Muitos adultos, hoje em dia, identificam-se como fanáticos por papelaria. Nem todo mundo teve a chance de, quando crianças, terem a tesoura sem ponta do Mickey (“eu tenho, você não tem!”), aqueles estojos multifunção que tinham até apontador e lupa, maletinhas de canetas multicoloridas, e por aí vai. Digamos que minha simpatia por papelarias surgiu quando eu já era adulto, e a maior parte dela é direcionada a réguas, esquadros, compassos e outros instrumentos de fé da sagrada geometria. Ok, eu ainda paro um segundo pra ver as mil cores de Stabilo's, mas meu negócio é com exatidão, números, ângulos e relações matemáticas que deixariam orgulhoso um árabe do séc. X. Isso fez de mim um bom aluno quando a geometria Euclidiana dava suporte ao conteúdo de trigonometria… aquele negócio de estudar triângulos, somar ângulos internos e fazer inteirar 180°, e daí escalar para problemas mais sofisticados.
O nome da geometria Euclidiana vem do filósofo grego Euclides de Alexandria, “pai da geometria”, que acredita-se ter vivido em 300 a.C. Dela, derivam os primeiros estudos das formas geométricas e relações entre retas e círculos. Com o tempo, os postulados de Euclides foram base para a criação de uma das ferramentas mais usadas nas artes, arquitetura, engenharia e matemática: o pantógrafo. Talvez você já tenha ouvido falar dele, mas não o suficiente para entender o quanto ele foi usado na indústria. E sim, você certamente já viu centenas de usos diretos e indiretos do pantógrafo no seu dia-a-dia, e o Tipo Aquilo de hoje pode provar. ;)


O nome “pantógrafo”, a princípio, não quer dizer muita coisa. O funcionamento dele, no entanto, é simples o suficiente para que o Manual do Mundo te ensine a fazer um ampliador de desenhos pantógrafo caseiro. Em resumo, um pantógrafo é um dispositivo que utiliza uma relação de ângulos e segmentos de reta para ampliar ou reduzir — sim, também reduzir — uma forma inicial, mudando apenas sua escala, sem deformar o desenho. Herão de Alexandria, engenheiro grego que viveu entre os anos 10 e 82, descreveu em seu livro Mechanica (do qual, restam atualmente apenas traduções para o árabe) diversos modelos de equipamentos para levantar grandes pesos, fórmulas para o cálculo de áreas de poliedros, cálculo de centro de gravidade de grandes massas, entre outros princípios matemáticos que julgava úteis para arquitetos. Entre os mecanismos descritos por Herão, estava o do pantógrafo.
O pantógrafo voltou a aparecer na história por meio do jesuíta bávaro Christoph Scheiner, que utilizou seu princípio para (re)criar em 1603 um aparato capaz de reproduzir desenhos em escalas maiores. No séc. XVIII, refinamentos mecânicos permitiram a construção de pantógrafos mais robustos, que não apenas traçavam linhas em escala, mas também desgastavam metal com brocas pontiagudas. Isso tornou o pantógrafo ideal para reproduzir maquetes e construções em escala, e reproduzir gravuras em escala. Até os dias atuais, os desenhos de quase todas as moedas do mundo têm seus moldes originais criados por meio de um pantógrafo mecânico reproduzindo artes com relevo em escalas menores. O polígrafo, criado em 1803, foi um instrumento que, usando o mesmo princípio do pantógrafo, reproduzia instantaneamente a escrita de uma pessoa em uma ou mais cópias.


“Legal, Cadu, entendo sua nerdice, mas onde tipografia entra nisso?” Ah, bom que você mentalmente perguntou, caro leitor. Aqui no Tipo Aquilo, já falamos algumas vezes de nomes clássicos da tipografia, como Nicolas Jenson, Claude Garamont, William Caslon, entre outros, que precisavam gravar suas letras em tamanhos de corpo de texto diferentes, para uso em mancha de texto, títulos e outros usos. Por muito tempo, essa reprodução em diferentes tamanhos era feita manualmente, contando com a habilidade e precisão dos gravadores. No meio do séc. XIX, pantógrafos com brocas fresadeiras1 já ajudavam a reproduzir facilmente tipos de madeira, já que o tamanho dos tipos e a pouca dureza da madeira tornavam o processo mais simples. Nos tipos de metal, demorou até o final do mesmo século para que surgissem pantógrafos precisos e com brocas duras o suficiente para gravar metal a partir da letra desenhada em papel. As primeiras matrizes feitas nos Estados Unidos com esse método foram gravadas em 1882, na Central Type Foundry em St. Louis. Até o auge da fotocomposição na década de 1970, o pantógrafo de fresadeira era o principal método usado para reproduzir formas de letras em tamanhos diferentes.
Isso trouxe uma grande mudança na forma de projetar e desenvolver fontes. De forma geral, um type designer passou a desenhar as formas desejadas de letras em papel em qualquer escala e, depois, reproduzir no pantógrafo essas formas em escala menor num material duro como o metal. Como resultado, obtiam-se matrizes com altíssima fidelidade às formas originais, que eram usadas para fundir tipos móveis. Criar um novo conjunto de matrizes com tamanho diferente dependia apenas de um ajuste simples na máquina; definida a nova escala, o operador apenas repetia o procedimento para criar uma nova leva de tipos móveis. A gente ouve falar pouco do quanto isso foi importante porque ela aconteceu quase simultaneamente à expansão dos sistemas de linotipo e monotipo, que revolucionaram a impressão de jornais, revistas e livros. Contudo, o uso do pantógrafo para criar matrizes de tamanhos diferentes também foi importante para esses dois sistemas.

Esse método de “fresar” uma superfície não serviu apenas à tipografia tradicional, de tipos móveis. Em 1902, os catálogos de produtos da George Gorton Machine Co. traziam, em suas páginas, o que o pesquisador Marcin Wichary definiu como as letras mais pau-pra-toda-obra em Manhattan — uma tradução mais livre do que devia, talvez, de minha parte. Eu diria que… não apenas em Manhattan; você já deve tê-las visto, vez ou outra, em alguma plaquinha antiga de acrílico, ou mini-crachá de metal gravado. Essas letras vinham de moldes em relevo que as máquinas gravadoras de George Gorton usavam para “escrever” em todo tipo de superfície dura, como plástico e metal, desgastando o material de acordo com a forma inscrita nos moldes e, usando o princípio do pantógrafo, permitindo ampliar ou reduzir a escala das letras. Isso permitia criar objetos cujas inscrições não se perderiam com o tempo por desgaste de alguma tinta, mas sim estariam eternamente marcadas no material.
Pouquíssimas foram as vezes que os desenhos das letras feitas por Gorton sofreram alguma alteração. Elas tornaram-se, de certa forma, uma espécie de “letra-padrão” da engenharia e arquitetura: suas formas poderiam ser vistas tanto inscritas em produtos e ambientes quanto em suas plantas e projeções esquemáticas. Projetistas usavam réguas especiais, chamadas de normógrafos, que tinham as letras de Gorton em relevo; usando uma espécie de mini-pantógrafo, eles conseguiam reproduzir essas letras com agilidade e padronização. Usando técnicas de impressão como a serigrafia, um desenhista técnico conseguia criar rapidamente um desenho com régua e normógrafo numa folha transparente, sensibilizar uma tela, e usar essa tela para imprimir em qualquer superfície, como metal, plástico, papel, tecido, placas de circuito integrado etc. Pra quem ainda usa softwares como o AutoCAD, embora versões mais atuais suportem texto com fontes comuns, em suas primeiras versões, ele era apenas capaz de “plotar” letras vetoriais2 conhecidas como Hershey fonts, que tinham origem nas letras criadas por Gorton algumas décadas antes.


Pensemos por um segundo que, quando falamos das letras criadas por George Gorton, estamos falando de uma das “fontes” sem serifa mais usadas de todos os tempos, e mais longeva que a maioria das sans-serifs cultuadas na tipografia clássica, como a Helvetica, a Univers e a Frankin Gothic, sendo apenas alguns anos mais nova que a Akzidenz Grotesk. As aspas, contudo, são necessárias ao falar das letras Gorton em comparação com as demais fontes, em que os contornos são cuidadosamente desenhados para preencher uma forma de letra. O sistema de letras de Gorton tem como princípio criar letras a partir de traços feitos pelo movimento da broca ou, mais tarde, pela caneta guiada em normógrafo. Pela lógica, isso gera letras com espessuras rigorosamente iguais em todos os traços, algo que todo futuro type designer aprende na primeira aula de tipografia a não fazer, para que os traços horizontais não pareçam mais espessos que os verticais. Você pode reparar que, até em fontes geométricas como a Futura e a Avant Garde, existe uma diferença de espessuras.
Não existe no sistema de gravação de letras de Gorton ou de seus concorrentes, contudo, algo que compense essa diferença de espessura. Possivelmente você não teria reparado nisso se eu não dissesse, já que a gente não olha para essas letras da mesma forma e com a mesma frequência que lemos um texto corrido. Quando vemos as letras de Gorton em uso, elas estão num contexto de rastreamento ou de leitura rápida, que demanda pouco apuro, e a rigidez dos traços das letras não impõe um custo cognitivo tão alto. Só que, por um tempo, você vai reparar quando ver; e não pense que será tão difícil assim, já que ainda é possível encontrar essas máquinas em uso até hoje em gráficas pequenas e algumas fábricas. Elas são um caso raro de letras que ainda vêem a luz do dia em novas impressões e reproduções, mas já têm um certo sabor nostálgico. Para o bem da verdade, a empresa de Gorton não fez apenas letras simples sem serifa; ele também criou moldes para letras com outros desenhos, mas que não se tornaram tão populares.

Os sistemas computadorizados de impressão e gravação tendem, com o passar dos anos, a tirar esses equipamentos do dia-a-dia e condená-los a museus, almoxarifados e pequenos conservatórios de sistemas tipográficos clássicos. Contudo, digamos que, cada vez que você aperta shift ao redimensionar uniformemente um objeto no Illustrator, Photoshop ou InDesign, uma nova florzinha nasce nos Elísios. Tanto por você não precisar mais de um pantógrafo pra isso, quanto pela herança deixada por Euclides e Herão de Alexandria. Mesmo com milênios de uso, a geometria clássica, nascida no ventre mesopotâmico do Tigre e Eufrates e refinada no mediterrâneo por Aristóteles, Táles, Pitágoras e outros gênios, ainda brinda a humanidade com soluções simples e elegantes para problemas complexos.
Recomendações
🎥 Vídeo: Making Faces: Metal Type in the 21st Century, (em inglês) um documentário que mostra o processo de criação de tipos de metal baseado em fontes digitais, feito pelo tipógrafo canadense Jim Rimmer.
🔗 Link: The hardest working font in Manhattan, um extenso artigo do pesquisador Marcin Wichary sobre as origens e usos das fontes criadas por George Gorton.
🇧🇷 Fonte brazuca: Pitanga, de Sofia Mohr.
Escrito em 102210.616
Brocas fresadeiras são feitas para desgastar uma superfície com cortes laterais, “esculpindo” a superfície de um material qualquer; ao contrário de brocas comuns de furadeira e torno mecânico, feitas para desgastar de frente uma superfície qualquer.
Embora toda fonte seja um conjunto de desenhos vetoriais de letras, as Hershey fonts distinguem-se por serem criadas a partir de traços coordenados; em fontes comuns, os vetores funcionam como contornos de formas fechadas.
não conhecia essa evolução do antigo até os tipo atuais, legal