Tipo Aquilo #78 – O tempo que as coisas duram
Uma carta sobre tempo, longevidade e preservação de fontes
Esta edição tem um formato diferente. A comunidade de escritores de newsletters está fazendo a segunda edição do troca-troca de cartas entre escritores, e o Tipo Aquilo desta semana é uma carta para uma das pessoas da comunidade. Mais especificamente, a
, escritora, publicitária e produtora da newsletter. Mas não precisam ficar acanhados, achando que estão lendo conversa dos outros; apesar de ser uma carta, a ideia é pegar um texto escrito pela Bruna e continuar falando de tipografia com base nesse texto. Então, fique à vontade e aproveite esta penúltima edição do ano.—
Olá, Bruna. Tudo bem com você? Espero que 2023 tenha sido um ano gentil contigo, e que 2024 seja generoso para você e seus planos, desejos e amores. Uma coisa legal de ter contato com escritores é ver várias formas de contar sobre sentimentos e acontecimentos, e sentir que vários trechos e até textos inteiros dizem muito sobre minha vida no momento. “Coisa de artista”, digo, num dos raros momentos em que me entendo como uma pessoa criativa. Enfim, é uma questão de momento, de alinhar as coisas certas no tempo certo.
Aliás, o tempo é um assunto que tem consumido meus pensamentos há algum… tempo (rá!). Especialmente, desde quando me mudei para o Canadá e alguns planos não aconteceram do jeito que eu queria, ou no tempo que eu queria. Por isso, me senti contemplado e confortado pelo seu texto sobre o tempo que as coisas levam. Em retribuição, achei uma boa ideia trazer um assunto que eu quero falar no Tipo Aquilo há tempos e, se você não se importar, colocar meus leitores também para pensar no tempo das letras e, mais precisamente, das fontes: quanto tempo dura uma fonte?
Antes de deixar o Brasil, eu ganhei de presente um fac-símile de uma página da famosa Bíblia de 42 linhas, que teve em torno de 150 a 180 exemplares impressos entre 1450 e 1455. É possível adquirir um fac-símile desses no Gutenberg Museum, em Mainz, onde também encontram-se equipamentos e réplicas utilizadas por Gutenberg e outros impressores ao longo dos séculos para compor clichês, imprimir e encadernar publicações. Ainda quero visitar, mesmo sabendo que nada ali foi realmente usado por Gutenberg. Os equipamentos e tipos criados por Johannes e seu assistente Peter Schöffer existem apenas em relatos, que sabemos por outros impressores e pelo litígio em que o agiota banqueiro Johann Fust tomou seus pertences.
É curioso que os equipamentos de Gutenberg não tenham resistido ao tempo. Cita-se comumente o impressor alemão como inventor da tipografia, mas na verdade, os tipos móveis precedem Gutenberg. Há evidências do uso de pequenos blocos de cerâmica, metal e madeira na China desde o séc. X. Temos também tipos móveis coreanos do séc. XIV guardados até hoje; sendo assim, sabemos que é possível preservar tipos móveis por, no mínimo, quase 800 anos. Só que isso tende a ser mais exceção do que regra: o uso regular dos tipos em oficinas de impressão fazia com que as formas das letras se desgastassem, degradando a qualidade dos impressos após alguns anos. É possível visitar algumas oficinas que mantêm viva a tradição da tipografia manual, ver e até montar clichês, enfileirando letras lado a lado formando palavras, frases e sentenças, como os primeiros impressores da Europa faziam há mais de 500 anos. Os tipos podem não ter a mesma nitidez e os detalhes de quando saíram da caixa, mas ainda carregam uma manualidade que enche os olhos de alegria.
Aliás, Bruna, acho legal citar o caso da Doves, antes de passar para outros sistemas de composição tipográfica. Emery Walker encomendou, em 1900, tipos para sua gráfica tão fiéis quanto possível aos tipos de 1492 de Nicolas Jenson, e usou estes tipos entre 1900 e 1917 com seu sócio Thomas Cobden-Sanderson. Por divergências internas e dificuldades financeiras, Walker preferiu jogar sua fonte no fundo do rio a entregá-las para seu sócio, restando apenas os impressos reverenciados por anos entre artistas gráficos. Contudo, em 2014, os tipos da Doves Press foram resgatados do fundo do Tâmisa; é impossível utilizá-los para imprimir novamente, mas se por 100 anos os tipos pareciam perdidos para sempre, hoje é possível estudá-los e compará-los às fontes digitais baseadas em seus impressos.
Falar de tempo e de quanto dura uma fonte torna-se mais complexo quando falamos dos sistemas de composição a quente, como o Monotipo e o Linotipo, usados ostensivamente até os anos 1970. Ao invés de montar blocos de letras, essas máquinas carregavam suas próprias matrizes e, usando-as como molde para as letras, fundiam metal e criavam linhas inteiras em segundos. Essas linhas, empilhadas e presas umas às outras, formavam os clichês usados para imprimir jornais e revistas e, depois, voltavam ao estado de metal fundido para virarem novas linhas, reiniciando o ciclo. Com a rapidez que esses periódicos exigiam, era questão de dias ou horas para que a forma sólida das letras na impressão já não existisse mais, adquirido novas configurações com o tempo. Nada se perde, tudo se transforma.
De todos os sistemas de composição tipográfica, o tempo talvez tenha sido mais irônico com a fotocomposição, usada dos anos 1950 a 1980. Era um sistema complexo que, resumidamente, projetava letras com luz em um anteparo, como um filme fotográfico. Isso dava flexibilidade para usar letras em diferentes dimensões, ao invés de tamanhos fixos como na impressão com metal, e dezenas de matrizes das máquinas de fotocomposição encontram-se preservadas até hoje. A gente ouve falar pouco desse sistema porque ele não resistiu ao tempo dos computadores e sistemas digitais, que mostraram-se mais capazes e poderosos para criar impressos e publicações. De forma geral, foi o sistema de composição que por menos tempo vingou na indústria. Máquinas e matrizes de fotoletras, hoje, são coisa de museu.
Quando falamos do tempo dos computadores, Bruna, uma grande preocupação que temos é relativa a como preservamos informações. Não sei se você teve problemas com backup de algo importante, como todo mundo já teve nos momentos mais cruciais. No entanto, imagine o desafio de manter preservado e acessível, por exemplo, um jogo distribuído digitalmente para um video-game que não é fabricado há uma década. Difícil, não? Na tipografia digital, temos formatos como o PostScript, que não tem mais suporte oficial e, fora de um ambiente de emulação de sistemas antigos ou de scripts de conversão para formatos atuais, não tem mais uso. É factível que, em aproximadamente 50 anos de tipografia digital, já tenhamos fontes perdidas para sempre em arquivos irreconhecíveis de sistemas legados.
Só que a tipografia digital, Bruna, abriu caminho para que mais type designers em todo o mundo crie fontes baseadas em impressos e tipos antigos. Eu sou um exemplo, com o meu trabalho de recriação da Grotesca Reforma da antiga fundadora brasileira Funtimod. Aliás, o resgate tipográfico é uma prática de type designers amadores e profissionais para aprender o bê-a-bá do design de tipos e preservar, no mínimo, o espírito das letras usadas há dezenas ou centenas de anos. Existem aplicativos de criação de fontes dos mais simples aos mais completos, para diferentes estágios de aprendizagem; assim como também existem dezenas de fontes e letterings antigos, melhor ou pior documentados, que estão apenas à espera de algum designer interessado em reproduzir suas formas de letras.
Falando de fontes apenas em termos de desenhos de letras, tenho certeza que convivemos com algumas tipografias que durarão para sempre. A Helvetica, por exemplo, foi criada para o sistema de tipos móveis de metal, foi convertida para fotocomposição e ganhou várias versões de formatos digitais (incluindo algumas que nem se chamam Helvetica, mas deixemos esse papo de licenciamento para outra oportunidade). Falando de um ícone do design, podemos dizer que a Helvetica e outras famílias tipográficas consagradas viverão tanto quanto os alfabetos que usamos atualmente, não importa quais meios e formatos estejam reservados ao futuro.
Tendo tudo isso escrito e chegando ao fim, é complicado responder quanto tempo dura uma fonte. Podemos até abrir outras questões, mas a que mais me intriga é: quanto tempo leva para uma tipografia poder durar pra sempre?
Quanto tempo leva para qualquer coisa durar pra sempre, aliás? E quanto tempo leva para que as coisas se percam pra sempre?
Responder com algum grau de certeza leva tempo. Anos de estudo, prática. Décadas vendo o espírito do tempo mudar de roupa, de cara, de ideologia, de sexo. Meses para criar uma tese. Dias para tudo ruir. Horas em que a gente precisa parar de pensar no tempo e em outras coisas, até que possamos seguir em frente.
De novo. Como sempre.
Que bons tempos estejam à frente te esperando, Bruna. Feliz Natal, e um belo 2024 para você.
Um grande abraço,
Cadu
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Recomendações
🎧 Podcast: Tipo Entreletras #20, em que eu conversei com Diego Maldonado sobre resgate tipográfico e outros assuntos nerds de tipografia.
🎥 Vídeo: Farewell Etaoin Shrdlu, (em inglês) um documentário sobre o último dia das máquinas Linotype na gráfica do jornal The New York Times.
🔗 Link: Movable Metal Type: Great Invention of Korea, (em inglês) uma produção interativa do Google Arts & Culture sobre a história e produção de tipos móveis na Coreia.
🇧🇷 Fonte brazuca: Hanae, de Flavia Zimbardi e Ayaka B. Ito.
Escrito em 100891.50
Querido Cadu! Agradeço por este presente de Natal, um texto com um tanto de você e do seu trabalho, para que eu pudesse degustar!
Já fiz curso de encadernação e percorri, na ocasião, um pouco dessa história toda da tipologia... Ainda assim, seu texto trouxe muito ineditismo para mim, uma amadora dos processos artesanais.
Penso no tempo que já não teríamos para usar qualquer um destes antigos mecanismos de impressão. E no tempo que talvez devêssemos dedicar para estas atividades que conseguem nos trazer de volta ao presente, o único tempo que existe de fato.
Boas festas para você e que 2024 venha cheio de sucessos e realizações!
Beijos