O traço é o artefato fundamental. Nada é mais primordial que a forma de um único traço. Não podemos pressupor uma forma desenhando primeiramente seu contorno, porque qualquer desenho (incluindo os contornos) começa com a forma. Contornos são as bordas das formas. Se uma forma não existir, também não haverá um contorno.
Existe algo encantador no ser humano que desperta quando aprendemos e entendemos algo complexo a partir de seus conceitos mais simples e basilares. Imagine você, quando criança, vendo Carl Sagan explicando a quarta dimensão, um conceito tão intangível e complexo, a partir de um quadrado num plano e uma maçã voadora deixando impressões e fazendo sua silhueta aparecer enquanto ela se move numa dimensão inimaginável para um simples quadrado. Muitas áreas de conhecimento têm a oportunidade de conquistar alguém pelo fascínio de entender as coisas pelas suas fundações, quando temos alguém hábil e generoso o suficiente para explicá-las.
Uma dessas pessoas partiu para as estrelas recentemente: o professor, autor e type designer holandês Gerrit Noordzij. Ao longo de 90 anos vividos em função das letras, Gerrit deixou centenas de alunos, uma vasta contribuição para o ensino de tipografia e design de tipos, e um dos livros mais traiçoeiros que alguém pode (se você vive de tipografia, deve) ter na estante. “Traiçoeiro” num bom sentido, antes que pareça uma crítica vazia: ele é bem curto, tem menos de 100 páginas, mas não quer dizer que seja fácil ou de rápida digestão. No entanto, a compreensão sobre tudo que envolve o ato de desenhar letras nunca mais é a mesma depois de tê-lo lido. Espero que você não tenha pensado mal de mim sobre dizer que o livro é “traiçoeiro”: essa edição de hoje não é uma resenha, crítica ou uma análise formal, é só um compilado de divagações para falar bem de O Traço: teoria da escrita (lançado no Brasil pela Editora Blucher), de como os ensinamentos dele são importantes pra mim e pra qualquer um que viva de criar ou trabalhar com letras.
Os estudos contemporâneos sobre a escrita não observam atentamente o branco da palavra, mas o preto da letras. Consequentemente, as considerações se exaurem na exploração de diferenças superficiais. O ponto de vista universal, que permite a comparação entre a escrita manual e a tipografia, não observa o preto da letra. O preto de uma letra tipográfica é tão diferente do preto de uma letra manuscrita que, em um comparativo rigoroso, eles parecem incomensuráveis.
Quando falo de “criar ou trabalhar com letras”, eu tento ser o mais abrangente possível e incluir as turmas da tipografia, caligrafia e lettering como público-alvo desse livro, o norvana que une todas as tribos. O subtítulo “teoria da escrita” faz parecer que o livro é voltado para quem faz letras manualmente, só que a própria definição de Noordzij sobre tipografia — escrever com letras pré-fabricadas — e as primeiras linhas do primeiro capítulo derrubam essa impressão, em que Gerrit começa falando da dualidade entre as formas claras e escuras das letras. “A forma preta não pode ser alterada sem a mudança da forma branca e vice versa”. Ele não trata os espaços brancos como um simples vazio, mas como um componente indissociável da letra e do processo de escrever: “O branco da palavra é minha única ferramenta para manter as letras juntas”. Isso é universal para quem escreve com tipos, com pena ou com lápis e caneta, e muitos memes de tipografia não existiriam se o designer tivesse mais cuidado com o espaçamento.
Para o type designer, Gerrit sustenta desde o início a importância de entender a escrita manual para o estudo e prática da tipografia. Mesmo a fonte mais mecânica e industrial que você conseguir imaginar agora, talvez uma Helvetica ou qualquer das releituras das letras DIN, tem uma herança de escrita manual nelas. Elas aparecem nas diferenças sutis de contraste (diferença entre os traços mais finos e mais espessos das letras), na formação das serifas e direção das esporas (caso você tenha pensado numa fonte com serifas egípcias), no desenho de incisões. Em fontes mais clássicas, como Garamond, Plantin ou Bembo, a natureza caligráfica das letras é descarada. Nas que têm fundação na pena flexível, como Bodoni, Didot ou Baskerville, ela fica mais disfarçada, mas jamais ausente. O livro cita o caso das Romain du Roi, letras projetadas em grids que obedeciam a princípios cartesianos; só que, no fim das contas, o que virou tipo móvel mesmo foi a habilidade caligráfica de Granjan, inspirado nas letras escritas pelo mestre calígrafo Nicolas Jarry quase 50 anos antes. Não vou me alongar nesse ponto porque… bem… aguarde a próxima quinzena. ;)
Eu falo pouco da minha vivência com tipografia por aqui, mas posso dizer que meu encanto com as formas das letras começou a partir da primeira experiência com uma pena quadrada, feita de um talo de bambu achado em frente ao Instituto de Artes da UnB. Ainda tenho essa pena até hoje; escrever com ela é pouco agradável, o bambu não tem um tratamento adequado para segurar tinta por muito tempo, mas foi o suficiente para desenhar as primeiras letras da escrita fundamental de Johnston. Entender que o ângulo da pena quadrada é o que faz a haste direita da letra “A” ser mais espessa que a esquerda abriu minha cabeça irremediavelmente, e desde então, o bicho da tipografia não me largou mais. Demoraria muito tempo até que “O Traço” encontrasse minha vida, mas as coisas que aprendi experimentando com outras penas quadradas melhores e fazendo workshops de caligrafia estavam todas lá.
A tradução do professor Luciano Cardinali contou com a ajuda da mestra calígrafa Andréa Branco (de quem tive a honra de ser aluno por um fim de semana) para adaptação de termos para o português. As versões em língua local, somadas às ilustrações feitas pelo Noordzij espalhadas por todo o livro, ajudam a transmitir sua teoria de forma sucinta. Mais do que isso, ela ajuda o leitor à conectar-se com o pensamento do autor de como o desenvolvimento da escrita a partir da Idade Média é peça importante para entender a civilização ocidental, a partir da “invenção” da palavra. Não que elas não existissem, em seu sentido estrito; até o Império Romano ocidental, a escrita tinha uma função de transcrever discursos e pensamentos. Com o passar do tempo, ela passou a ter uma função documental, criativa e até gráfica; a palavra é consolidada em forma, com espaços ao seu redor, e em função, encapsulando ideias e conceitos que a linguagem fará sua função de ordená-la corretamente.
A palavra é composta de formas, brancas e pretas, as quais constituem uma unidade rítmica. Se o ritmo for fraco, a formação da palavra é pobre; se o ritmo estiver ausente, não há palavra, mesmo se as letras estiverem dispostas sobre o papel na sequência apropriada.
As pessoas próximas de Noordzij comumente apontavam o quanto ele era devoto às coisas que ele fazia, a ponto de abandonar o ensino médio para dedicar-se a criar algo com as próprias mãos. Ao longo do livro, a devoção dele fica evidente em sua defesa da teoria da escrita, contrapondo-a com o entendimento de escrita de outras áreas de conhecimento, como a história e a pedagogia. Estas, segundo o autor, não têm a devida preocupação de olhar para a escrita além das formas pretas, de seu significado; especialmente com a pedagogia, Noordzij apela para que ela dê mais atenção ao ensino da escrita — em oposição ao crescente abandono do ensino de caligrafia no ensino básico — e à compreensão da palavra.
Noordzij também era devoto ao ensino, tendo formado centenas de alunos — alguns celebrados internacionalmente, como Petr van Blokland, Erik van Blokland, Just van Rossum, e Luc de Groot — que apontam como sua maior virtude a busca por uma forma autêntica e inusitada de ensinar design de tipos. Ele não tinha pudor de pedir para cortar com estilete os trabalhos dos alunos, questioná-los sobre o que eles achavam do trabalho feito e experimentar soluções novas a partir das peças de letras cortadas. “O Traço” é uma versão aperfeiçoada de seu primeiro ensaio, “The stroke of the pen”, que já continha muito da forma dele de ensinar desenho de tipos usando a caligrafia como alicerce, e seu modo de ensinar ainda é muito presente no currículo da especialização em Type and Media da Academia Real de Arte em Haia (KABK).
O livro não economiza demonstrações dos aspectos teóricos que Noordzij comenta, sobre a formação de contraste por translação, rotação e expansão, os momentos históricos em que cada método foi preponderante, e porque essas coisas são fundamentos que todo abridor de letras devia saber. Apesar de ter demonstrações feitas com caligrafia, divagar sobre estilos de letras e falar de movimentos tipográficos, ele não é um livro de caligrafia, lettering ou tipografia. É um livro basilar, que completa qualquer outro do assunto; ele fala de fundamentos do traço, de contraste, velocidade, ritmo. Quem é do lettering fará bom proveito do Lettering Manual (Ken Barber, Watson-Guptill), Os Segredos de Ouro do Lettering (Martina Flor, Olhares) e O Traço. Se você gosta de caligrafia, O Traço vai bem com Desenhando Letras (Juliana Moore, Sextante) e A Arte da Caligrafia (David Harris, Doring Kindersley).
Num mundo em que mais pessoas se dispõem a viver de letras, na frente do computador ou com pincel e tinta, O Traço encontra sua razão de existir, mesmo que seja subestimado. São 96 páginas de uma reflexão profunda sobre o que faz da escrita uma invenção ímpar na história da civilização, e o que faz uma escrita boa destacar-se da mera reprodução da forma preta de estilos históricos. Noordzij às vezes apela para a geometria para demonstrar seu método, só que a matemática está lá mais por uma questão de fé e devoção à sua própria teoria. Ele não é das pessoas mais racionais que você terá lido, tem uma maneira própria de entender alguns fatos históricos e transmitir seu conhecimento, e para isso, demanda apenas que você também tenha um pouco de fé. Sugiro que tenha. ;)
Para comprar:
🛒 Livro: O Traço: teoria da escrita, de Gerrit Noordzij. Editora Blucher.
Recomendações:
🎧 Podcast: The Weekly Typographic #56, (em inglês) sobre a criação de contraste nas formas de letras por meio de translação e expansão.
🎥 Vídeo: Gerrit Noordzij on drawing, (em inglês) com Noordzij explicando o desenho de letras e formação de contraste por meio de hachuras.
🔗 Link: Building a Noordzij cube, (em inglês) com Erik Van Blokland demonstrando o processo de criação e montagem de uma reconstrução física do cubo de Noordzij.
🇧🇷 Fonte brazuca: Diafone, de Renan Rosatti.
Nota do editor:
Primeiro, desculpas por tanto link em inglês nas recomendações. Eu gosto que exista pelo menos um em português nessa seção, pra recomendar conteúdo feito por lusófonos, mas por hoje achei mais adequado manter o tema (além de que alguns links de podcasts que eu também achava pertinentes já foram recomendados antes =P).
Fora isso, como disse lá no começo, esse texto não é uma resenha, crítica ou resumo; “O Traço” é um livro que eu queria que tivesse chegado mais cedo na minha vida, que fez parte da especialização em tipografia e que deveria estar em mais estantes Brasil afora, e por isso achei que uma forma justa de homenagear Noordzij seria discorrer sobre criação de letras a partir de sua obra mais famosa. Se você vive de criar letras e te convenci a comprar o livro, meu trabalho aqui está pronto.
No mais, espero que fiquem bem, e até a próxima quinzena. ;)
Escrito em 99872.21