Interrobang #2 – Dúvidas duvidosas do Google
Respondendo perguntas do campo de buscas de Google e Bing
Tempo de leitura: 7 minutos
O typeahead do Google é um dos elementos que consagrou o buscador como um líder de mercado do fim dos anos 2000 até hoje. Esse mecanismo de mostrar (e autocompletar) prompts de busca, do ponto de vista de engenharia de software, é muito complexo, exigindo um sistema próprio para entregar em tempo real uma lista de respostas possíveis, alimentada por buscas anteriores de outras pessoas e do histórico do usuário. Apesar de não ser imune a respostas controversas e com viés fascista, faz seu trabalho na medida do possível. Por isso, hoje, o Tipo Aquilo brinca de Wired's Autocomplete Interviews e traz algumas das questões sobre tipografia mais perguntadas no Bing e no Google. (=
Explicando a brincadeira: eu elaborei alguns prompts em inglês ([“does”, “is”, “why”, “what”, “when”, “which”, “how”] + [“typography”, “fonts”]) e selecionei a mais interessante dentre as três primeiras ocorrências de cada buscador.
Fontes têm copyright? (do fonts have copyright?)
Ao publicar uma fonte, o autor pode licenciá-la de diversas formas para fins distintos. É comum que algumas fontes tenham licença de uso livre para fins pessoais e acadêmicos, porém restrita (ou paga) para uso comercial. A maioria das fontes exigem pagamento para o usuário adquirir uma licença de uso. Em alguns repositórios, como o Google Fonts e o Font Squirrel, encontram-se fontes liberadas para uso gratuito para fins pessoais, mas pode ser que algumas não possam ser usadas comercialmente. O ideal é sempre procurar alguma página pessoal do autor ou entrar em contato para checar se a fonte dele pode ser usada no seu projeto.
Com quais fontes são escritos os livros? (what fonts are books written in?)
Editoras em geral trabalham com uma variedade pequena de fontes para livros, devido a questões de licenciamento, de volume de trabalho e de praticidade, contando com fontes que elas já sabem que funcionam e o público em geral recebe bem.
Quando a editora dá bom exemplo, ela coloca no final do livro um breve texto declarando as fontes usadas no volume, assim como o tipo de papel, a gráfica e sua localização, além da data de impressão. Esse texto é chamado colofão, uma espécie de “assinatura” usada por antigos tipógrafos que persiste até hoje.
Quais são as fontes mais fáceis de ler? (which fonts are easier to read?)
Lá no primeiro Interrobang, eu expliquei que existem diferentes formas de ler. As pessoas podem alternar entre leitura de imersão (padrão de livros de ficção), leitura de rastreio (comum ao usar dispositivos eletrônicos) ou leitura de orientação (em placas de trânsito e sinalização). Cada forma de leitura traz custos físicos e cognitivos diferentes, como a forma com que os olhos trabalham e a prioridade que o cérebro dá para certos aspectos visuais do texto.
Por isso, geralmente é mais fácil de ler textos com fontes que as pessoas já estão acostumadas em cada contexto. Um fonte serifada numa placa de trânsito pode causar desconforto semelhante ao de uma sem-serifa em toda a mancha de texto de um livro impresso. Não que isso impeça o designer de romper com essas regras; há outros fatores, como espaçamento entrelinhas, que podem compensar o conforto perdido.
Por quê usar “fontes” é capacitismo? (why using fonts is ableism?)
Calma, eu explico, porque essa pergunta não é bem o que ela parece porque existe na geração Z uma concepção errada do que são fontes. Talvez você já tenha visto no Twitter ou até no LinkedIn alguns textos em que, de repente, o estilo das letras muda. Às vezes, elas ficam 𝘢𝘴𝘴𝘪𝘮, 𝕒𝕤𝕤𝕚𝕞, 𝒶𝓈𝓈𝒾𝓂 ou até 𝔞𝔰𝔰𝔦𝔪. Para muita gente da geração Z, isso é usar fontes diferentes; só que, tecnicamente, essas letras ainda fazem parte da mesma fonte. Elas fazem parte dos blocos do Unicode para uso em fórmulas matemáticas, permitindo a pesquisadores usar estilos que representem adequadamente variáveis e unidades específicas.
Só que algumas pessoas comuns passaram a usar isso em palavras, no meio de texto comum. Isso tem dois problemas: o primeiro é que esse bloco do Unicode não prevê letras com diacríticos. Não rola cedilha, til ou acento agudo. O segundo é a forma horrível com que softwares leitores de tela lêem esses caracteres para deficientes visuais. Por isso, pode ser que você veja alguns Z's usando na descrição do perfil algo como “font users dni” ou “dni if you use fonts”. dni significa “do not interact”, um aviso de que tipo de pessoas esses usuários não interagem. Esse comportamento mostra um entendimento errado do que são fontes e alguma empatia com deficientes visuais que dependem de screen readers.
Quando a tipografia foi inventada? (when typography was invented?)
É comum atribuir a invenção da tipografia ao Johannes Gutenberg, em meados de 1450, usando uma prensa de uvas adaptada para imprimir cem cópias da Bíblia de 42 linhas. Só que essa história tem vários “poréns”. Primeiro, que, antes de terminar as cópias da Bíblia, Gutenberg já havia produzido pequenos panfletos eucarísticos para igrejas de Mainz e proximidades. Segundo, que mesmo que ele tivesse produzido apenas as Bíblias, ela não seria o primeiro livro impresso da história — que, até o momento, é o Jikji, impresso na Coréia no séc. XIV. Terceiro que, antes do Jikji, há registros de tipos móveis sendo usados na China no séc. X.
Isso não quer dizer que Gutenberg não tem nenhum mérito; os equipamentos e processos que criou na sua oficina transformaram a escrita numa ferramenta de produção em larga escala. Também ajudaram a sistematizar e padronizar os alfabetos e colocar o mercado literário num novo patamar.
Tipografia é o mesmo que fonte? (is typography the same as font?)
Em português, nós podemos chamar de tipografia: o sistema de impressão com tipos móveis; o lugar onde se pratica esse tipo de impressão; e também as famílias tipográficas usadas na impressão. Chamamos de tipografia o sistema de impressão criado consolidado por Gutenberg. As oficinas onde Johannes e outros milhares de impressores trabalharam compondo com tipos móveis também são tipografias.
Times New Roman, Arial, Georgia, Faustina, Helvetica, por fim, podem ser chamadas de tipografias. Neste caso, a gente usa o termo “tipografia” para delimitar e agrupar fontes com aspectos estéticos e funcionais em comum nas formas das letras. Por exemplo: Verdana, Verdana Italic, Verdana Bold e Verdana Bold Italic são fontes de uma mesma tipografia (ou família tipográfica) denominada Verdana.
Para o bem da verdade, no sistema de tipos móveis, cada gaveta de tipos é uma fonte. Garamond 6pt, Garamond 9pt e Garamond Itálica 6pt são fontes de uma mesma tipografia, encontrada numa tipografia, onde se faz… tipografia (dsclp).
Como a tipografia foi usada para promover a comunicação? (how typography was used to advance communication)
Algumas pessoas argumentam que, talvez, por acaso, quem sabe, quizaz teria sido a prensa de Gutenberg, ao invés da máquina a vapor de Watt, quem desencadeou a revolução industrial. Isso é discutível, já que a própria tipografia teve sua guinada industrial ao migrar do trabalho manual de compositores para máquinas de composição a quente, como Linotipo e Monotipo. Porém, é indiscutível a revolução cultural que a tipografia ajudou a criar. Livros que levavam anos para ficar prontos nas mãos de copistas habilidosos passaram a demorar meses ou até semanas nas oficinas tipográficas, tornando-os produtos populares.
Registrar a história em meio escrito, ao invés da tradição oral, tornou-se muito mais fácil com a tipografia. Com a mecanização, também foi possível termos acesso a produções mais efêmeras e baratas, como folhetins, revistas e jornais, que pulverizavam ainda mais conhecimento entre as pessoas. Proporcionando livros didáticos mais baratos, a tipografia também foi importante para que a alfabetização da população virasse política de estado em vários países. (=
Se você quiser participar e ter sua dúvida de tipografia respondida: manda um e-mail, me escreve lá no sanatório do Kiko do Tesla ou no Instagram. Caso esteja lendo no link do post no Substack, pode escrever um comentário com sua dúvida também. No mais, semana que vem tem mais um TA regular nas inboxes de vocês. (=
Escrito em 101201.73