Tipo Aquilo #42 – A (suposta) pior fonte do mundo
No artigo “Fontes free: quanto custa o grátis?”, o designer e professor Fabio Lopez discorre sobre a importância de utilizar fontes vindas de repositórios e origens de qualidade reconhecida. O tanto que uma fonte amadora compromete a execução e o trabalho final de uma arte gráfica é bem perceptível… “é pelo cheiro”, brinca. O artigo vale a leitura, pois é bem centrado nos problemas de usar alguns sites que disponibilizam fontes gratuitas, mas não possuem nenhum tipo de curadoria, como é o famoso DaFont.
Ao longo de 41 edições, eu dediquei-me a falar (na maioria das vezes) das coisas de tipografia que dão gosto e paixão por essa área. Dessa vez, eu farei quase o oposto: falar de coisas que a nossa cultura de extremos aprendeu a odiar, e discutir se existe mesmo necessidade dessas coisas odiosas serem tão odiadas assim. Eu sei o que alguns de vocês devem estar pensando; sim, eu vou falar dela, mas não apenas dela. Vamos passear um pouco com nossas bengalas de elefantinho e estúdios de fundo verde pelo que mais desperta arrepios, angústias e outros sentimentos em termos de tipografia digital: as fontes que as pessoas tomaram para si como as piores fontes do mundo, e porque elas talvez estejam apenas encanadas demais.
Vamos pelo começo: Comic Sans, a família tipográfica projetada por Vincent Connare e lançada em 1994 pela Microsoft. A ideia é que a Comic Sans fosse usada nos balões de texto do Microsoft Bob, um aplicativo voltado para facilitar o uso do Windows para pessoas que nunca tinham operado um computador na vida. Em resumo, o Bob transformava o desktop numa metáfora de um escritório, em que os atalhos de aplicativos viravam caixas numa estante, por exemplo. Ele também trazia um mascote, o Bob, que “falava” ocasionalmente com o usuário, dando dicas de como usar o computador. Connare queria que os diálogos do Bob parecessem mais amigáveis para o usuário do que um texto sisudo em Times New Roman. “Cães não falam em Times New Roman”, pensou. Acabou que o aplicativo foi lançado sem a fonte, mas ela apareceu mais tarde em outros aplicativos da Microsoft e virou parte da coleção de fontes padrão do Windows 98 pra frente.
De verdade, eu só não faço uma edição inteira do Tipo Aquilo defendendo a Comic Sans de todo ódio gratuito que ela sofre porque eu já tentei. Ficou monótono. A birra que outros criativos têm com ela tem mais relação com o fato de ela ser usada pelas pessoas comuns do que alguma deficiência conceitual da Comic Sans. Não digo que ela não existe; para mim, os desenhos das letras fazem uma mistura estranha de lettering de quadrinhos com escrita casual e um apelo infantil que podia ser tratada com maior apuro. De novo, isso é uma opinião pessoal, e é apenas isso que eu tenho pra falar de demérito dela. No mais, a Comic Sans faz bem: está em quase todo computador, tem caracteres para diversos sistemas de escrita, é nome de filme (porque choras Helvetica?!) e tem um hinting impecável que a mantém legível até nos monitores mais cretinos que você imaginar. Inclusive, ela fica até mais legal nesses monitores.
Outro motivo para que eu não fale só da Comic Sans é que… bem… existem algumas defesas muito boas pra isso. “I’m Comic Sans, Asshole”, de Mike Lacher, é a segunda melhor defesa à família de fontes que existe. A primeira é a do próprio Connare, quando diz que “a Comic Sans é a melhor piada que ele já contou”. Falarei um pouco mais dela no final, mas por ora, aceite que nem tudo precisa da retidão e seriedade de outras fontes feitas no esquadro.
Outra que sofre de um mal parecido é a Papyrus, desenhada em 1982 por Chris Costello e lançada em 1983 pela Letraset. A ideia era representar como o alfabeto latino pareceria se fosse escrito na antiguidade, em papiro. Após a sua reedição em formato digital nos anos 2000 pela ITC, ela foi incluída em pacotes de fontes do Windows e Mac OS, e virou artigo de decoração para tudo que precisasse parecer “antigo”, “selvagem” ou “tribal”. Até o Ryan Gosling perdeu a linha com a Papyrus, e Costello reconheceu que talvez, quem sabe, quizaz ela tenha sido usada mais do que devia. É só uma possibilidade, não estamos julgando (ainda).
Se as pessoas tinham algum pudor de usar a Comic Sans em marcas e identidades visuais, com a Papyrus a conversa era diferente ao ponto dela ser usada até para marcas que não tinham muita coisa a ver com os estereótipos comuns dela. Foi o suficiente para que a crescente de ódio da Internet com coisas que pessoas comuns gostam colocasse a Papyrus na lista de fontes que deviam ser banidas. Ela passa longe de ser minhas favoritas; das fontes que vêm embarcadas em sistemas operacionais, é uma das mais difíceis de usar em qualquer contexto além de representar seus estereótipos. Tecnicamente, a diferença de altura entre minúsculas e maiúsculas é muito grande e prejudica o uso dela em sentenças muito grandes, ainda mais para uma mancha de texto.
Em verdade, fontes como a Impact, Brush Script e outras que costumam vir pré-instaladas em sistemas operacionais frequentemente são criticadas pelo uso exaustivo delas. Até famílias como a Gotham, extensamente usada desde seu lançamento, tem seus detratores. Só que agora, precisamos falar do DaFont, 1001 Fonts e outros sites que oferecem fontes “gratuitas”, bastando ao usuário escolher, baixar e instalar por sua própria conta e risco. Pode parecer, para alguns, que o modo com que designers mais experientes torcem o nariz para fontes provavelmente vindas destes repositórios soe como arrogância ou corporativismo, como pares se ajudando no intuito de obrigar clientes e novos profissionais criativos a investir em fontes renomadas. O último, pode até ser… o primeiro também, mas não é uma arrogância injustificada, eu juro. :D
Primeiro, vamos às aspas do “gratuito” dessas fontes. Poucas delas oferecem licença plena para uso comercial, em marcas e outras peças gráficas timbradas. É mais comum que elas ofereçam apenas licença para uso pessoal, e pode ser que ela não permita alterações nos caracteres (entendeu, Embratur?). Além da licença, existem as inúmeras deficiências comumente presentes: espaçamento mal-feito (com kerning inexistente), vetores com acabamentos toscos, falta de diacríticos e caracteres especiais, inconsistências entre caracteres, entre outros. Insistir em usar uma fonte com essas deficiências significa muito mais horas de trabalho que pesarão no bolso de alguém, e a total incerteza se o resultado final terá qualidade, não importa quão habilidoso o designer seja.
Se considerarmos apenas critérios técnicos, seguramente as piores fontes do mundo estarão nesses sites. Além destes problemas, ainda tem o agravante de os autores dessas fontes não serem type designers com o conhecimento necessário. Geralmente são pessoas que estão em seu primeiro contato com editores de fontes digitais e/ou estão numa tendência experimentalista, buscando mais uma expressão autoral do que uma prática de excelência. Por isso, talvez seja só desnecessário exigir desses repositórios a mesma qualidade de um marketplace como o MyFonts, ou mesmo Google Fonts e o FontSquirrel, que contam com certa curadoria. Acho mais importante incentivar alunos e profissionais a perder a timidez no type design e desenhar suas próprias letras, que certamente cairão melhor em seus trabalhos. Especialmente se não forem para o John Mayer.
Nessa discussão toda, seria fácil pra mim fazer um final feliz, dizendo que a feiúra ou deficiência está apenas no seu coração nos olhos de quem vê, e que toda implicância com alguma fonte deixaria de existir com um pouco mais de estudo, ou mais foco nas coisas que realmente importam na tipografia e no design gráfico. Claro que tudo tem seu contexto e adequação: existem fontes melhores para certas situações, piores para outras, coisa que os primeiros capítulos de qualquer livro de tipografia explica bem. Existem também as pessoas de quem é justo você exigir esse tipo de conhecimento, e as pessoas pra quem você parecerá apenas esnobe.
Se você ainda quiser pensar nisso, pense, por exemplo, que a Comic Sans não é fonte padrão de nenhum aplicativo. Em todo caso que foi usada, de forma adequada ou não, foi porque alguém se importava de verdade com as roupas que as letras vestem. Isso diz muito sobre a importância dos tipógrafos para o mundo, e não digo isso em demérito à Comic Sans: há mais pensamento tipográfico num aviso de escritório escrito em Comic Sans pelo auxiliar de RH do que nos argumentos raivosos para seu banimento sumário.
Recomendações:
🎧 Podcast: Ohno Radio #1 [em inglês], o primeiro episódio do podcast da Ohno Type Company comentando sobre os problemas do perfeccionismo na tipografia e no design gráfico.
🎥 Vídeo: Typography Monthly 2 — New 2021 Microsoft Office Fonts [em inglês], uma gravação de live do Typography.Guru sobre as fontes das versões vindouras do Microsoft Office.
🔗 Link: I’m Comic Sans, asshole., trabalho de Paula Cruz com texto de Mike Lacher, apologético à Comic Sans.
🇧🇷 Fonte brazuca: Tenacious Brush, de Ricardo Marcin e Erica Jung.
Errata:
Na edição passada, eu comentei sobre a prisão de Georges Claude como colaboracionista, mas a frase ficou incompleta. Ele foi condenado a prisão após a liberação de Paris e a capitulação de Berlim no fim da segunda guerra mundial.
Nota do editor:
Algo mais-ou-menos semelhante ao assunto dessa edição de hoje: há duas semanas estreou “Loki” no serviço de streaming da Disney. Quando a série foi anunciada, sua marca foi tomada para cristo por causa da composição de letras de estilos muito distintos entre si, antes mesmo que existisse qualquer sinopse da série. Aconteceu o backlash de sempre: troça, galhofa, piadas, propostas “melhores” e outras reações típicas.
A série estreou, e a “bagunça” que atribuíram ao resultado estético da marca mostrou-se coerente com aspectos da história que a série apresenta, e isso é tudo que eu posso falar sem dar spoiler. Como tudo da Marvel, não é nada que mude o mundo, mas tem sido legal para expiar o cansaço mental desses tempos ruins.
Isso lembra o que o Johnny Brito fala sobre essas situações: é muito fácil criticar um JPG. É tão simples que é impossível acertar uma crítica só por isso. Analisar marcas apropriadamente é uma brincadeira tão séria que pouca gente faz bem, e fazer isso bem significa ver mais do que uma imagem solta representa em termos de apenas bonito ou feio.
Escrito em 99073.41