Tipo Aquilo #98 – Blackletter no cinema
Subversão e reinvenção nas letras de pôsteres de filmes
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Vender um filme pelo pôster é, talvez, um dos ofícios mais ingratos da produção audiovisual. Poucas são as vezes em que um filme é tão lembrado pelo seu pôster quanto pelos atores, roteiro, personagens ou a própria fotografia. Ainda assim, existem pôsteres icônicos, frutos de uma época com mais liberdade e ousadia para representar, numa imagem estática, os sentimentos e experiências de duas horas de filme. A tipografia tem um papel importante no pôster, ajudando o leitor a entender o tom do filme, e até a sua quase completa ausência reforça o tom que o cineasta imprime no filme. Dos mais minimalistas, como o de Tubarão, Poltergeist, Alien ou Os Caça-Fantasmas, aos mais detalhados, como os do Indiana Jones, E o Vento Levou, Blade Runner… e até os que sobrevivem ao uso indiscriminado da Trajan na indústria sem virar galhofa, como Titanic e O Senhor das Armas.
A edição de hoje vem, contudo, para falar do uso pontual e brilhante de um dos estilos de letra que mais carregam estigmas de todo tipo. As letras blackletter já estiveram por aqui no âmbito do heavy metal, onde fizeram sucesso como uma mensagem de subversão e reforço do tom de contra-cultura que várias bandas do gênero carregam em seu som e suas letras. No cinema, por diversos motivos que incluem um forte estigma do passado e a necessidade de um filme de ser comercialmente bem sucedido, é difícil vermos as letras blackletter em pôsteres e na própria arte do filme. Ela é conveniente em certas cenografias, mas dificilmente vemos elas destacarem-se nos pôsteres. Hoje, vamos falar de alguns casos recentes, e de como o blackletter é impecável em sua função de comunicar o tom do filme.
Fiquem tranquilos, que não há spoilers dos filmes citados nesta edição. ;)


As letras blackletter têm um peso histórico acentuado. É difícil vê-las e não transportar o contexto de tudo ao seu redor para séculos passados, na Idade Média, quando elas floresceram e eram tidas como caligrafia padrão para documentos e livros. Por isso, não é comum imaginá-las em pôsteres de filmes ambientados nos dias atuais, como são os casos de Saltburn (2023) e Lady Bird (2017). Contudo, elas não estão lá por acaso; por mais que não falem de época, elas falam de algum clichê que elas carregam e que, em cada filme, se sobressaem. Em Lady Bird, as letras presentes no pôster baseiam-se na textura quadrata, o primeiro estilo de blackletter a ser cunhada na história — e, curiosamente, o estilo dos primeiros tipos móveis, abertos por Gutenberg para a produção da primeira Bíblia impressa. Isso dialoga com o enredo do filme, sobre uma adolescente criada numa comunidade católica e conservadora querendo independência para criar seu próprio destino, o que torna o uso da blackletter tão dissonante quanto interessante.
A textura quadrata foi usada por toda a baixa Idade Média, a partir do séc. XII, e delas desdobraram-se todos os demais sub-estilos de blackletter. Como, por exemplo, a blackletter bâtarde, usada na França, Países Baixos e Alemanha entre os séculos XIV e XV, mas geralmente tida na caligrafia como uma blackletter com sabor francês. Ela acabou chegando à tipografia por meio do impressor francês Robert Granjon, que tinha a ambição de fazer da mão bastarda um estilo nacional tão influente quanto o itálico de Francesco Griffo e Aldus Manutius. Em Saltburn, por exemplo, as letras blackletter bâtarde, cheias de pontas e curvas que aparecem muito tímidas na textura quadrata, ajudam a transmitir o ar de aristocracia e sofisticação que envolvem a trama do rapaz de origem humilde querendo ascender na vida e sendo “acolhido” por uma família que acumula capital cultural de nobreza. (momento consegui citar a trend de TikTok da semana)


As letras blackletter também brincam com a experiência do espectador em filmes como What We Do In the Shadows (2014) e Only Lovers Left Alive (2013), causando uma dissonância necessária para entender o tom de ambos os filmes. Embora estes dois também sejam ambientados nos dias atuais, ao contrário de Saltburn e Lady Bird, eles entregam na trama elementos sobrenaturais de contos de terror que espalharam-se pelo folclore europeu e, hoje, fazem parte de um imaginário de contracultura. Ambos trazem a figura do vampiro tentando conviver ao longo de séculos com os mortais. Contudo, ao invés de serem retratados como inimigos e eternos rivais dos seres humanos, as tramas desses filmes fazem deles também seres humanos, tirando um pouco do peso de existências tão longevas.
Em What We Do In the Shadows, isso fica mais evidente, com os vampiros fazendo parte de um mockumentary sobre suas vidas cotidianas, bem diferente do que qualquer pessoa imaginaria. Essa quebra de tom é acentuada pela tipografia do pôster, que utiliza letras blackletters fraktur modernizadas. O estilo original era comum na Alemanha a partir do séc. XV e, em relação à textura, suas letras trazem minúsculas mais altas, pontudas e estreitas, como uma resposta às letras humanistas mais abertas e claras usadas na Itália, aprofundando a cor de suas manchas escuras de texto — o que, para o filme, ajuda a ilustrar o quanto a vida dos vampiros é secreta e afastada dos humanos, mesmo que em tom de galhofa. Já no romance Only Lovers Left Alive, o pôster carrega letras que surgiram com a redescoberta da caligrafia alemã pelo exímio calígrafo alemão Rudolf Koch no final dos anos 1920. Em anos de pesquisa, ensino e prática, ele resgatou diversos modelos caligráficos em desuso na Alemanha após a expansão da tipografia, e introduziu outros modelos com construções mais simples, no intuito de trazer de volta seu uso corriqueiro. A Schwabacher de Koch, por exemplo, é mais simples, geométrica, com poucos traços curvos, que ajuda o pôster a transmitir o peso de seres tão longevos quanto os vampiros existirem nos dias de hoje.
Mesmo quando as letras blackletter parecem ser escolhas óbvias, ainda há espaço para reinvenção e alguma subversão delas. O remake moderno de Nosferatu (2024) e o novo Dracula: a Love Tale (2025), também baseado no livro de Bram Stoker, são frutos do folclore europeu convertidos em contracultura com o passar dos tempos. Agora sim, temos filmes ambientados no passado em que costumamos imaginar as histórias de vampiros e monstros, embora o passado das blackletters seja ainda mais longínquo. Contudo, as igrejas cristãs tornaram esse tipo de histórias tornou-as mais íntimas das blackletters, mesmo que o contexto fosse de uma perseguição ferrenha. É possível traçar características das blackletters até no Bram Stoker’s Dracula (1992), com as letras ensanguentadas apresentando contraformas pequenas e estreitas, e a presença de um grande contraste entre traços finos e grossos; contudo, elas dizem mais respeito a uma releitura moderna dessas letras, especialmente as fraktur.
Em Nosferatu, o clima pesado e sombrio do filme é acentuado pela construção irregular das letras do pôster; não existe um modelo caligráfico que apresente minúsculas tão altas e com uma construção tão irregular. Segundo o diretor Robert Eggers, as letras foram desenhadas pelo designer Teddy Blanks, de forma que elas reforçassem o tom de estranheza e pavor. Em especial, a letra “s” traz uma espinha quebrada, ao invés de um traço inteiro; o ombro do “f” em forma de foice ajuda a acentuar essa estranheza. Já o vindouro Dracula traz um lettering familiar, baseada na Gandur New, desenhada por Daniel Sabino e distribuída pela Blackletra. Por sua vez, a Gandur toma uma abordagem geométrica acerca das simplificações da blackletter dos anos 1930 voltadas para uso com tipos móveis, baseadas na textura quadrata e textura precisus, contemporânea da primeira, mas com hastes em terminações alinhadas à linha de base, em vez das comuns “terminações de diamante”.
Pode parecer curioso, mas provavelmente estamos falando de um momento de redescoberta do uso do blackletter no cinema, em que a presença de letras imponentes e cheias de contraste não carrega mais a conotação de propaganda política do nazismo. O pôster de “O Triunfo da Vontade”, de Leni Riefenstahl, foi marcante o suficiente para que nem mesmo filmes B de horror ousassem usa-las por várias décadas. O mais próximo que vimos de letras blackletter sendo usadas no cinema foi em Jurassic Park (1993), mas no contexto mais errado possível. Os letreiros do parque utilizavam o estilo Neuland, criado também por Rudolf Koch no começo do séc. XX e ignorado pelos designers norte-americanos num primeiro momento. Anos mais tarde, ele foi associado ao primitivismo e a culturas teoricamente pouco desenvolvidas, fazendo com que um estilo de escrita genuinamente alemão virasse, por nada menos que racismo, uma “letra primitiva africana”. (momento consegui citar outra trend de TikTok da semana)
Embora o estigma nazista (ao menos nos pôsteres de filmes) tenha passado, ainda é difícil emplacar blackletter no cinema. Mesmo quando o tom do filme pede esse estilo quase como uma escolha óbvia, torna-se importante o trabalho da direção de arte em subverter essas letras, fugindo dos modelos históricos prontos e partindo para soluções com mais frescor ante o público. Ainda assim, falamos de apenas seis num universo de milhares de filmes feitos nos últimos quinze anos. Curiosamente, os que já foram lançados ganharam um público cativo, que não se importa tanto com o circuito de blockbusters, mas que sabe reconhecer o esforço presente em pelo menos um dos principais elementos de um filme; seja pelos atores cativantes, os enredos inusitados, ou o “respeito” aos clássicos do cinema. Agora, cabe a Luc Besson fazer com que seu novo Dracula atinja esse patamar… destaque tipográfico na direção de arte, ele já tem.
Recomendações:
🎥 Vídeo: Dusting off the blackletter types, (em inglês) uma palestra promovida pelo The Cooper Union com o professor e designer Dan Reynolds comentando sobre a história das fontes blackletter na tipografia.
🔗 Link: Hi-Res Textless Movie Posters Index. Não sei se vocês esperavam ver isso por aqui, mas ainda assim, acho interessante a ideia de estudar e ver pôsteres clássicos do cinema, só que… sem tipografia. Apenas fotografia e ilustrações, em alta definição.
🇧🇷 Fonte brazuca: Gandur New, de Daniel Sabino.
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Escrito por um ser humano em 102495.171
Eita que esse texto tá muito legal! Vou mandar pro marido cinéfilo :))
Muito bom o texto, adorei essas informações e acho interessante que esse tipo de tipografia vem sendo mais comum em um momento onde a estética e subcultura gótica vem ganhando mais destaque nas redes, principalmente com os filmes de terror.