Tipo Aquilo #84 – Missões tipográficas
Disputas territoriais, catequização e tipos móveis nas missões jesuíticas
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Porto Alegre e outras dezenas de cidades do Rio Grande do Sul foram tragicamente atingidas por chuvas e enchentes desde o final da semana passada. Centenas de famílias estão desabrigadas, perdendo seus lares e pertences. No momento em que escrevo essa edição, 95 pessoas morreram e mais de 130 pessoas estão desaparecidas. Contudo, as fortes chuvas ainda afetam quase dois terços do estado, impactando mais de setecentas mil pessoas. Somam-se às chuvas, diversas políticas de degradação ambiental e sucateamento dos órgãos e mecanismos de defesa contra a ação do clima, deixando a população pobre à própria sorte, dependendo da solidariedade do resto do estado e do Brasil.
Por isso, essa edição traz já de cara vários meios para que, se você puder fazer uma contribuição, faça da maneira que você achar melhor. Diversas entidades estão colaborando como podem para mitigar os efeitos das enchentes, e dependem da ajuda das pessoas neste momento para manterem suas operações e enfrentar a tragédia climática. Eis algumas delas, e como doar:
CUFA (Central Única das Favelas): PIX para o e-mail doacoes@cufa.org.br, doações de alimentos não-perecíveis da cesta básica, higiene pessoal e itens de vestuário em pontos de arrecadação disponíveis em @cufabrasil.
Cozinhas Solidárias do MTST: PIX para o e-mail enchentes@apoia.se e doações para o site apoia.se/enchentesRS.
Correios e FAB: doações de alimentos não-perecíveis da cesta básica, higiene pessoal e itens de vestuário em agências dos Correios de SP e PA, e bases aéreas de Brasília, São Paulo e Galeão (RJ).
GRAD (Grupo de Resposta a Animais em Desastres): PIX para o CNPJ 54.465.282/0001-21.
Instituto Vakinha: PIX para o email enchentes@vakinha.com.br ou diretamente pelo site, com opções para doação fora do Brasil.
Deixo como destaque também a iniciativa dos queridos da Fabio Haag Type, que reverterão o valor dobrado de toda a receita bruta da venda de fontes online deste mês em doações para ao SOS Rio Grande do Sul. [atualização em 09/05/2024] Eles também estão juntos com a Plau e outros estúdios e agências, como Tátil, FutureBrand e Greco, na campanha SOS RS Design oferecendo ferramentas de estudo e produção criativa por um preço promocional, revertendo o faturamento em doações.
Outra iniciativa legal é a da
que está organizando um aulão de escrita criativa on-line com 16 escritores nacionais, tendo toda a arrecadação doada para coletivos de ajuda da sociedade civil.Falando do Rio Grande do Sul, tenho uma história pequena, mas que vale a pena ser contada. Vocês lembram do Tratado de Tordesilhas, de 1494, que fatiava a América inteira entre Portugal e Espanha como se nenhum outro império europeu soubesse desse pedaço insignificante de terra à Oeste? Corta a cena para pouco mais de 250 anos depois, com a América colonizada por portugueses, espanhóis, franceses, ingleses, e até a coroa neerlandesa dava alguns passeios pelo Norte e Nordeste da América do Sul. Ao estabelecer novos entrepostos e abrir caminhos que tornar-se-iam estradas ligando novos povoados às cidades do litoral, a atividade dos bandeirantes permitia que Portugal sutilmente ignorasse os termos assinados em Tordesilhas e Zaragoza, e avançasse a oeste.
Também havia avanços da coroa espanhola em territórios portugueses, criando uma bagunça territorial que os dois reinos ibéricos resolveram com um novo acordo, o Tratado de Madrid, estabelecendo novas fronteiras para suas colônias sul-americanas em 1750. Esse tratado é o ponto de partida para a formação das fronteiras que existem atualmente entre Brasil e países vizinhos. Só que, mesmo com esse novo tratado, alguns territórios permaneceram em disputa por anos. Um desses territórios compreende os arredores da província de Misiones, na Argentina, onde a atividade das reduções jesuíticas foi responsável por estabelecer novos povoamentos, catequizar e alfabetizar povos indígenas e reafirmar a presença e dominância de cada reinado. Essas reduções, promovidas pela ordem da Companhia de Jesus, estendiam-se do Sul do atual Paraguai a Oeste do estado brasileiro do Rio Grande do Sul.
A Companhia de Jesus foi uma ordem católica fundada ainda no séc. XVI como resposta à Reforma Protestante. Embora pregasse a total obediência à Igreja, ela permitia uma atuação mais flexível de seus jesuítas, não exigindo uma vida monasterial e reclusa. A Companhia de Jesus foi um braço fundamental da Igreja Católica para manter alguns bastiões na Alemanha, como Bavária e Munique, e atuar em colônias ultramarinas na África, Ásia e América. Ela foi importante para a colonização sul-americana no séc. XVII, tanto para Espanha quanto para Portugal. Enquanto submetiam a população indígena ao catecismo e ao modo de vida europeu, os jesuítas estabeleceram povoados e criaram uma economia primária nessas proto-cidades entre os anos de 1609 — quando foi estabelecida a Província Jesuítica do Paraguai — até meados dos anos 1800.
Os jesuítas também documentaram suas ações e impressões sobre o território. Do lado português, os missionários podiam apenas redigir documentos e correspondências entre as reduções e a Santa Sé. Limitados pela proibição de atividade industrial no Brasil-colônia, nem mesmo a Companhia de Jesus podia operar oficinas tipográficas. Tal limitação não existia nas colônias hispânicas, onde a atividade tipográfica era presente desde 1539, estendendo-se do México à Argentina com o passar do anos e produzindo tanto os primeiros registros escritos das línguas indo-americanas quanto os materiais didáticos para catequese nestas mesmas línguas. Os primeiros volumes em espanhol da língua guarani datam de 1639, com o jesuíta Antonio Ruiz de Montoya criando o primeiro dicionário Espanhol–Guarani.
Esse dicionário, além de outros volumes posteriores, eram impressos na metrópole castelhana. Ter uma operação tipográfica local era importante para os jesuítas, a fim de produzir com maior agilidade impressos traduzidos e corretamente adaptados para o guarani, incluindo caracteres específicos da língua. Entre 1700 e 1727, a Companhia de Jesus operou uma oficina tipográfica chefiada pelos clérigos José Serrano e Juan Bautista Neumann. Eles tinham permissão para operar apenas uma tipografia, mas conseguiram publicar volumes em diferentes cidades forjando e distribuindo jogos de tipos móveis entre diferentes reduções, como Loreto, San Francisco Javier e Santa María La Mayor, e transportando uma prensa tipográfica entre elas, conforme a necessidade de cada missão. A dificuldade de manter essa operação, com a fabricação e distribuição local dos tipos móveis, e o próprio transporte da prensa mecânica, impunha uma qualidade inferior aos volumes produzidos na tipografia jesuítica.
Serrano foi responsável por traduzir obras de espanhol para guarani até sua morte, em 1714. Neumann fora responsável pela impressão nos poucos anos que viveu após a fundação dessa tipografia, e pouco se sabe sobre ela após 1727, data de impressão dos últimos volumes encontrados até hoje. A dificuldade de obter matéria-prima, como papel, tintas e metal, é uma das principais causas especuladas para o desaparecimento dessa tipografia itinerante. Os conflitos territoriais entre Portugal e Espanha e a atuação errática da diplomacia espanhola na região também foram fatores cruciais. Outras tipografias foram instaladas nas proximidades, como em Córdoba, em 1764. No entanto, o poder da Igreja Católica já não era mais o mesmo, e a Companhia de Jesus foi banida pela Coroa Espanhola em 1767 — tendo sido expulsa do Brasil-Colônia ainda em 1759. O Iluminismo tornou-se um pensamento dominante na Europa, tornando mais poderosos os estados modernos ante o poder papal, e diversos jesuítas precisaram regressar ao velho continente deixando suas atividades para trás.
A transferência de territórios causada pelo Tratado de Madrid de 1750, feita à revelia das populações locais, levou a conflitos armados que reduziram o poder das missões jesuíticas e abreviaram seu fim. No lado espanhol, o processo de independência das colônias colocou a região em nova disputa territorial, com a área das antigas reduções da Companhia de Jesus sendo dominada ora pelo Paraguai, ora pela Argentina. No Brasil, as reduções jesuíticas deixaram como legado a área dos Sete Povos das Missões, um sítio arqueológico tido como origem de várias histórias e personagens do folclore gaúcho. Os impressos da tipografia de Serrano e Neumann têm grande valor para entender o modo de vida das populações dessa área, o avanço da atividade tipográfica na América do Sul e a documentação e aprendizado do guarani — língua oficial do Paraguai, junto ao espanhol nos dias atuais.
Essa foi uma edição expressa, com uma história mais curta e escrita a toque de caixa para incentivar vocês a colaborarem como puder. Por isso, não vou poder dedicar muito tempo às recomendações. Corram atrás dos links para doação, e ajudem da forma que for possível. (=
Recomendações:
🎧 Podcast: Scicast #373, sobre a colonização da América Espanhola.
🎥 Vídeo: Sete Povos das Missões: convivência entre indígenas e jesuítas, reportagem da Band sobre o período histórico da presença jesuítica na área.
🔗 Link: tipoGráfica #56 e #59, as duas edições da Revista tipoGráfica utilizadas como fonte para esta edição (se puder, veja outras edições no arquivo também), além da dissertação de mestrado do Érico Lebedenco.
🇧🇷 Fonte brazuca: Pausa, de Eduílson Coan, Henrique Beier e Thiago Bellotti.
Escrito em 101349.311