Tipo Aquilo #64 – Um outono na Alemanha
Da invenção da tipografia às 95 teses de Lutero: a história de como a comunicação em massa fraturou a Igreja Católica e mudou o mundo.
(Antes de começar, um aviso: esse texto não é novo, estava lá no meu Medium há algum tempo, mas como eu tive a oportunidade de revisar e ampliar alguns pontos, vou deixar ele aqui pra não ficar muito tempo sem posts… além da falta de tempo, tive um texto que engavetei por não saber dar o rumo que eu queria agora, e outro que precisa esperar a próxima quinzena. Enquanto isso, fiquem bem e se cuidem.)
Em 2010, na Tunísia, um vendedor de rua ateou fogo em si como protesto contra o abuso de autoridade da polícia. Seu sacrifício insuflou a população contra o autoritarismo na política, e a Revolução de Jasmim trouxe para o país sua primeira eleição democrática. Em vários países próximos, ativistas organizaram manifestações semelhantes, na ambição de trazer regimes verdadeiramente democráticos para seus países. Como as mídias tradicionais — TV, rádio, jornais — eram controladas pelo poder vigente, a palavra da Primavera Árabe espalhou-se pela Internet, entre plataformas de mídias sociais, como os meios possíveis de comunicação em massa.
Fenômenos como a Primavera Árabe são momentos em que a sociedade, enfim, entende o verdadeiro potencial transformador de uma nova mídia de massa — ignoremos, por ora, que a Tunísia já está num perigoso caminho de volta à autocracia, e outros países nem chegaram a ter um momento verdadeiramente democrático. Neste artigo, vamos voltar algumas centenas de anos no tempo, quando uma prensa foi protagonista de uma revolução similar que ajudou a mudar a história. O Tipo Aquilo de hoje coloca em foco o papel da tipografia na Reforma Protestante.
Para entender um pouco do que aconteceu, precisamos voltar para um pouco antes da Reforma em si, ao início do séc. XV. Johannes Gutenberg, quando volta de Strasbourg para sua cidade natal Mainz, se vê numa situação apertada: sem nenhum dinheiro, buscando investimento para fazer funcionar as ideias loucas que tinha na cabeça. Quase um startupeiro. Não sabemos se Gutenberg chegou a conhecer os tipos móveis chineses inventados na China por Bì Shēng muitos anos antes, e também tipos feitos na Coreia durante o séc. XV. Durante seu tempo morando num quarto escondido, Gutenberg fez vários experimentos com gravação de blocos inteiros de madeira; posteriormente, começou a experimentar com letras separadas e compostas manualmente. Certo de que sua futura invenção poderia ter um grande impacto cultural, ele buscava manter tudo em segredo de qualquer pessoa.
Com o pitch de que livros poderiam ser mais acessíveis às pessoas e não precisariam custar uma fortuna (até nisso era startupeiro o rapaz), Gutenberg convenceu o advogado e ourives Joahann Fust a investir na sua ideia. Com o investimento inicial, ele conseguiu, enfim, resolver as principais falhas de seu novo sistema de imprimir: os tipos de madeira rígida foram substituídos por chumbo gravado; a tinta passou a ser feita com óleo para que aderisse às matrizes e secasse rapidamente no papel; e a prensa de uvas foi adaptada para pressionar as matrizes de chumbo contra o papel. Nascia, assim, a prensa tipográfica que deu origem aos sistemas de impressão textual usados no mundo desde então; como toda invenção de sucesso, a prensa tipográfica e os tipos móveis de chumbo não tardaram a alastrar-se pela Alemanha e o restante da Europa. Não antes de Gutenberg ser processado pelo sócio, perder o processo, montar outra oficina e, mesmo assim, morrer na pobreza… como quase todo startupeiro.
O importante, ao mencionar Gutenberg, não é apenas sobre a história de sua invenção, mas sim o primeiro grande produto de sua invenção. Mesmo entre o clericado, poucos tinham acesso a uma Bíblia, pois demoravam-se dezenas de anos até que um volume fosse completamente manuscrito e preparado; para o alemão, nada melhor para estrear sua invenção e ganhar o respaldo da Igreja Católica do que imprimir seu livro mais importante. Existe uma certa incerteza sobre uma perseguição da Igreja a Gutenberg por causa da prensa tipográfica: os volumes produzidos por Gutenberg continham todos os livros originais em latim, o que compreende uma Vulgata. Anos mais tarde, várias oficinas tipográficas da Europa eram controladas pela Igreja: cada publicação exigia aprovação clerical para que fosse distribuída, e quaisquer traduções dos textos sagrados para idiomas locais eram vetados.
Mesmo esse controle não impediu que publicações condenadas pela Igreja, como o Malleus Maleficarum (falarei mais dele daqui a pouco, mas tem uma edição toda pra ele), fossem impressas e distribuídas em grandes quantidades. Por causa do renascimento, havia também uma demanda significativa por textos clássicos da antiguidade grega, outrora preservados em mosteiros; e até um certo Aldo Manúcio soube fazer dinheiro aperfeiçoando o formato dos códices, para que fossem mais fáceis de guardar e trasportar, e colocando no mercado desde textos da antiguidade até a Divina Comédia. De qualquer forma, o controle sobre a informação, entre outros motivos, foi o grande objeto de questionamento de um monge em outro canto da Alemanha.
Embora a vontade de Gutenberg fosse fazer muito dinheiro e se livrar de seu agiota democratizar a escrita e popularizar o conhecimento, as prensas tipográficas ainda serviam a um público muito seleto. Contando com clérigos, docentes, alunos e a elite urbana, apenas 9% dos habitantes dos reinos que compõem a Alemanha atual era alfabetizada. A produção textual limitava-se aos caros volumes aprovados pela Igreja, e a única oficina tipográfica de Wittenberg limitava-se a imprimir pequenas teses dos alunos locais. Esse controle sobre o que as gráficas alemãs eram autorizadas ou não a imprimir e publicar era um de vários motivos de descontentamento do monge Martinho Lutero com a Igreja Católica. Contudo, perto do comércio de indulgências que a igreja fazia, o que é tido como ponto culminante para a revolta do monge agostiniano, gráfica fechada era só mais uma terça-feira.
Há debates sobre se Martinho Lutero realmente pendurou suas 95 teses nas portas das igrejas de Wittenberg, no fim do outubro de 1517. Essa data é comumente ensinada como o marco da Reforma Protestante, mas para fins deste texto, vamos tomar como mais interessante o que veio depois. Após Lutero expôr a Igreja Católica para os cidatinos de Wittenberg, começou o trabalho de expôr sua visão religiosa às pessoas de forma mais compreensível para elas, tendo as gráficas como peças-chave de seu movimento e colocando-as para funcionar sob sua vista. As cópias das 95 teses foram impressas em latim, mas logo passou a distribuir panfletos e ensaios escritos em alemão. Ao invés das 95 teses, seu Sermão da Indulgência e Graça, de 1518, escrito na língua local e reimpresso dezenas de vezes naquele ano, foi o que realmente introduziu o povo às suas ideias. Isso parece pouco, mas ter algo impresso em uma língua local, ao invés do latim, não era qualquer coisa.
Tamanho foi o sucesso do sermão de Lutero, a demanda por novas cópias cresceu vertiginosamente. Do ponto de vista do design gráfico, um motivo para o sucesso era a facilidade de ser impresso: seu texto de 1500 palavras cabia numa única folha de papel dobrada em quatro partes, permitindo que até a pequena oficina de Wittenberg pudesse imprimi-la. Socialmente, o texto simples, direto e escrito em alemão, opunha-se radicalmente ao modo com que a Igreja Católica difundia suas posições; caso uma pessoa não pudesse ler seu sermão, encontraria algum arauto pela cidade em busca de ouvidos atentos. Não menos importante, para os impressores de Wittenberg e, pouco depois, cidades vizinhas, atender a demanda de Lutero correspondia a um retorno financeiro imediato. Em 1519, Lutero era o autor mais publicado da Europa, e o primeiro autor a ter seu nome em destaque nas capas de livros.
Suas 95 teses foram traduzidas, e cópias espalharam-se entre a população letrada. Vendo esse crescimento assustador das ideias de Lutero, a Igreja Católica respondeu bravamente… com sermões em latim. Nenhum clérigo ousaria reproduzir os escritos e o santíssimo discurso teológico em línguas aquém de sua dignidade. Afinal, prioridades. O ponto da questão é que, sem os instrumentos comuns de repressão do estado, que a Igreja Católica perdeu o controle pouco tempo depois, ela não sabia o que fazer, e pouco podia fazer além de dizer que a produção de Lutero era (perdoe meu latim nada apurado) falsum nuntium. Assim como, atualmente, as mídias sociais — destaque para os aplicativos mensageiros como WhatsApp e Telegram — têm um papel importante em definir na cabeça do cidadão pouco versado o que é ou deixa de ser verdade, o domínio da verdade, nos tempos de Lutero, passou para quem sabia colocar papel na prensa e espalhar aos quatro ventos.
Voltando um pouco no tempo, em 1487, o clérigo Heinrich Kramer mandou para os impressores seus escritos sobre como identificar, combater, criminalizar e exterminar bruxas. Baseado numa bula do Papa Inocêncio VIII (e reproduzindo-a ipsis litteris), lançou o Malleus Maleficarum e conseguiu a proeza de, três anos depois, ser condenado pela inquisição católica. Embora não fosse um livro endossado pela Igreja, a histeria pela caça às bruxas fez com que, por 200 anos, os escritos de um clérigo malquisto até pela própria Igreja fosse um dos livros mais vendidos do mundo. Mesmo depois, as práticas de doutrinas cristãs ultraconservadoras, como os puritanos de Salem, proviam muita demanda ao livro. Agora, voltemos a Lutero: ano de 1520 foi o mais produtivo da vida do reformista, em que publicou seus mais famosos livros por todo o território germânico. As vendas eram absurdamente grandes, tamanha era a demanda por uma visão religiosa compreensível pela população.
Durante os anos da Reforma Protestante, a indústria gráfica alemã foi praticamente monopolizada pelos textos de Lutero, maior até que a demanda pelo Malleus dezenas de anos antes. Esse fenômeno de mercado impediu que outros autores — incluindo detratores do teólogo alemão — tivesses seus trabalhos impressos e distribuídos. Os impressores trabalhavam, em sua maioria, apenas com pagamentos à vista. Lutero tinha a seu lado a população alemã, inspirada por sua retórica compreensível. Tinha também a nobreza e burguesia local, ansiosos para romper com a autoridade papal e a ética católica que contrapunha-se ao espírito capitalista, e credores da grande quantidade de impressos encomendados por Lutero. Antes fomentada por razões religiosas, a Reforma Protestante assume um caráter político emancipatório, que culmina com a definitiva excomunhão de Lutero em 1521 e a violenta expulsão da Igreja Católica do território germânico no mesmo ano.
Nos anos seguintes, as gráficas alemãs continuaram imprimindo Lutero constantemente: em 1522, a tradução em alemão para o Novo Testamento foi impressa e distribuída. Além da Bíblia, dezenas de manuscritos produzidos pelo teólogo rapidamente saíam das prensas para as livrarias. A eficiência com que suas ideias eram distribuídas para os leitores e ouvintes, que apenas a prensa tipográfica oferecia na época, foi crucial para que a Reforma fosse bem-sucedida na Alemanha e, por fim, desse origem à Igreja Protestante Luterana no mesmo ano. A tipografia desempenhou um importante papel para a consolidação do Luteranismo; com a mesma velocidade e eficiência que produziu os livros de Lutero, a indústria gráfica alemã produziu as gramáticas que as escolas públicas fundadas pela nova igreja utilizou para ensinar crianças a ler e escrever. O ensino público ajudou também a unificar a língua alemã. De 1475 a 1550, a alfabetização na Alemanha quase dobrou para 16%. Em 1605, quase 60 anos após a morte de Lutero, surgiu no país o primeiro jornal da história.
A eficiência da máquina gráfica alemã também foi importante para que Lutero pudesse responder rapidamente à propaganda Católica infiltrada e sedimentasse suas ideias na população contra visões subversivas de seus ensinamentos. Entre essas subversões, consta a Guerra dos Camponeses, ocorrida entre 1524 e 1525, em que Thomas Münzer, ex-discípulo de Lutero, lutou por uma radicalização da Reforma de forma a extinguir diferenças entre classes sociais. Lutero, sustentando que era por vontade divina a existência de “servos e senhores”, condenou a revolta empreendida por seu antigo discípulo, em que morreram 100 mil camponeses.
A facilidade com que textos, ilustrações e gravuras de Lutero espalhavam-se pela Alemanha é comparável à velocidade com que memes se espalham atualmente pelas plataformas modernas de redes sociais. Com a apropriação da tipografia, xilogravura e outros meios de reprodução gráfica, o teólogo conseguiu espalhar sua mensagem como nenhum outro conseguira até então. Sendo Gutenberg o inventor da prensa tipográfica moderna, Lutero é comumente citado como o inventor da mídia de massa.
Compreender a profundidade da Reforma Protestante na Alemanha e outros países, no espectro social, é uma discussão semelhante a como as mídias sociais de hoje ajudam a difundir ideias (certas, erradas e muito erradas), fomentar revoluções e moldar a forma com que pensamos e agimos sobre política, cultura e sociedade. Também trata-se sobre como lidar com uma quantidade grande e não prevista de informação para um público que não está preparado para lidar com tanta informação vinda “de graça”, e ver como esse público reage repetindo o conteúdo com apenas alguns poucos questionando veracidade, checando fontes, seguindo a money trail e vendo seus reais interesses.
Afinal, toda época tem o zapzap que merece.
Recomendações:
🎧 Podcast: História em Meia Hora – Reforma Protestante, com o professor Vítor Soares comentando sobre o período da história alemã.
🎥 Vídeo: Como a gráfica de Gutenberg funcionava, (em inglês) uma demostração do funcionamento dos antigos maquinários e instrumentos da época de Gutenberg.
🔗 Link: Our World in Data: Literacy, (em inglês) uma mostra interativa sobre os dados mundiais de alfabetização e acesso à cultura escrita.
🇧🇷 Fonte brazuca: Gaspar Italic, de Érico Lebedenco.
(Re)escrito em 100359.78