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Era para essa edição ser mais uma da TipoAquilo.calt, aquela que eu comecei nesse ano para rodar assuntos mais rápidos, fáceis de tirar do lápis e manter a regularidade. Mais precisamente, seria a inauguração da série “Tipocurso 2000”, para destrinchar tecnicalidades e curiosidades de desenho de letras. Só que, abre uma aba, abre outra aba, e abre mais uma aba, e o conteúdo ficou interessante demais para falar apenas de contraste e ajustes ópticos em tipografia.
Aliás, falando em abas, eu já falei pra vocês que eu fiz uma extensão para Chrome e Firefox que pega os endereços de todas as abas abertas da janela do navegador e copia para a área de transferência? Se você não podia viver sem essa demanda tão específica (porém, vital para que o Tipo Aquilo exista), corre pra pegar o TabsToClipboard lá nas lojinhas do Chrome e do Firefox.
Quando alguém pergunta sobre como começar a praticar caligrafia, fazer lettering melhor ou esboçar as primeiras letras da primeira fonte tipográfica, uma pessoa responsável aconselharia a pessoa a estudar e praticar o alfabeto fundamental de Johnston. As letras feitas pelo calígrafo inglês não são tidas como a porta de entrada para drogas mais fortes o mundo das letras à toa: elas exploram, de uma maneira bem iniciática, as virtudes da ferramenta mais fundamental para o exercício e estudo da tipografia. Nesta semana, o Tipo Aquilo presta uma pequena reverência à pena quadrada, e se você ainda não tem, vou tentar te convencer a ter uma. ;)
Tudo mudou para o ser humano quando alguém, mais ou menos 45 mil anos atrás, pegou uma haste molhada com algum pigmento — provavelmente o sangue de seus inimigos — e manchou uma parede com algo que não era só um borrão aleatório. A prática de registrar as atividades e o modo de vida primitivo em desenhos e representações figurativas facilitou a passagem de conhecimento entre gerações cada vez mais distantes umas das outras. Aos poucos, as pessoas dedicadas ao ofício do registro sofisticavam seus instrumentos, adicionando peles de animais para fazer os primeiros pinceis, e talhando algumas partes para melhorar a ergonomia ou fazer estilos de marcação diferentes.
Por ora, atribuímos à civilização egípcia a criação do que entendemos hoje como a pena quadrada. O cálamo era uma haste de bambu ou junco com um corte inclinado que gerava uma ponta, posteriormente afiada e cortada para aumentar a área de contato da pena com o papel — pois é, neste momento histórico já podemos falar de papel. A escrita hieroglífica era usada tanto em pergaminhos de papiro quanto nas paredes de palácios e pirâmides. Ela dispunha de uma versão monumental, utilizada em ambientes e objetos, e uma versão cursiva, utilizada em papel ou madeira. Os hieróglifos cursivos, que deram origem à escrita hierática e demótica, eram feitos com cálamo, e já apresentavam traços com espessuras diferentes, mas que eram todos feitos com o mesmo instrumento.
Para que você possa entender o quanto esse papo de contraste é importante para a tipografia, imagine um carimbo retangular, com largura maior que a altura. Se você arrastar esse carimbo num papel no sentido horizontal, a marca de tinta terá espessura igual à altura. Se você arrasta-lo no sentido vertical, a marca de tinta será mais espessa, da largura do carimbo. Explicando assim, parece até banal, mas esse princípio está presente nos sistemas de escrita desde a antiguidade, e é o que estrutura a teoria da escrita de Noordzij, por exemplo. A ponta retangular do cálamo produzia traços tanto finos quanto espessos, e isso tornava mais ágil o preenchimento de partes específicas de alguns símbolos e a composição de documentos, como um todo.
Os hieróglifos deram origem a quase todos os sistemas de escrita da Europa, África e Oriente Médio; dessa forma, o cálamo e o princípio do contraste também seguiram adiante. Uma das minhas alegrias deste ano foi ver de perto um documento histórico escrito em Ge’ez e notar a presença de contraste em suas letras. Na escrita árabe, o qalam é utilizado até hoje para criar composições caligráficas que usam e abusam do contraste para compôr ritmo e estabelecer uma textura uniforme à peça visual. No mediterrâneo, o cálamo continuou como um instrumento de escrita predominante durante a antiguidade clássica. No Império Romano, o cálamo dividiu espaço com o uso do pincel de ponta chata, e a maleabilidade da ponta desse pincel é fundamental para a criação das letras imperiais e, com elas, as serifas.
Na Idade Média, o cálamo foi substituído aos poucos em escrita de documentos por penas de aves e pontas metálicas — estas, sim, são o que conhecemos popularmente como penas quadradas. As penas de metal ofereciam pontas mais precisas, com contrastes mais acentuados e um controle melhor do fluxo da tinta para a superfície. Por centenas de anos, a pena quadrada foi um instrumento hegemônico para criação de letras, sendo base de todos os estilos caligráficos ocidentais até o séc. XVI. Foram esses modelos caligráficos de pena quadrada que tornaram-se base das primeiras fontes tipográficas: Gutenberg criou seus tipos a partir de letras blackletter, totalmente dependentes da pena quadrada. Jenson, Garamond, Grandjean e outros gravadores de letras, por sua vez, tiveram como base as letras imperiais romanas e a caligrafia humanista, feita com (finja surpresa…) pena quadrada.
Cada modelo caligráfico tem atributos próprios; entre eles, o ângulo que a ponta da pena quadrada forma com a linha de base. Esse ângulo varia comumente de 10˚ a 45˚. A dinâmica da pena quadrada ajuda a explicar, ao menos em fontes serifadas, porque as letras dessas fontes têm traços finos e espessos. O ângulo da pena explica também a presença de eixos inclinados em letras redondas, como o O, C e G. Embora algumas dessas características tenham ficado para trás, à medida que a pena quadrada tornou-se menos comum no desenho de letras, a presença de contraste prevaleceu. Mesmo nas fontes sem serifa, há uma diferença sutil, porém essencial, entre traços finos e espessos.
Foi assim que Napoleão perdeu a guerra que a pena quadrada adquiriu um papel importante no bê-a-bá da tipografia. Entender essa dinâmica do contraste formado pela pena quadrada é fundamental para quem quer desenhar fontes ou fazer lettering tendo os modelos caligráficos medievais e a tipografia moderna como referência. Entender como a pena quadrada funciona é um momento divisor de águas para quem vive de letras, incluindo este que vos fala, porque mesmo que usemos outros instrumentos para desenhar letras que não necessariamente tenham uma ponta chata, a dinâmica da pena quadrada pode ser facilmente reproduzida.
Se isso tudo te parece atrativo, ter uma pena quadrada não é nada inacessível. Existem kit’s prontos com cabo e algumas penas metálicas que podem ser meio caros. Existem também as ruling pens brazucas fenomenais da Dreaming Dogs. Contudo, é possível fazer penas quadradas com insumos baratos. Se você tiver facilidade para conseguir hastes de bambu, pode fazer alguns cálamos. Você pode usar um lápis de marceneiro (aqueles lápis chatos) pra fazer algumas letras. É possível fazer penas quadradas também com lata de refrigerante (veja o vídeo nas recomendações). Aquela dica clássica de prender dois lápis lado-a-lado com elástico também funciona muito bem. Se tudo isso faz seus olhos brilharem, honre os presentes dados à humanidade por Seshat e Thoth, e coloque seu cálamo para trabalhar desde já. ;)
Recomendações:
🎧 Podcast: Academia do Traço #1, em que o calígrafo Nelson Smythe Jr. discorre sobre como começar a praticar caligrafia e desenhar as primeiras letras.
🎥 Vídeo: Como fazer sua própria pena de caligrafica, tutorial do Jackson Alves para fazer sua pena quadrada a partir de uma lata de refrigerante.
🔗 Link: Broad Edge Calligraphy Technique, (em inglês) um guia do calígrafo Jake Rainis para aperfeiçoamento do manuseio da pena quadrada para iniciantes e intermediários em caligrafia.
🇧🇷 Fonte brazuca: Quiz, de Lu Leitenperger.
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