Agradecimentos a Fernando Mello pelas notações sobre esse assunto, valiosas para essa pauta. (:
Em meados de 1640, havia na Europa dois tipos de pessoas que acreditavam em demônios: cristãos em geral e René Descartes. Não que o filósofo francês acreditasse mesmo na ideia de inferno e quaisquer de seus supostos habitantes; seu demônio parecia um fantasma ou assombração. Um “demônio maldoso de grande poder e astúcia (que) tenha empregado suas energias para me enganar”, dizia ele em suas meditações, mas sem creditar qualquer existência de facto à criatura. Seu demônio maldoso era um exercício de pensamento para suspender toda crença oriunda de fontes não-confiáveis — entre elas, os sentidos —, criando uma metodologia racional para a investigação da verdade sobre as coisas, o que tratamos como pensamento cartesiano.
Descartes alinha-se entre outros pensadores do séc. XVII, como Francis Bacon e John Locke, no período conhecido como Revolução Científica, em que a ciência é dissociada da teologia, e o método científico sobrepõe-se ao senso comum e empirismo como forma de validar o conhecimento. Esse período é importante para o movimento Iluminista, que levou o domínio da razão para outras áreas, como a política, direito e as artes no século seguinte, culminando na Revolução Francesa de 1789. Uma amostra do quanto essa mudança de mentalidade foi profunda na sociedade europeia é o tema de hoje, que conhecemos como o primeiro projeto encomendado de design de tipos da história da tipografia: a Romain du Roi (pode chamar de Ruman Durruá, ou apenas de Romanas do Rei).
Antes de falar do projeto em si, é importante esclarecer porque tratamos as Romanas do Rei como um projeto pioneiro de type design no mundo. Já falei em outra edição sobre o momento histórico em que as letras romanas foram concebidas e tomaram o lugar dos tipos blackletter gravados por Gutenberg. Essas letras romanas, gravadas por Speyer, Jenson e outros no séc. XVI, nunca perderam características advindas da caligrafia humanista italiana, como o eixo inclinado das letras redondas e os contrastes e terminações feitas com bico de pena.
Abrir letras era um ofício passado para poucos aprendizes, baseado na experiência dos abridores (punchcutters) e no próprio senso estético do abridor. Uma letra “a” feita por abridores como Garamond, Granjon, Estienne, Griffo e outros refletia a forma ideal que essa letra “a” deveria ter em qualquer contexto. Uma fonte desses abridores não era um projeto com duração determinada, mas sim um trabalho de uma vida inteira. Isso parece romântico para a gente, mas do ponto de vista racional, a ideia de que as formas das letras são como são pela mera expressividade de seus abridores é questionável. Todo atributo de uma fonte deveria ter uma razão fundamentada em algo verificável e independente de crenças. Dessa forma, as letras concebidas sob essa razão não mudariam apenas pela vontade do abridor ou a mera passagem do tempo: a matemática e trigonometria seriam ferramentas para uma descrição universal e atemporal dessas letras.
Olhar para as formas das letras com rigor matemático e geométrico era uma ideia semeada quase um século e meio antes das Romain du Roi. O tratado de Albrecht Dürer de 1525, “Do Desenho Das Letras”, traz uma visão geométrica e deveras racional para as formas das letras romanas maiúsculas (vistas na famosa Coluna de Trajano e outros monumentos) e góticas “textura” (também chamadas blackletter). Os esquemas construtivos de Dürer, que empregavam retas com curvas tangentes em pontos bem calculados, representavam o pensamento renascentista de exaltação das ciências como algo divino. Pense no “Homem Vitruviano”, de Leonardo da Vinci, mas com letras, vistas como um projeto de uma engenharia perfeita.
Só que essa racionalidade renascentista buscava “encontrar Deus”, enquanto a mentalidade empregada pela comissão Bignon, designada pelo rei francês Luís XIV (sim, o que era chamado de Rei Sol e supostamente cunhou a expressão símbolo do absolutismo “l’état, c’est moi”) em 1692, buscava consolidar o poder intelectual de sua nação. O monarca nomeou alguns notáveis em ciências, além do tipógrafo Jacques Jaugeon, para a criação de um alfabeto nacional na Academia Francesa de Ciências. Além das Romain du Roi, a comissão liderada pelo abade Jean-Paul Bignon buscava examinar e registrar os processos industriais e práticas de produção artísticos da França Imperial. O fim do século XVII foi uma época desenvolvimentista, marcada por grandes construções, importantes descobertas científicas e o registro desse progresso e de todo o conhecimento da humanidade em enciclopédias.
As romanas foram projetadas por Jaugeon e os matemáticos Sébastien Truchet e Gilles Filleau Des Billets, e gravadas por Louis Simmoneau. As letras desenhadas em grids de 8×15 (minúsculas) e 8×8 (maiúsculas), por sua vez, não tinham uma ambição metafísica de encontrar pi ou uma espiral de Fibonacci. A ideia das Romain du Roi é mais racionalista: documentar as técnicas usadas na prática das artes tipográficas e, por influência de Truchet, propor uma visão geométrica e intelectual para a criação de letras. Havia também um ideal nacionalista de expressar nas formas das letras a grandiosidade da monarquia francesa. Os desenhos originais, finalizados em 1695, mostram letras que começam a abandonar várias características das letras romanas feitas à mão, como o eixo perpendicular à linha de base (ao invés do eixo inclinado, como era comum), o contraste mais acentuado entre traços finos e grossos (acompanhando melhorias na tecnologia de produção de tintas e tipos móveis), serifas retas e terminais que não guardavam mais vestígios de ferramentas de escrita.
Para gravar as letras aprovadas pela comissão Bignon, foi designado o abridor Philippe Grandjean, que precisou de sete anos para que os primeiros tipos do projeto inicial fossem usados. Certa parte dessa demora é creditada às adaptações que as letras sofriam quando gravadas por Grandjean, inspirado pelo trabalho do mestre calígrafo francês Nicolas Jarry, com belas letras abertas quase 50 anos antes. Elas eram necessárias para que funcionassem no dia-a-dia da Imprimerie Royale, mas nem sempre passavam pelo crivo da comissão. É comum, por isso, observar certos caracteres das Romain du Roi que são distantes dos traços ortogonais rigorosos de Simmoneau e ainda mantêm uma leve conexão dessas letras com a tradição caligráfica.
Em 1702, as Romain du Roi foram usadas pela primeira vez no Médailles sur les principaux énvenémens du règne de Louis-le-Grand (Medalhas nos principais eventos do reinado de Luís, o Grande), e foi o único conjunto de fontes usado pela imprensa régia francesa até 1811. No entanto, o trabalho de criar todas as 42 fontes (21 tamanhos, normais e itálicos) da Romain du Roi levou mais 45 anos, ficando prontas apenas em 1745. Grandjean faleceu nesse período, sendo sucedido por seu aprendiz Jean Alexandre e, depois, por Louis Luce. Uma das inovações trazidas pela comissão Bignon foi a adoção de um sistema lógico para nomear cada uma das fontes de acordo com o seu tamanho. Até então, era comum o uso de nomes arbitrários (como Cicero, St. Augustin ou Parisienne) para tamanhos diferentes da mesma família de fontes, e esses nomes mudavam até mesmo entre gráficas. Truchet fez uma análise desses tamanhos entre gráficas e propôs uma unidade de medida fixa para cada tamanho de fonte. Seu sistema ultra-preciso, com o tempo, foi refinado por Pierre Simon Fournier e Firmin Didot.
Os tipos criados pela comissão permaneceram exclusivos à Imprimerie Royale, a gráfica real francesa criada em 1640, mas serviram de inspiração para vários tipógrafos e abridores de letras da Europa, sendo um ponto de transição das letras romanas oldstyle (em que se encaixam os tipos de Jenson, Garamont e Granjon, por exemplo) para o futuro estilo de fontes serifadas modernas, nas quais encaixam-se os tipos de Giambattista Bodoni e Didot. Algumas características desse estilo transicional da Romain du Roi apareceriam mais tarde nos tipos de William Caslon e John Baskerville, muito utilizados atualmente em versões digitais.
Além da contribuição estética, as Romain du Roi são historicamente importantes por seu caráter projetual, tendo as letras concebidas em esboços rigorosamente definidos e convertidas em tipos que preservavam o espírito pré-iluminista que vigorava na França, embora não fossem completamente fieis (letras como “g”, “v” e “x” seriam impraticáveis em tamanhos pequenos). As fontes tornaram-se, com o tempo, frutos de projetos com atributos e requisitos pensados antes que qualquer pedaço de metal fosse cortado, conforme mais pessoas detinham a prática da abertura de letras. Atualmente, os arquivos usados em editores de fontes como Glyphs, RoboFont e FontLab Studio funcionam como código-fonte de forma semelhante às gravuras de Simmoneau, permitindo que as fontes exportadas sigam com exatidão o que foi desenhado no editor, e que o designer de tipos passe de um projeto a outro sem perder informação.
A visão racional empregada nas Romain du Roi é ímpar na história da tipografia, e fruto de uma época marcada pelo desenvolvimento das ciências e a supremacia da intelectualidade humana. Só que, pra fechar essa edição, vamos falar daquilo que é verdadeiramente edificante para o ser humano: a fofoca. Como a lenda de que o Reino da Suécia teria encomendado algumas fontes das Romain du Roi, e que, no alto de sua humildade e benevolência, Luisinho Catorze teria dito ao monarca sueco que imprimissem com brioches¹. Também teve os detratores da monarquia, como o poeta escocês Tobias Smollett, que no auge de sua simpatia e afeto à monarquia francesa, classificou os livros impressos com as Romain du Roi como uma “ostentação de pompa fastidiosa, despesa prodigiosa, ambição insolente e arrogante falta de modos”.
¹: essa parte dos brioches é só drama, ele apenas teria negado mesmo. =P
Recomendações:
🎧 Podcast: História nos Stories #72, com Daniel Renê, Lucas Orquisa, Mirelly e Rebeka Rodrigues conversando sobre o período histórico do Iluminismo.
🎥 Vídeo: Du Roi ao ROI: uma breve defesa do investimento financeiro em famílias tipográficas, produzido pela Plau, ligando o desenvolvimento das Romain du Roi às fontes corporativas modernas feitas sob encomenda.
🔗 Link: Romain du Roi: the surviving plates, uma extensa pesquisa e comparação de Ricardo Olocco sobre as Romain du Roi gravadas por Simmoneau e abertas por Granjean, Alexandre e Luce.
🇧🇷 Fonte brazuca: Regina Black, de Phaedra Charles, Flavia Zimbardi e Kelly Thorn.
Nota do editor:
Um bastidor pra você, querido leitor: se tudo saísse como eu tinha planejado, esse teria sido o primeiro texto do ano. Ainda bem que não foi, na verdade. Eu escrevo isso enquanto olho para as dezenas de abas abertas no navegador que eu precisei para revisar e corrigir informações. Talvez sejam mais abas do que quando escrevi a primeira versão — que não estava ruim, mas ainda faltavam imagens, referências e links com fontes.
E ainda assim, faltou muita coisa para colocar, alguns assuntos que dava para aprofundar mais; aí eu paro pra pensar duas vezes e fico satisfeito. Eu vejo cada edição do Tipo Aquilo como uma introdução a assuntos diversos, um ponto de partida. Nas palavras do Gabriel Figueiredo, textos grandes o suficiente para se aprofundar, pequenos o suficiente pra não dar preguiça. (=
A mudança para o Substack também trouxe algo que me faz tomar mais cuidado com o tamanho de cada edição, já que ele avisa quando a mensagem está no limite de exibição do Gmail (102KB). Não compromete o texto principal do jeito que eu sempre faço, mas as notas de editor tendem a ficar mais curtas. Ossos do ofício; qualquer coisa, eu tenho um Twitter pra xingar muito.
Quer dizer, agora o Elon Musk tem um Twitter; sou só inquilino de um puxadinho lá, e de outro puxadinho no Mastodon, para experimentar. Alías, foi bom pouca gente ter efetivamente migrado, apesar do (anti-)hype. Alguém tem que ficar lá pra dar o dedo do meio ao Musk e esse bando de idiotas que se sentem empoderados pela balela de liberdade de expressão sem consequências.
Escrito em 99886.11