Vamos falar de fontes #5 – Found Fount e Lacre
Letras feitas de coisas, e coisas feitas de letras
Tempo de leitura: 6 minutos
Found Fount, de Paul Elliman
Eu gosto de exaltar os anos 1990 como um período fértil para experimentação tipográfica. Com um computador na mão e o Fontographer instalado, designers gráficos começaram uma onda de criar fontes digitais rompendo, uma a uma, com as premissas erguidas em 500 anos de tipografia. Foi-se embora a necessidade de fazer letras desenhadas com algum instrumento tradicional de escrita, letras que respeitavam contrastes, letras que tinham qualquer preocupação com legibilidade e, no fim das contas, letras feitas com algum desenho inicial.

O designer britânico Paul Elliman surge nesse contexto com seu projeto Found Fount, criando um sistema de escrita baseado em objetos do cotidiano, sob a proposta de que “a escrita dá a impressão de coisas” e que, de forma recíproca, “as coisas podem dar impressão de escrita”. O argumento parece complicado, mas pense, por exemplo, no T que você usa em casa para fazer gambiarra encaixar mais de uma tomada no mesmo ponto de energia. Alguns vão conhecer como benjamim, mas referir-se a ele como T é um caminho de ida e volta entre a impressão das coisas e a impressão da escrita. Ou a chave L, que tem esse nome tanto pelo formato de L quanto pela “tradução” do nome original, chave Allen. Ou ainda aquele trecho sinuoso do circuito de Interlagos que a gente chama de “S do Senna”.
Elliman começou o projeto Found Fount em 1989 utilizando algumas regras básicas: nenhum símbolo poderia ser usado mais de uma vez, e os objetos usados para representar letras deveriam ser pequenos o suficiente para caber na boca ou ser passado de mão em mão. Dessa forma, o designer deu início a um processo demorado de coleta e catalogação de vários objetos do cotidiano que pudessem formar alguns alfabetos inteiros, como chaves, anéis de lata (calma, nós já vamos falar disso), alfinetes, clipes, fichas, presilhas, moedas, zíperes, e mais uma miríade de pequenezas.

Para certos objetos, as correspondências entre suas formas e as formas de certas letras são óbvias; outros exigem um pouco mais de abstração e esforço do leitor para serem entendidas. Esse efeito de pareidolia, quando o cérebro reconhece um signo específico no meio de um padrão visual ambíguo ou aleatório (obrigado, Fabricia), faz parte do jogo da comunicação, dá luz ao caminho que os símbolos fizeram ao longo da história para chegar aos dias de hoje, e novos rumos que eles percorrerão quando outros designers verem novas formas de desenhar as mesmas letras de sempre. “Ah, mas não é legível”, e nunca teve a ver com legibilidade. É normal que você precise decodificar certas letras a partir do contexto formado por letras vizinhas, e… bem… é arte. Não toque.
Uma versão digital chamada “Bits”, baseada na fotografia dos objetos coletados e a vetorização de suas formas, foi utilizada na edição 15 da revista Fuse, criada e editada por Neville Brody. Elliman seguiu pelo caminho da tipografia como intervenção artística, expandindo os “caracteres” da Fount Found e projetando exposições que entendem o alfabetismo como algo natural do ser humano, como se, de alguma forma, fôssemos projetados pela evolução para ler e escrever. Já a Fount Found tem seu lugar marcado na história como a primeira fonte feita a partir de formas de objetos.
Lacre, de Amanda Yeux
Corta a cena para maio de 2024, e o Twitter (nome certo daquela baderna lá) é surpreendido com a @ansuzyeux — alcunha da designer de moda e criadora de conteúdo Amanda Yeux — escrevendo “minha primeira fonte 🥹”. Em pouco tempo, muita gente com muitas opiniões, algumas muito boas e outras tiradas de você-sabe-onde, sobre uma imagem usando letras feitas a partir de anéis de lata. Sim, aquelas latas de alumínio de refrigerante, cerveja, tônica e outras bebidas de gosto duvidoso. Muitas opiniões e dizeres formaram a thread sobre tipografia mais interessante daquele mês.

Pra falar da fonte da Amanda, eu preciso recorrer novamente à onda de tipografia experimental da década de 1990. Isso não foi apenas um fenômeno gringo, aconteceu muito aqui no Brasil, e existe um livro editado pela ADG e a Rosari dedicado às fontes digitais feitas por designers brazucas entre 1989 e 2001, que eu já citei por aqui antes. A Lacre pertence a um mundo muito diferente, em que o design tem uma retórica menos esperançosa sobre o futuro, cética sobre a tecnologia, mais ácida e sarcástica com o mundo podendo acabar todo dia de formas diferentes — numa delas, soterrado pelo lixo gerado no consumismo do dia-a-dia. Mesmo assim, ela compartilha do mesmo sentimento do experimentalismo e da brasilidade dessa década.
As formas heterodoxas e modulares das letras dão liberdade para várias formas de uso que, com uma fonte “canônica” por assim dizer, não seriam tão legais, criando texturas baseadas na repetição de formas semelhantes e espaçamentos similares. Obviamente, teve uma dúzia de sonsos dizendo “ah, mas não é legível”; repetir frases numa edição do TA não é do meu feitio, mas… mais uma vez, nunca teve a ver com legibilidade. É sobre o desafio (incentivado e requerido em várias graduações de design e pós-graduações de tipografia) de criar alfabetos a partir de inspirações incomuns e aprender tipografia na vera fazendo essas coisas incomuns virarem letras funcionais.

Várias das fontes feitas na década de 1990 não passam no teste de legibilidade do sonsinho médio de 2024, embora a intenção delas também nunca fosse essa. Se você tiver a oportunidade de folhear esse livro (recomendo, inclusive, apesar de ser meio chato de achar), verá alguns nomes que até hoje são recorrentes na comunidade tipográfica brasileira. Há também nomes de outros que tomaram rumos diferentes, mas naquela época, quiseram experimentar e provavelmente têm hoje uma relação mais afável com a tipografia por essa experiência.
Na thread da Amanda, também teve muita gente dando parabéns, incentivando e apontando pequenos detalhes que podiam ser melhorados — o que motivou ela a corrigir pequenas falhas e lançar a Lacre em versão digital. Não sei se a Amanda vai querer fazer novas fontes (se você estiver lendo, manda mais que tá pouco, e desculpa se eu falei alguma besteira), mas espero que apareça mais gente como ela, disposta a aprender pela criação, experimento, tentativa, erro e alguns narizes torcidos por aí.
Onde adquirir
Lacre, Amanda Yeux, no Twitter dela.
Escrito em 101540.186
olá! tive o prazer de ler essa matéria agora, agradeço muito pela visibilidade por utilizar uma das peças que montei! tipografia é experimentar e ser feliz!!! a leitura foi muito enriquecedora, vou me inscrever agora! =)
que sensacional tudo isso!