Tipo Aquilo #45 – Letras que flutuam
Para o povo do rio, o barco é muito mais do que um meio de transporte. O ribeirinho depende de sua embarcação para alimentar e sustentar a família, viajar, cumprir suas obrigações com seus pares, conviver em comunidade e ter contato com outros lugares. Quando você mora num lugar em que a economia gira em torno do rio, o barco torna-se uma segunda casa, uma extensão do lar. A relação é mais profunda do que apenas uma relação de uso: uma família pode viver do sustento trazido pelo barco por várias gerações, e do mesmo jeito que decoramos nossa casa para que ela projete as coisas com que nos importamos e o status perante a sociedade, o capitão também faz do aspecto visual do barco uma projeção do que ele considera visualmente bonito e de quem ele é para a sociedade.
Os abridores de letras, que convivem junto aos calafates, fazem com que a identificação textual dos barcos não se limite à dizer qual embarcação é qual. O modo com que as letras são pensadas, desenhadas e decoradas diz sobre como as pessoas daquela região entendem a função das letras, sobre quem é e qual é o status social do dono do barco, e sobre toda a cultura à beira do rio. Carimbó, tecnobrega, um cristianismo ainda apegado ao folclore e os costumes dos povos indígenas; essas e outras influências estão presentes nas formas e cores utilizadas pelos pintores das embarcações das cidades banhadas pela baía do Marajó, no norte do Pará. A tradição dos abridores de letras de barcos, documentada pela Prof. Fernanda Martins, é o nosso tema de hoje.
Como uma forma legal de começar pelo começo, o termo “abridor de letras” pode soar estranho pra muita gente. No nosso cotidiano, as letras surgem pela impressão numa superfície por tinta ou luz, ou pelo ato de escrever, usando algo que marque uma superfície com gestos contínuos ou intermitentes. “Abrir” uma letra não é comum para nós, mas na tradição da tipografia, “abridor” era um termo análogo ao gravador ou ao “escultor” de letras, por assim dizer, que utilizava ferramentas muito precisas para criar as formas nas matrizes metálicas que, posteriormente, eram moldes para a fundição de tipos móveis. Nos dias atuais, muito poucos no mundo ainda criam letras assim, mas a denominação permaneceu e foi adquirida por quem cria letreiros, placas e todo tipo de superfície em que se deseja letras com pincel e tinta, de forma que nenhuma técnica de impressão consiga oferecer o mesmo sabor.
Uma amostra do uso desse termo é outro projeto de documentação da sabedoria popular de desenhar letras decoradas, o dos abridores de letras de Pernambuco, das Profs. Fátima Finizola e Solange Coutinho. Tal como no Pará, o registro gráfico da atuação desses abridores ajuda essa cultura a ganhar notoriedade e longevidade na memória gráfica brasileira. Ambas têm pontos em que conversam com a tradição tipográfica de criar letras destacadas e ornamentadas, mas que distanciam-se ao conversar com as culturas locais e tomar delas as influências para o uso de formas, cores, contrastes e outros elementos. No caso dos abridores de letras da baía do Marajó, os barcos são a grande vitrine dessas letras decoradas.
A decoração das letras varia de acordo com o gosto e o bolso do cliente; encomendadas pelo dono do próprio barco, ou pelo estaleiro responsável, os abridores atuam junto aos calafates, que trabalham na construção e reparo das embarcações. Quando o barco está finalmente n’água, esses abridores tomam as medidas da área a ser pintada, os dizeres que preencherão o espaço e, com instrumentos de medida e guia, começam a riscar os contornos que serão preenchidos com tinta e os espaços alocados para cada cor ou efeito de transição de cores. À medida que os abridores de letras ganham experiência, deixam para trás a necessidade de rascunhar cada traço, ganhando mais agilidade e expressividade no desenho das letras.
O preenchimento começa com pelo menos duas cores contrastantes que separam as metades de cima e de baixo das letras. Essas letras, quase sempre maiúsculas, possuem floreios e serifas ornamentais, chamadas de Toscanas, que eram comuns nos séculos XVIII e XIX em impressos efêmeros e capas de livros. Depois, vem o “caqueado”, os adornos às camadas iniciais, como sombreados, extrusões e outras pinturas decorativas. Esse caqueado, também dividido em duas partes, demanda um novo conjunto de cores que ofereçam contraste entre si e entre as camadas iniciais. É no caqueado que aparecem os efeitos com transição de cor, em sombras de extrusões (quando a letra fica “em 3D”), e também aparecem riscos e desenhos, como pequenas hachuras, que embelezam as letras no final do trabalho.
Abrir letras em uma embarcação demanda de até uma dezena de cores diferentes de tinta, e o resultado é um produto altamente colorido e decorado. Esses ornamentos são um espaço em que os abridores de letras “competem” entre si, buscando fazer letreiros “mais bonitos que o outro” baseados nos barcos que vêm e vão rio adentro. O trabalho dos abridores de letras não se resume aos nomes dos barcos; eles encarregam-se também de escrever em coletes salva-vidas, boias, registro de inscrição estadual em cabines, e outros dizeres, geralmente religiosos. Elas também estão presentes em fachadas comerciais, faixas de festas populares e outros letreiros, e recentemente têm ganho o auxílio da pistola de ar comprimido para pinturas mais rápidas e com mais misturas de cores.
O aprendizado desse ofício passa entre abridores de maneira informal; não há uma escola voltada para o ensino da confecção de letras, como acontece entre cartazistas, por exemplo. As formas das letras e os estilos de decoração são transmitidas entre gerações ou aprendidas de forma autodidata, por observação e reprodução. Isso distancia os abridores de letras das normas da tipografia, mas confere uma aproximação muito maior com a cultura ribeirinha, dando identidade à letra decorativa amazônica. Essas letras dialogam com expressões gráficas vistas em outros lugares, como no Peru, Colômbia e Venezuela, que também vêm da sabedoria e interpretação popular das formas das letras.
As etapas Belém e Marajó do projeto, registradas nos documentários “Letras Q Flutuam” e “Marajó das Letras”, trazem para o Brasil uma mostra dessa cultura das letras decoradas, com as histórias dos abridores, a prática da confecção das letras e a transmissão desse conhecimento para outras gerações de artistas ribeirinhos. Por mais que certos elementos tenham origem na Europa, a América Latina dá o seu jeito de reinventar e usar esses adornos e formas de uso de um jeito novo, que carregam consigo o sabor dos pratos típicos, os ritmos locais, as cores vivas da natureza, e tudo que faz um bom pintor, “aquele que num pequeno espaço, consegue fazer uma grande coisa”.
Recomendações:
🎧 Podcast: O que é Carimbó?, episódio do podcast Diáspora a cor da nossa cultura, produção da N’kinpa, sobre a história e tradição do Carimbó.
🎥 Vídeo: Letras que Flutuam – Etapa Belém o documentário curta-metragem de registro do ofício dos abridores de letras do Pará, com foco em Belém e cidades vizinhas.
🔗 Link: Letras Q Flutuam, o site oficial do projeto de documentação e registro dos abridores de letra da região do Marajó.
🇧🇷 Fonte brazuca: Sycaba, de Priscila Justina.
Nota do editor:
Essa quinzena tem muita coisa que eu quero falar, então vou começar exaltando algumas pessoas. A primeira é a Prof. Fernanda Martins, que coordena o projeto de mapeamento das letras decorativas amazônicas, referência desta edição, e está na coordenação da edição 2021 do DiaTipoX, que rolará online nos dias 13 e 14 de agosto, totalmente gratuita. ;)
Ainda falando de notícias boas, vale a pena mencionar a Aline Kaori e a Jéssica Silva como finalistas do The Malee Scholarship, projeto de promoção de mulheres type designers não-brancas, e a B. Benedicto entre outras mulheres de excelência em tipografia. Vale a pena seguir todas elas.
Agora, vamos falar do que eu não vou falar (?!). Tá rolando Jogos Olímpicos em Tóquio. Eu queria ter pensado em uma edição temática, mas não consegui pensar em nenhum tema a tempo. Ok, vale a pena comentar as histórias das marcas e logotipos, talvez, mas isso demanda tempo, o que eu tenho tido pouco. Pra quem sentir falta de algo relativo a esportes, na edição 24 eu falei de uniformes esportivos com números.
Por fim, o caso do Lattes, que a princípio, passou de uma indisponibilidade do serviço para a perda de todo o registro de cientistas e pesquisadores brasileiros, mas no fim voltou a ser só uma indisponibilidade que torcemos que seja temporária. Ver tudo isso perdido seria uma coisa tão perversa que a gente já está inclinado a acreditar que é o que acontece, já que o orçamento destinado ao CNPq desse ano é o menor em desde o ano 2000. Eu já gastei uma edição inteira só pra pistolar sobre como a educação brasileira tem sido tratada, não vou me prolongar agora.
Eu sei que a gente devia se conter mais em espalhar notícias falsas, mas nesse caso específico e a essa altura, eu já não culpo mais ninguém. O CNPq demorou pra dar uma posição, o sucateamento da educação anda a passos largos, e está todo mundo combalido pela pandemia e um governo de gente burra e autoritária. Talvez, pra quem precisar de remissão, exaltar o CNPq da mesma forma que temos exaltado o SUS é um bom começo.
Escrito em 99184.79