo de 2000 a 2002 e promovida pela FAAP; o lançamento da revista “Tupigrafia” no ano 2000, de Claudio Rocha e Tony de Marco; e a família tipográfica Houaiss, desenvolvida pelo designer e professor Rodolfo Capeto e lançada em 2001 para a versão impressa do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Esses três marcos referem-se tanto à guinada que os desenhos dos tipos brasileiros teriam daquele ponto em diante, quanto às atividades de promoção e difusão de conhecimento sobre tipografia no Brasil.
A Tipografia Brasilis, em seus três anos, reuniu diversos trabalhos de tipografia experimental e letreiramento, celebrando a safra de type designers brasileiros, ajudando a inserir tipografia como uma nova categoria na Bienal de Design Gráfico da ADG, e trazendo em sua última edição um workshop do designer de tipos argentino Ruben Fontana. Outros workshops promovidos na Bienal de Design Gráfico da ADG de 2002, com o designer inglês Bruno Maag, e em eventos locais ajudaram a espalhar conhecimentos e práticas da criação de fontes para novos interessados. Nessa década, nasceram também os primeiros congressos de tipografia feitos no Brasil, como o DNA Tipográfico em 2003 e 2005 (organizado pela Tupigrafia e Senac/SP); o Letras Latinas, depois rebatizado de Tipos Latinos, reunindo tipógrafos de toda a América Latina; e o DiaTipo, que acontece desde 2008.
Além do conhecimento trazido por type designers estrangeiros em workshops, a partir dessa década, vários brasileiros tornaram-se alunos de prestigiadas especializações em tipografia em países como Argentina, Espanha, Países Baixos e Reino Unido; as conferências da ATypI também passaram a ter mais brasileiros entre seus participantes. As fontes produzidas por brasileiros alinham-se mais com o mundo em termos de estilo e de excelência, com várias fontes para títulos e textos alcançando projeção internacional. A presença dessas fontes em distribuidoras famosas, como a FontSmith e a Dalton Maag, soma-se a um número crescente de fontes vendidas na plataforma MyFonts, criada pela Bitstream (hoje, da Monotype) para disponibilizar fontes de estúdios e foundries independentes. O volume anual de fontes inéditas publicadas por brasileiros na plataforma passa de três em 2002 para 109 em 2009, atingindo o pico de 214 novas fontes em 2007.
Assim como a quantidade de fontes, também cresceu a literatura sobre tipografia em língua portuguesa, graças ao trabalho de autoria e tradução de vários pesquisadores brasileiros. Fico até feliz por serem tantos livros e autores que seja inviável citá-los aqui sem penosas omissões (mea culpa aqui): traduções de André Stolarski e Luciano Cardinali para livros importantes, e as obras de Priscila Farias, Leonardo Buggy, Claudio Rocha, entre outros, ajudaram a dar nomes às convenções tipográficas consolidadas no exterior, espalhar a palavra da tipografia e dar mais referências bibliográficas para os trabalhos acadêmicos de novos alunos.
A despeito desse amadurecimento, o Brasil não deixou de produzir fontes experimentais, que tinham como referência o uso de efeitos fotográficos e dos jeitos manuais de criar letras, pela abertura com instrumentos simples ou pela colagem de elementos. O espírito grunge dos anos 90 ainda estava presente, mas dessa vez, com mais elementos do letreiramento vernacular brasileiro. As fontes brasileiras tornam-se tão numerosas e diversas em formas, estilos e propósitos quanto a nossa própria população. A nossa corrida contra o atraso colocou o Brasil em patamar semelhante ao países com cultura tipográfica mais enraizada, em termos de volume e de qualidade.
Essas iniciativas de produção e difusão de conhecimento em tipografia no Brasil criaram uma comunidade ativa de designers, pesquisadores e professores que contribuem para a formação de novos entusiastas e type designers que, entre os anos de 2010 e 2020, receberam diversos prêmios com famílias tipográficas de altíssima qualidade. Graças a iniciativas como o Tipocracia, fundado em 2003 por Henrique Nardi e Marcio Shimabukuro, a tipografia — especialmente, a tipografia brasileira — tornou-se um assunto mais frequente nas universidades entre alunos e professores, por meio de palestras, cursos, parcerias com editoras e doações para as bibliotecas dessas instituições.
Hoje, depois de mais de dez edições do DiaTipo, treze edições da Tupigrafia e centenas de fontes depois, essa história ainda não está encerrada. Ao contrário, a cada semana surgem mais fontes e mais conhecimento sobre tipografia na nossa língua, e quase tivemos êxito na primeira pós-graduação em Tipografia em solo nacional, pelo Senac/SP, formando três turmas até o fim de 2019. É impossível nomear todas as pessoas, eventos e iniciativas desde 89 até hoje (e peço desculpas aos nomes que ficaram ausentes aqui); no entanto, o Brasil pode até ter chegado atrasado nessa festa, mas aproveitou bem a chance de ver o que acontecia no mundo, adaptar à sua própria identidade e permitir que uma safra ainda maior de designers e entusiastas (este que vos escreve, incluso) continue a produzir novas páginas.
Para comprar:
🛒 Livro: O Design Brasileiro de Tipos Digitais: a Configuração de um Campo Profissional, de Ricardo Esteves.
🛒 Livro: Fontes digitais brasileiras – de 1989 a 2001, organizado por Priscila Farias e Gustavo Piqueira.
Recomendações:
🎧 Podcast: Visual+Mente #50, com Almir Mirabeau e Ricardo Cunha Lima conversando sobre educação tipográfica com Leonardo Buggy, Lia Alcântara e Ricardo Esteves.
🎥 Vídeo: 5 livros de tipografia que todo designer deveria ler, uma seleção indispensável de livros para designers gráficos feita pelo designer Marcelo Kimura.
🔗 Link: TiposBR, planilha organizada por Henrique Nardi que reúne as fontes brasileiras produzidas de 2000 a 2021.
🇧🇷 Fonte brazuca: Elza, de Daniel Sabino.
Nota do editor
Primeiro, um convite importante para você que lê o Tipo Aquilo e aprecia a tipografia brasileira. O Estúdio Daó está fazendo uma pesquisa importante a respeito do consumo de fontes por designers, artistas e profissionais criativos em geral. Se você puder ceder de 5 a 10 minutos para responder algumas questões, estará prestando uma ajuda imensa para futuros projetos de divulgação de fontes e type designers brasileiros. Clique no link da pesquisa e divulgue o endereço www.estudiodao.com/pesquisa para outras pessoas que você conheça e possam colaborar.
Por fim, chegamos ao número 50. A gente tem esse sentimento legal com números redondos, parece que se tudo acabasse num número aleatório, a jornada seria incompleta, interrompida ou algo assim. Calma, o Tipo Aquilo não vai acabar hoje… na verdade, vai durar até quando acabar todos os assuntos possíveis (o que, não vou mentir pra vocês, pode eventualmente acontecer).
Eu não pensei em nada muito especial além desse texto, que considero reverente a diversas pessoas, criadoras de um cenário tipográfico que permite, dentre várias coisas incríveis, que eu tenha assunto e alguma base teórica pra me comunicar com vocês quinzenalmente e — mais importante — que vocês existam e eu tenha pra quem falar.
Não sou muito de romantizar essa escrita quinzenal, mas gosto de incentivar outros que também escrevam, criem coisas legais e compartilháveis. Por isso, para que sirva de inspiração, deixo aqui um trecho do último Don Serifa, de Pedro Arilla, sobre como funciona pra ele escrever, e traduzo livremente porque acho que diz sobre como eu escrevo, e como escrever devia ser mais simples do que parece.
“‘Sou mais de escrever sem escrever.’ A resposta seguia com uma explicação, claro. Não me vejo tão transcedental. Mesmo agora, quero deter-me aqui. Em escrever sem escrever. Em que o texto amadureça antes de existir. Em que minhas palavras sejam consequências; não uma reação. ¶ Escrevo enquanto caminho. Escrevo enquanto cozinho. Alguns dias, escrevo todo o dia. ¶ Quando termino a página, sento-me à frente do computador e a descrevo. ¶ Escrever sem escrever. Projetar sem projetar. Ruminar.”
Escrito em 99412.56
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Este episódio foi escrito por Cadu Carvalho, que também produz essa newsletter e usou seis marcadores de livros e umas 40 abas do Firefox para este texto. Debora Sales faz a revisão e diz que até gosta dos quadros tipográficos pendurados em casa.