Tipo Aquilo #53 – Johnston, o metrô e as letras fundamentais
As duas grandes revoluções que transformaram a sociedade envolvem, em algum nível, automação e repetição em série de processos de produção: a revolução cultural propagada pela prensa tipográfica de Gutenberg e a revolução industrial desencadeada pela máquina a vapor de Watt e Boulton. Em cinco séculos, elas mudaram o mundo em uma velocidade nunca vista na história, modificando pra sempre unidades fabris, paisagens urbanas e até o modo de vida das pessoas. Tantas foram essas mudanças, que várias pessoas questionaram se essa mecanização da indústria poderia voltar-se contra a sociedade de alguma forma, e se não seria importante manter um grau de manualidade em algum aspecto da vida.
No campo do design, a prensa tipográfica teve diversas evoluções que tornaram-na indispensável para a produção gráfica, deixando a caligrafia em segundo plano, restrita à atividade corriqueira de escrever das pessoas. No começo do séc. XX, houve um resgate das tradições caligráficas que influenciou a tipografia e o design gráfico. Atualmente, mesmo com a presteza e versatilidade da tipografia digital, a caligrafia é uma ferramenta imprescindível para o estudo da tipografia e do lettering, e uma forma de expressão textual e artística que conta com uma autenticidade ímpar. Para entender esse resgate da caligrafia e como ela ganhou de volta essa importância no design gráfico, precisamos falar de Edward Johnston.
Antes de falar de Johnston e da caligrafia fundamental, é importante dar um contexto e começar por William Morris e o movimento de Artes e Ofícios na transição do séc. XIX para o séc. XX, do qual foi um notório representante. Morris, inicialmente, partilhava da crítica à industrialização do arquiteto John Ruskin, alegando que as relações predatórias de trabalho da época e a preocupação excessiva com ornamentação em vez de praticidade resultavam em produtos de qualidade inferior e mau gosto. Ruskin persistiu desencantado com a industrialização, enquanto Morris rendeu-se às maquinas e processos industriais quando conseguiu atingir o padrão de qualidade que sempre desejava… digamos que traiu o movimento, véio!!
Pro bem da verdade, o uso de maquinário industrial per se não era um consenso entre os designers do Arts and Crafts; a divisão de trabalho dentro das fábricas era uma crítica mais consensual. Eles prezavam que todos os envolvidos na fabricação de um produto, entre designers, montadores e outros, fossem exímios conhecedores do ofício de trabalho em madeira, em contraponto à lógica industrial de que cada colaborador só precisa exercer uma função específica da cadeia de produção. Essa relação precária de trabalho gerava, no fim das contas, uma intensa desigualdade social e um sentimento de desencanto com a industrialização da sociedade. Enquanto o cunho social(ista) do Arts and Crafts é pouco comentado, o movimento é conhecido nos dias atuais pelo apego à preservação das artes manuais e o uso delas na arquitetura e design.
Enquanto os designers e arquitetos do Arts and Crafts discutiam o quanto um designer devia ser responsável pela manufatura direta de um produto ou ambiente, Johnston crescia na casa de suas tias. Nascido em San Jose de Mayo, Uruguai, foi trazido com sua família para a Inglaterra aos três anos. Fowell Buxton Johnston, seu pai, estava sempre fora, à procura de emprego; sua mãe, Priscilla Buxton, vivia doente e morreu alguns anos depois. Suas tias tinham forte tendência à germofobia, por isso ele nunca pôde divertir-se fora de casa como as outras crianças; em vez disso, ele se divertia estudando iluminuras, textos medievais escritos à mão com letras capitais ilustradas. De vez em quando, ele até criava as suas próprias iluminuras, copiando o estilo das ilustrações e estudando a caligrafia utilizada.
Além de artes, Johnston também era afeito a matemática e tecnologia. Depois de terminar o ensino básico, chegou a estudar medicina em Edinburgh, mas a paixão pelas artes falou mais alto e buscou a carreira artística. Em 1898, suas iluminuras ganharam o interesse do arquiteto William Richard Lethaby, que foi contemporâneo de Morris e, dentro do Arts and Crafts era adepto da ideia de o designer devia ter pleno conhecimento dos processos de produção e ser capaz de produzir um produto por si. Lethaby era diretor do Central School of Arts and Crafts, e incentivou Johnston a estudar as iluminuras presentes no British Museum e, no ano seguinte, dar aulas de letreiramento em sua escola.
Ao estudar as iluminuras do Museu Britânico, Johnston sentiu-se impelido a treinar caligrafia com pena quadrada. Em 1901, ele passou a dar aulas no Royal College of Art, influenciando diversos designers de sua época e resgatando a tradição das letras escritas à mão, algo que vinha sendo perdido desde a massificação da tipografia na Inglaterra. Em 1906, lançou o livro Writing & Illuminating & Lettering, um compêndio de seus estudos sobre iluminuras; no entanto, com o tempo, ele mudou o foco de seus estudos para a caligrafia. Além das formas das letras, Johnston dava grande atenção às suas proporções, sendo influenciado por manuscritos renascentistas, que continham exemplares de letras romanas.
Esse estudo das letras romanas fez com que, com o tempo, ele criasse um estilo de letra voltado para o ensino e introdução de novatos à caligrafia com pena quadrada, as letras fundamentais. Influenciada também pela caligrafia meio-uncial e as minúsculas carolíngias, as letras fundamentais têm formas simples, com poucos ornamentos, e são a porta de entrada para todos que estudam e trabalham com as formas das letras. Estudar e praticar a caligrafia de Johnston dá experiência com uma pena caligráfica e noções de contraste e espaçamento que são fundamentais (rá!) para qualquer caminho que a pessoa siga, seja projetar tipos, escrever com outros estilos caligráficos ou ilustrar com letras. Por isso, 10 entre 10 calígrafos recomendam a foundational hand como porta de entrada para drogas mais fortes. ;)
A influência de Johnston vai além do resgate da arte da caligrafia; ele também é responsável pela primeira família tipográfica corporativa para um projeto de identidade visual. Quem já teve a oportunidade de andar pelo sistema de transporte público em Londres passou por placas, letreiros informativos e outros impressos que usam a fonte que Johnston projetou de 1913 a 1916 para a companhia de trens elétricos subterrâneos, o famoso London Underground. As letras projetadas por Johnston, mesmo sem serifas, são frutos diretos de seus estudos de caligrafia, e inauguraram uma nova classificação de fontes, as humanistas sem serifa (como a Optima, Verdana e a Freight Sans), que combinam as proporções das letras romanas com um desenho elegante, sem serifas e com contraste quase nulo. Em 1933, a Johnston tornou-se a família tipográfica padrão do sistema de transporte público londrino, e assim permanece até hoje.
O trabalho de Edward Johnston teve grande influência entre designers, calígrafos e tipógrafos, como Stanley Morrison, Graily Hewitt e Florence Cockerell, que reconheceram em seus estudos de caligrafia e letreiramento uma alternativa para a produção de peças mais refinadas e autênticas, trazendo para a tipografia um pouco do que o movimento de Artes e Ofícios de Morris ensejava para o mundo. Era comum, em seu tempo, que se alguém perguntasse a um inglês quem inventou a caligrafia, o nome de Edward viesse à lingua num estalo. Junto com o alemão Rudolf Koch (de quem pretendo falar em breve), Johnston é considerado o pai da caligrafia moderna, e suas letras seguem vivas até hoje pelas ruas e túneis de Londres. (=
Caligrafia fundamental com Lygia Pires
Muito além do que ter letra bonita para escrever no dia-a-dia, a caligrafia tem por objetivo expressar uma mensagem de forma artística através de movimentos ritmados, ferramentas específicas e técnica. A premiada designer e artista Lygia Pires, que já estampou seus trabalhos para marcas como L’Occitane, Bauducco, Louis Vuitton e Timberland e conta com 16 anos de experiência em ilustração e 11 em caligrafia e lettering, irá ministrar um curso de forma online, entre março e abril, onde mostrará como trabalhar com a pena quadrada a partir do alfabeto criado por Edward Johnston.
Este workshop é uma introdução ao mundo da Caligrafia através do ensino do Alfabeto Fundamental, o qual é a base didática para o aprendizado de outros alfabetos. Durante o curso o alune poderá entender a construção de cada letra e a relação entre elas formando palavras e frases, o manejo da ponta quadrada e refinar olhar, tanto nos quesitos proporção, equilíbrio e ritmo como no estético, através de exercícios e acompanhamento. Por fim o alune irá aprender técnicas de como criar um composição utilizando caligrafia.
O curso é composto de 6 encontros online semanais (não é curso gravado), com 2 horas de duração cada. Cada alune ainda terá acompanhamento individualizado e feedback dos exercícios entre as aulas. O workshop terá duas turmas, sendo uma aos sábados de manhã e a outra às quartas à noite.
É indicado para designers, publicitários, arquitetos, tatuadores, artistas ou qualquer um que tenha interesse em conhecer mais sobre Caligrafia, tanto para quem está começando do zero, como para quem queira se aprofundar no assunto.
Para saber mais detalhes sobre o workshop e a professora, acesse o site (https://lygiapires.com/fundamental) ou clique no botão abaixo.
Errata:
Na última edição do ano passado: a fonte Terrorista, recomendada no capítulo passado, foi feita por Bernardo Faria e Tony de Marco.
Agradecimentos ao Diego Maldonado pela correção. (=
Recomendações:
🎧 Podcast: Brandster #TOQVSQSSMMTVDP 94, com Akira Goto e Claudio Rocha discutindo o uso de tipografia em projetos de identidade visual corporativa.
🎥 Vídeo: Letters | Pincel Chato uma demonstração da Lygia Pires de criação de letras fundamentais com pincel chato e múltiplas cores.
🔗 Link: TFC Foundational Hand, o projeto de fontes e material de estudo de caligrafia fundamental do Prof. Eduardo Novais.
🇧🇷 Fonte brazuca: Seiva, de Ana Laydner, Henrique Beier, Eduilson Coan e Fabio Haag.
Escrito em 99735.75
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Este episódio foi escrito por Cadu Carvalho, que também produz essa newsletter e já cortou a mão fazendo pena caligráfica com bambu. Debora Sales faz a revisão e é mais cuidadosa ao usar estilete.