Interrobang #1 – Pares, legibilidade e mulheres na tipografia
Respondendo perguntas de escritores
Hoje eu inauguro o Interrobang, uma nova linha do Tipo Aquilo voltada a responder dúvidas e perguntas de leitores e pessoas curiosas a respeito de design e tipografia. Mais ou menos como na edição #38, só que um pouco mais sério, com menos perguntas e respostas mais completas.
Para inaugurar essa linha, eu trouxe algumas perguntas feitas por colegas da vizinhança de newsletters, aos quais agradeço profundamente. O Interrobang deve aparecer aqui de tempos em tempos, e se você tiver alguma dúvida ou curiosidade que queira saber mais sobre, manda um e-mail por aqui, uma mensagem no Twitter @carvalhocadu ou no Instagram @tipoaquilonews. (=
Cadu, lembro de produzir um livro e queríamos encontrar fontes produzidas por mulheres e, na época, tinham pouquíssimas. Isso melhorou? (Ana Rüsche, do Anacronista e Incêndio na Escrivaninha)
Antes de tudo: as mulheres sempre estiveram presentes na tipografia fazendo todo tipo de trabalho na indústria, da criação de fontes à composição de tipos e produção de impressos. Feita essa observação, a oferta de fontes feitas por type designers mulheres aumentou bastante na última década, e a presença delas em foundries de todos os tamanhos também cresceu. Iniciativas como o Alphabettes e o The Malee Scholarship vem abrindo espaço para que mais mulheres, trans e não-binários estabeleçam-se na indústria e façam ela ser mais igualitária. Embora o mercado global de design aponte uma presença quase igualitária entre homens e mulheres, o setor tipográfico ainda não vive essa paridade.
Algumas reflexões da Deia Kulpas e da Flavia Zimbardi sobre esse tema são válidos, mas também trazem otimismo. Uma produção tipográfica mais igualitária não depende apenas de mais mulheres fazendo fontes, mas também que elas estejam nos júris de premiações, na liderança executiva de foundries, na formação de novos designers de tipos, e em palestras e conferências. Aos poucos, esses espaços estão sendo preenchidos, a exemplo do DiaTipo, que desde 2018 compromete-se a um line-up de palestrantes pelo menos 50% feminino.
E vejam que interessante: uma pesquisa de 2020 do serviço Rentafont, por exemplo, mostra que apenas 4% do acervo de fontes feitas por mulheres parecem “femininas”, enquanto 80,7% são vistas como “unissex”. Esse tipo de informação ajuda a derrubar o preconceito de que type designers mulheres fazem fontes “femininas”, só que a noção que muitas pessoas ainda têm de gênero em fontes precisa ser quebrada. A ideia de que algumas formas de letras são mais “masculinas” ou mais “femininas” que outras não é nada menos que sexismo mesmo.
Cadu, qual a sua opinião sobre a fonte Atkinson Hyperlegible? Cumpre o que promete sobre ter “grande legibilidade e leiturabilidade para pessoas com visão baixa”? (Rodrigo Pontes, autor de “As Neurofiandeiras do Val”)
Eu vou deixar a resposta um pouco mais abrangente, porque legibilidade e leiturabilidade merecem explicações melhores. Legibilidade envolve questões que independem das formas das letras de uma fonte. Por exemplo, tem pessoas que arrepiam só de pensar em um livro inteiro composto com fonte sem serifa, e provavelmente terão um ritmo de leitura mais devagar por estranhamento e falta de costume. Outra questão sobre legibilidade tem a ver com contexto, pois nós temos ritmos de leitura diferentes de acordo com o contexto em que estamos lendo, como a leitura de rastreio que nós comumente fazemos na Internet, e a leitura linear que fazemos com livros, revistas e jornais.
Mesmo essa leitura linear não é tão linear assim: conforme a pessoa se alfabetiza, ela deixa de ler letra-por-letra, e a leitura passa a funcionar por reconhecimento de formas e padrões de palavras mais comuns. Grosso modo, é como se a gente visse uma mancha com uma forma específica e o cérebro busca qual palavra preenche melhor essa mancha. Por sua vez, a leiturabilidade é um conceito em que nós designers somos treinados a melhorar no aspecto visual, mas ficamos impotentes nos aspectos relacionados ao conteúdo do texto: não há diagramação possível que torne mais agradável de ler um texto mal-escrito e feito para um público diferente.
Dito tudo isso, eu acho complicado uma fonte prometer tanto sobre "oferecer maior legibilidade”. A Atkinson Hyperlegible propõe soluções interessantes que concernem apenas uma parte do problema. São legais as propostas de resolver ambiguidades em letras comuns, embora o uso de alturas iguais de minúsculas com ascendentes e maiúsculas seja uma oportunidade perdida de oferecer uma clareza ainda maior. Não existe uma forma de uma fonte só resolver todos os problemas de legibilidade, tanto de contexto quanto de deficiências visuais ou de transtornos de leitura e aprendizado.
Existe alguma ferramenta de pareamento de fontes, como existia no Google Fonts, em que eu escolho uma fonte principal e ela sugere opções para combinar? (Claudia Dedeski, do Newsletter da Gambiarra)
A que eu acho mais simples de usar com o acervo do Google Fonts é o FontJoy, que cria pares de fontes e permite visualizar a combinação. Tem também o pareador da Monotype, mas o acervo dela é de fontes com licença comercial. Uma tendência, protagonizada pelo próprio FontJoy, é o uso de inteligência artificial e aprendizado de máquina para oferecer combinações de fontes melhores, de acordo com o contexto.
No entanto, além dessas ferramentas, é importante ver o que outros designers produzem e como eles combinam fontes com atributos que parecem difíceis de combinar. Tem outros sites legais que reúnem exemplos usados, como o Typ.io e o meu favorito da vida, o Fonts In Use. O artigo da Bethany Heck sobre o valor de um design com múltiplas tipografias (traduzido em português pelo Valter Costa, da Plau) é muito valioso pra quem quer trazer mais sabor para os seus trabalhos combinando três, quatro ou mais fontes sem que ele vire apenas uma maçaroca.
Faixa bônus: O que é interrobang? Você tá inventando palavra?! (Cadu Carvalho, autor de uns textos aí)
Interrobang (‽) é um glifo criado nos anos 1960 que tinha a intenção de substituir o uso combinado dos sinais de interrogação e exclamação. Por exemplo, você (digo, eu) podia ter escrito “Você tá inventando palavra‽” usando o interrobang para sinalizar perguntas retóricas ou com algum grau de sarcasmo, por exemplo. Ele fez algum sucesso pouco depois de criado, mas já na década seguinte caiu em desuso.
Nota do editor
Primeiramente, meus sinceros agradecimentos à Ana, Rodrigo e Claudia pelas perguntas. Espero que as respostas sejam úteis para vocês, tal como foram um prazer pra mim responder.
Segundo, se você quiser participar e ter sua dúvida de tipografia respondida: manda um e-mail, me escreve lá no sanatório do Kiko do Tesla ou no Instagram. Caso esteja lendo no link do post no Substack, pode escrever um comentário com sua dúvida também. No mais, semana que vem tem mais um TA regular nas inboxes de vocês. (=
Escrito em 100939.7
Eu acho adorável como cada área de estudo/trabalho sob o sol tem uma toca de coelho sem fundo de particularidades. O texto foi super interessante, e super específico de um jeito que eu nem imaginava que era possível, haha. Preciso registrar que a imagem do mapa de famílias de fontes foi profundamente perturbadora, porque algumas letras A do lado direito pra mim parecem R.
Puxa, adorei a resposta caprichada! Sua newsletter é ótima, sempre aprendo algo novo. Muito obrigada