Um dos primeiros registros do uso de emoticons vem de 1982, no BBS1 da Carnegie Mellon University. Scott Fahlman, cientista da computação, propôs aos demais usuários uma forma de identificar mensagens com conteúdo sério e mensagens com piadocas, humor e nerd stuff. Usando :-)
e :-(
, e contando com a boa-vontade das pessoas, elas seriam capazes de identificar rapidamente mensagens sérias das demais. Nessa época, quase todo computador usava o sistema ASCII para codificação de texto eletrônico, então Fahlman tinha alguma certeza de que as pessoas entenderiam esses três caracteres como um sorriso ou uma expressão sisuda. Contudo, se a gente sabe que emoticons foram usados para identificar conteúdo de humor em sistemas de comunicação pré-Internet, é porque desde antes os engenheiros e cientistas da computação curtiam trocar piadas de gosto e punchlines duvidosos ao mesmo tempo em que criavam as fundações das redes de computadores.
Amparadas por seus ancestrais, as próximas gerações a usarem a Internet viram-na como um escape para o humor (teoricamente) anti-mainstream, rebelde, cheio daquilo que a Globo não mostra. Nos anos 2000, quando os computadores vieram para ficar na vida das pessoas, o humor ganhou um capítulo a parte, versando sobre todo tipo de uso (im)possível da Comic Sans dentro e fora da vida online. Desde então, não apenas o uso da ironia e da “pós-ironia” tem mudado conforme os anos, mas a presença da Comic Sans tornou-se uma ferramenta conveniente para a construção de uma retórica paradoxal, que usa um elemento universal (considerando universo esse nosso mundinho digital) para criar um discurso hiperdirecionado. A edição de hoje do Tipo Aquilo dedica-se ao lugar em que a obra mais famosa de Vincent Connare se encontra no humor, na comunicação e no cotidiano digital.
Não é a primeira vez que a Comic Sans aparece por aqui; mas se tudo der certo, será a última vez, ao menos como tema principal. Eu não acho que exista algo acerca de seu estado de arte, ou de tudo que será discutido hoje, que vai mudar radicalmente nos próximos anos. Eu também não sou o primeiro apologético à Comic Sans nem mesmo nessa década, quizaz desde quando a Microsoft achou uma boa ideia distribuir a família tipográfica criada por Connare junto com o Windows. A Comic Sans é um assunto fácil de criar barulho; muita gente gosta, muito mais gente desgosta, vive na gaveta de pautas frias de quase todo jornal. Da mesma forma, também é fácil ser rasteiro e injusto sobre ela, ignorando diversas qualidades, e até chamando de Comic Sans outras fontes parecidas, que tentam emular algum de seus caprichos. Sabe aquela Comic Sans do Instragram, que você usa nos reels e stories? Pois é, não é a Comic Sans.
“Peraí, Cadu. Qualidades? Quais?” Quando falamos de Vincent Connare, falamos de um grande engenheiro de software responsável pelo hinting, um processo sofisticado de otimização de fontes para telas de baixa resolução. Imagine que você precisa usar uma fonte em tamanhos muito pequenos, como 5pt a 10pt, em uma tela de resolução muito baixa, com pixels visíveis como ladrilhos de banheiro. Com uma disponibilidade de pixels tão baixa, os pequenos detalhes vão sumir e a exibição das formas das letras como um todo ficará deformada nessa malha de pixels. O hinting existe para orientar o sistema operacional a exibir a fonte na tela aproveitando essa malha de pixels da melhor forma possível, assegurando a legibilidade dela nos primeiros monitores da vida digital de milhões de pessoas. As Core Web Fonts da Microsoft são fontes que possuem um hinting perfeito e passam sem suor nesse teste, o que inclui as clássicas Verdana, Tahoma, Trebuchet e — toma essa, haters — a Comic Sans.

Sim, uma das qualidades dela é ser legível e usável nas melhores e piores telas possíveis. Ela tem outras qualidades também, como ter caracteres para vários sistemas de escrita, como grego, cirílico e CJK. Tem aquela lenda de que ela é boa pra disléxicos, mas que carece de validação científica. Se tem algo que faz dela acessível, é sua quase onipresença em computadores mundo afora, e a legibilidade proporcionada pelo hinting. Essa onipresença da Comic Sans motivou a sua primeira onda de haters; em geral, designers gráficos que viam sua profissão maculada com a possibilidade dos clientes preferirem-na em logotipos ante outras opções mais “adequadas”. O site Ban Comic Sans, criado em 2002, é um grande representante dessa primeira onda, advogando pela “erradicação completa da fonte da face da Terra”. Não sabemos ainda se eles tiveram sucesso nessa empreitada, mas sabemos que a lojinha deles faturou alguns trocados com a auto-afirmação alheia de suposto bom gosto tipográfico.
Outro site, o Comic Sans Criminal, onde as pessoas podiam denunciar casos de “mau gosto tipográfico”, fez parte dessa onda. No fim, isso colaborou para estabelecer nas leis não-escritas da Internet o uso da Comic Sans como um atestado de que a pessoa não é “educada nos princípios basilares da elegância e harmonia”. Uma grande brincadeira discriminatória que, dependendo da pessoa, não é tão brincadeira assim. Toda essa primeira onda de ódio apoia-se numa alegada feiúra da Comic Sans, de que suas formas irregulares atentam contra o “cânone” da tipografia e de que, uma vez que a pessoa conhece fontes “melhores”, ela naturalmente deixaria a Comic Sans pra trás. Há também um toque anti-Microsoft nessa onda; a empresa tinha uma péssima reputação nos anos 2000, com o Windows sendo odiado por problemas de estabilidade nas edições Me e Vista. A raiva que você tem por ver o Skype morrer e ter que usar o Teams nem se compara a essa época.

Esse parágrafo é reservado para uma crítica minha, e apenas minha, a respeito dos aspectos estéticos da Comic Sans. Quando Connare projetou a fonte, ele teve várias influências, como lettering de HQ e letras feitas à mão por adultos e crianças. Sua intenção era criar uma fonte para o Microsoft Bob que fosse amigável para adultos e crianças em alfabetização digital. Porém, não são do meu completo agrado as escolhas feitas partindo da referência do lettering de quadrinhos e adaptando as letras para um visual tanto casual quanto infantil. Só que isso é o Cadu de 2025 imaginando o processo criativo de um engenheiro de software e nerd de HQ's fazendo o melhor que podia em 1994 para uma demanda bem específica (e louvável, vai…). No fim das contas, o Microsoft Bob foi lançado com uma interface composta em Times New Roman, e foi um fracasso de vendas. Não sei se seria um sucesso se já usasse a Comic Sans, mas a experiência de uso provavelmente seria melhor.
Felizmente, o próprio Connare não liga muito para essas opiniões. Em tom de brincadeira, gosta de propagar a Comic Sans como “a melhor fonte do mundo”, ou como “o Justin Bieber da tipografia”. Uma citação dele muito adequada para essa discussão é: “se você ama a Comic Sans, você não sabe muito de tipografia; se você odeia ela, você também não sabe nada de tipografia e devia tentar outro hobby”.2 Demorou seis anos e mais de noventa edições do Tipo Aquilo para finalmente falar apenas sobre Comic Sans porque é um assunto esgotado entre a comunidade tipográfica, encerrado no consenso de “quem quer usar, use”, e qualquer coisa sobre “bom-gosto” é conversa fiada, elitista. A tipografia e o design gráfico dão suporte tanto a favor quanto contra o seu uso, e é bom que ela exista para que o novato na área não confunda a necessidade de adequar forma a função com o desejo de ser uma clean girl na gaveta de fontes.

“Mas Cadu, você falou de ‘primeira’ onda. Tem uma segunda?” Vamos por partes; digamos que, nos anos 2010, a Comic Sans virou uma piada de si mesma. Aquela pecha de que usar Comic Sans era saber nada de design foi subvertida, e ela virou sarro contra o design que se leva a sério demais… ou, de forma mais abrangente, o mundo que se leva a sério demais. Virou comum aparecer letreiros em Comic Sans dizendo “precisamos de um designer gráfico, não precisamos dizer por quê”. Que outra fonte seria mais adequada para o meme “design graphic is my passion", se não a boa e velha Comic Sans? Tanto que tentar usa-la a sério, mesmo que seja para anunciar algo tão importante como a descoberta do bóson de Higgs, parece até uma meta-piada. O mundo entendeu que ela não vai ser banida e nem sumirá silenciosamente de todos os computadores do mundo. Mais tarde, isso virou uma arma perfeita na mão dos gen Z, autoproclamados donos do senso de humor mais sofisticado e engraçado do planeta Terra.
O que os gen Z têm a dizer sobre a Comic Sans? Nada, é só mais uma fonte na gaveta, e você se importar com isso, o erro é seu, boomer! E exatamente por isso, eles usam, como uma forma de atestar que a retórica deles é geracional, é feita por eles e para eles, ou pra qualquer um que não seja boomer! Achou ruim? Então vá viver feliz com sua Helvetica, boomer! A Comic Sans virou uma camada adicional de ironia entre várias que sobrepõem-se nessa era do capitalismo tardio, sendo um elemento frequente da pós-ironia, em que não só a distinção entre sarcasmo e verdade é quase impossível, como o erro é seu em tentar distingui-los. Com o tempo, a Comic Sans como elemento de pós-ironia foi abraçada por criadores de conteúdo de outras gerações… menos eles, os boomers!


Eu não sei o que está guardado para as próximas cem edições do Tipo Aquilo; só que, certamente, a Comic Sans não deve ser assunto principal de nenhuma delas. É uma piada xoxa, capenga, manca, anêmica, frágil e inconsistente, cujo punchline já foi explorado de várias formas. Até a negação dela, dentro do que se espera no capitalismo, virou só fetiche mercantil. Ela vai prevalecer, não importa o quanto as pessoas amem, odeiem ou apenas tentem viver com ela no mundo. Eu não sei dizer como os filhos dos gen Z vão usa-la… mas se algum de vocês estiver lendo isso no meio dos escombros de um mundo cyberpunk consumido pelo capitalismo climático, lembrem seus pais de que eles não eram inovadores em nada. Os bons millennials já sabiam aproveitar, antes deles, a fonte que entregava os melhores emoticons para usar no MSN Messenger. E o que era o MSN Messenger? Era um aplicativo maneiro dos anos 2000 que a gente usava pra web-namorar (não recomendo, nunca funciona), fazer tremer a tela de outra pessoa, trocar emoticons e falar mal dos boomers!
Recomendações
🎥 Vídeo: Where the "comic book font" came from, (em inglês) um vídeo da Vox mostrando a origem e história do estilo de letras de quadrinhos.
🔗 Link: O site de ensino da Plau. Tem muitos artigos e textos legais sobre tipografia; nada especialmente sobre a Comic Sans, mas você já experimentaram fazer o Konami Code no site? ;)
🇧🇷 Fonte brazuca: Densia Sans, de Henrique Beier.
Escrito em 102050.913
BBS é a abreviatura de Bulletin Board System, um dos primeiros sistemas de troca de mensagens entre computadores ligados em rede.
A citação original, em inglês, em entrevista para o The Wall Street Journal: “If you love it, you don't know much about typography. If you hate it, you really don't know much about typography, either, and you should get another hobby.”
Odiava ela, depois passei a gostar, depois passei a odiar… e por aí vai o ciclo eterno
Eu sempre fui fã da Comic Sans até... Começar a odiá-la. Pra mim, data a minha adolescência. Talvez eu tenha ficado séria demais. rs