Tipo Aquilo #36 – Som e pausa, letra e espaço
Em 2002, o Winamp, famoso player de música digital para Windows, ganhou sua terceira versão. Na teoria, ele não mudava muita coisa em relação ao anterior; na prática, ele era muito menos estável, com menos recursos e um notório beberrão de memória RAM. No ano seguinte, seu sucessor, o Winamp 5 (foi 5 mesmo, eu não errei a conta) chegou ao mercado com vários recursos, mas nunca mais teve a fama que a versão 2 teve nos anos de ouro da Internet discada. Um exemplo desses recursos é o cross-fading, em que ao final de uma faixa, o Winamp já tinha lido a faixa seguinte e começado ela sem pausa. Isso foi muito maneiro, mas a falta de respiro na experiência de ouvir música com cross-fading encheu o saco 20 minutos depois.
Tipografia e música são dois grandes interesses da minha vida que são iguais em uma coisa: o funcionamento básico deles depende de como a gente alterna entre som e pausa, ou positivo e negativo. A gente dá o nome de “ritmo” a essa alternância que a gente não vê, mas sente quando está acontecendo na sua frente. O corpo tende a querer se mover no ritmo da sua música favorita, tal como o olho tende a não se distrair quando as letras e seus espaçamentos favorecem uma alternância gentil entre forma e contra-forma. O domínio da contra-forma é uma das qualidades que mais separa os designers de tipos iniciantes dos veteranos.
Primeiro, acho legal falar um pouco dos espaços mais óbvios, estes que você vê entre as palavras. São tão óbvios, mas na cultura europeia, surgiram apenas no séc. VII; antes, as palavras eram comumente marcadas por pontos em vários sistemas de escrita; ou simplesmente não eram marcadas e azar de quem tivesse que ler, já que não era muita gente mesmo. Na Europa, esse tipo de composição chamada scriptio continua agrada um lado meu que curte texturas uniformes, mas me desagrada profundamente ao imaginar a monotonia de um texto sem espaços. A escrita tinha o propósito de transcrever discursos de alguma pessoa de influência, como um filósofo ou um clérigo, para que esse discurso fosse falado enquanto lido; por isso, o scriptio continua fazia sentido.
Paul Saenger em “Space Between Words: The Origins of Silent Reading” conta que, no séc. VII, escribas irlandeses introduziram o conceito de Suflair “texto aerado”, em que espaços eram colocados ao longo do texto, mas não necessariamente entre todas as palavras. Essa presença de espaços dentro do texto é vista por alguns estudiosos como uma forma degenerada do cola et commata, uma forma de escrita em que o texto era separado por linhas que constituem ideias únicas. Apenas a partir do séc. XI que a separação de palavras por espaços tornou-se canônica, à medida em que os textos deixavam de ser meras transcrições de pensamentos.
Atualmente, não conseguimos pensar em textos sem espaços. Uma vez que a separação de palavras tornou-se comum, os espaços tornaram mais fácil rastrear e apreender informação; junto com os sinais de pontuação, eles dividem o texto em unidades de som e significado mais compreensíveis. Dessa forma, a leitura em voz alta do texto não era mais necessária para seu entendimento. A dispersão da tipografia pelo mundo a partir do séc. XV aumentou a oferta de textos escritos, tornando possível que mais pessoas tivessem cópias próprias até de volumes inteiros. Com isso, o ato de ler tornou-se predominantemente uma atividade individual, silenciosa, e em várias vezes, orientada à busca de informações, ao invés da compreensão de todo o fluxo de pensamento do texto.
O desenvolvimento da tipografia levou à criação de vários tipos de espaços, cada um com dimensões e propósitos diferentes; em fontes com números de largura fixa, existem os figure spaces, espaços equivalente à largura desses números. Existem também os espaços finos, usados entre letras e aspas ou apóstrofos; na tipografia digital, existem os espaços invisíveis e os non-breaking spaces, que separam palavras visualmente, mas impedem quebras de linha entre elas; e existem também os espaços duplos em fim de frase, costume entre usuários de máquinas de escrever que, enfim, o Word passou a mostrar como um erro de estilo.
Agora, vamos falar dos espaços entre letras (espaçamentos) e dentro das letras (contra-formas). Estes existem desde que a primeira letra foi escrita, e esses são os que mais dão dor-de-cabeça a calígrafos e designers de tipos. Inclusive, é um consenso entre type designers que espaçamentos sejam pensados ao mesmo tempo que as letras em si, pois constituem o ritmo da fonte junto com as formas e contra-formas. Fred Smeijers, em “Contrapunção: fabricando tipos no século dezesseis, projetando tipos hoje” chama de “um jogo de preto e branco” a forma com que uma mudança no espaço branco da letra provoca a alteração no espaço preto, e como ambos, no fim das contas, são uma coisa só.
Smeijers aborda também os métodos que existiam para a criação de punções. A criação de tipos móveis sempre dependeu de punções para que cada nova caixa de tipos fosse fiel ao projeto original. Era consenso que as formas externas das punções fossem cortadas e limadas, mas a criação das contra-formas dividia-se entre os gravadores que escavavam manualmente esses espaços nas punções, e os que utilizavam punções específicas para este fim. Estas eram chamadas de contra contrapunções porque eram marteladas contra outras punções que, estas sim, eram usadas para criar tipos móveis.
(explicar tudo isso é complicado, por isso aconselho ver o vídeo recomendado no final dessa edição)
As punções tinham dimensões práticas e simbólicas para o gravador; punções podiam ser herdadas e transferidas por gerações de gravadores, como um atestado de qualidade das fontes que ajudaram a criar. Em termos práticos, o uso de contrapunções para os espaços negativos das letras é mais do que um acréscimo de eficiência na criação de tipos; em várias fontes, as letras “p”, “b”, “d” e “q” têm contraformas iguais, variando apenas a posição. Com isso, usava-se uma única contrapunção para quatro letras, enquanto a escavação exigia quatro procedimentos manuais pra cada letra. Isso representa um pensamento de design na criação de tipos, de forma que as ferramentas são reflexo de um sistema visual conciso com pequenas variações, essencial para a produção em série de tipos.
Falar do espaço em branco na tipografia também envolve falar do espaçamento entre as letras. No ensino de tipografia, uma analogia que ajuda a entender esse equilíbrio entre espaços internos e externos é pensar esses espaços como reservatórios de água. Numa composição tipográfica ideal, os espaços entre as letras devem comportar o mesmo volume de água, e os espaços dentro das letras também devem comportar esse mesmo volume de água. Esse balanço muda um pouco, de acordo com cada fonte e seu devido propósito, mas é algo que passa longe de ser determinado por valores absolutos. Às vezes é necessário criar kernings, que são espaçamentos entre pares específicos de letras. Mesmo na tipografia digital, que conta com o poder dos computadores para fazer cálculos precisos, esse equilíbrio é alcançado apenas com a mais poderosa das ferramentas: o olho humano.
Outro efeito é a diferença de espaçamentos entre versões normais, bold e light da mesma fonte. Em negrito, as contraformas das letras tendem a ser menores e, por isso, os espaços entre letras também são menores. Já nos pesos leves, o aumento da área das contraformas leva a um consequente incremento na distância entre as letras. Também é normal em fontes para títulos que as distâncias entre letras sejam menores para compensar o espaço vazio ao redor. Em fontes para texto, os espaçamentos são ligeiramente maiores para que os espaços entre palavras não criem tantos buracos e o texto pareça mais uniforme.
Calígrafos e letristas também precisam treinar essa noção de equilíbrio entre espaços positivos e negativos, pois ao contrário da tipografia, não há ferramenta que automatize os desenhos e espaços das letras. Aliás, nenhuma ferramenta é tão precisa para apontar erros de espaçamento do que o olho e a noção de “tem algo errado aqui”, assim como o ouvido tem uma capacidade singular de perceber algo errado numa música, de um instrumento desafinado a uma nota fora do tom. Tal como a música, esse delicado equilíbrio de sons e silêncio, a tipografia expressa sua própria beleza com o balanço de conceitos opostos.
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Recomendações:
🎧 Podcast: Janacast, com Janaína Branco, Jota Vilanova e Sara Régia discutindo sobre tipografia e seu ensino no Laboratório de Tipografia do Agreste (LTA-UFPE).
🎥 Vídeo: Punchcutting at the Atelier Press, que mostra (em inglês) o processo de criação de uma punção para tipo móvel. Vale a pena ver o restante do processo nos outros vídeos do canal.
🔗 Link: Kerntype, um jogo em que você precisa mover as letras internas de cada palavra para conseguir o melhor espaçamento possível.
🇧🇷 Fonte brazuca: Amarela Stencil, de Sofia Mohr.
Escrito em 98786.93