Tipo Aquilo #80 – Uma ode ao Microsoft Word
A influência do processador de texto na escrita, linguagem e tipografia
Tempo de leitura: 6 minutos
Há um rumor espalhando-se pelas redes sociais que tem cara de piada, mas eu consigo enxergar um palmo de verdade: jovens adultos estariam chegando ao mercado de trabalho sem saber usar um computador. Por mais ridículo que isso pareça, pense comigo por um segundo… os millenials tinham o computador como instrumento para uma dezena de coisas que não eram necessariamente trabalho (conversar, ouvir música, assistir vídeos, jogar); smartphones e tablets eram só props de madeira pintada na mão de algum figurante de Star Trek, e saber usar o Windows era efeito colateral de tentar ser feliz com uma caixa branca encardida fazendo barulhos estranhos. Faz sentido existir uma geração mais nova que depende muito menos de desktops e notebooks e, por isso, esses dispositivos sejam apenas aquelas coisas que os pais preferem porque são velhos. Alguns, em casos mais extremos da gen-z, são até mais habitués do Canva do que do… Word.
Algo que eles talvez não façam ideia é de que escrever e compôr textos no Word era, antes da Internet, o grande motivo por que pessoas compravam computadores. Imprimir documentos e trabalhos acadêmicos, ou poder entregar em disquete, rapidamente deixou de ser luxo e tornou-se primeira necessidade no trabalho, em escolas e faculdades. Só que, mesmo em casos onde editores mais simples como o WordPad davam conta, o Word era preferido por oferecer uma suíte completa de composição textual, e é possível dizer que todo mundo tem uma história (talvez não muito feliz) com ele. O Tipo Aquilo de hoje presta uma pequena homenagem aos 40 anos do Microsoft Word, abordando as pequenas grandes mudanças que ele trouxe para o mundo.
Com meus 37 anos, eu faço parte de uma das últimas gerações que aprendeu a digitar numa máquina de escrever. Comparando com os teclados low profile que temos atualmente, digitar numa Olivetti Lettera era o equivalente a afundar, cem vezes por minuto, o seu dedo numa armadilha de urso e torcer para ele voltar inteiro. Ah, sim: não podia errar, ou a folha inteira estava perdida. Precisava reescrever uma parte do documento? Quem já era profissional nisso tinha o hábito de recortar os trechos e colar em outra folha, já na ordem que precisava ser digitada. Assim, era preparado o esboço do que, depois, seria digitado e entregue sem erros. Outra coisa, também: não tinha esse negócio de justificar texto. Ou a pessoa aprendia a controlar e distribuir os espaços ao longo da frase, ou teria que lidar com espaço sobrando à direita.
A década de 1980 viu o desktop publishing caminhar para rumos diferentes: de um lado, ficaram os aplicativos de diagramação para publicidade e design, como o Aldus PageMaker; do outro, os processadores de texto ajudavam usuários comuns a colocar no papel textos, rascunhos e redações. No começo da década, eles eram pouco mais do que uma janela vazia onde a pessoa digitava texto usando a fonte do sistema, já que a escolha de fonte ainda era feita na impressora. Aos poucos, os principais concorrentes da época, como o WordStar, começavam a implementar fundamentos do WYSIWYG (what you see is what you get), mostrando o texto renderizado em tela cada vez mais fiel ao resultado final impresso, e a popularização do Word ajudou a consolidar essa filosofia de desenvolvimento de aplicativos.
Na virada para os anos 1990, duas mudanças foram importantes para o Word deixasse de ser apenas mais um aplicativo para tornar-se o Bombril dos processador de texto. A primeira delas foi nas impressoras, que tornaram-se menores, mais baratas e versáteis, exigindo do usuário muita paciência alguns comandos para imprimir qualquer coisa. A segunda foi a supremacia do Windows ante outras plataformas como o MS-DOS, OS/2 e o Unix, tornando-se o sistema operacional dominante no mercado. Aproveitando esse domínio, a Microsoft fez um grande esforço de marketing para fazer da suíte Office uma parte indispensável da vida digital até de usuários de Macbooks e iMacs. O resultado: PowerPoint virou sinônimo de apresentações interativas, experiência em Excel é a maior mentira de todos os currículos, e qualquer aplicativo de criar documentos é tipo o Word.
(uma pausa para homenagear alguns que não chegaram lá, como o Access, um cliente de banco de dados que não ganhou tantos adeptos; o Binder, que faz um “fichário” de diferentes arquivos do Office; e o FrontPage, porta de entrada para drogas pesadas como HTML e CSS)
O Word é o primeiro contato do público geral com tipografia. Um contato meio alienígena, na verdade: para uma pessoa leiga, o que fonte significa na humilde tarefa de mudar o estilo das letras no papel? Por quê, ao abrir o dropdown, esses estilos tinham nomes bizarros como Arial, Times New Roman, Palatino ou Impact? O Word também ajudou a colocar no cotidiano operações triviais, como recortar, copiar e colar — mesmo que a gente chame de Control Cê e Control Vê. Só que essas operações têm um lastro na realidade: os comandos de recortar e colar, no Word, mimetizavam o ato de recortar trechos e colá-los em outro ponto do papel para criar um novo arranjo. Fontes e tipografia, por sua vez, nunca fizeram parte do cotidiano geral; bem ou mal, o que a maioria das pessoas conhece desse universo é o que elas têm contato via Word.
Tecnicamente, a relação do Word com tipografia é estranha. Quem vem do InDesign ou do QuarkXPress, logo sente falta de um sem-número de controles tipográficos que o Word não oferece, ou não faz de maneira tão precisa. Os controles disponíveis para o usuário do Word são básicos, ainda que bastem para composições tipográficas simples e elegantes. Em certas situações, o Word sobrepõe-se às especificações de espaçamento e programação OpenType das próprias fontes, desabilitando ligaduras e kerning. O Word foi pioneiro em exibir negrito e itálico no documento, e para tal, ele faz gambiarras para simular esses efeitos em fontes que não têm esses estilos disponíveis, traçando contornos ao redor das formas das letras para simular negrito e inclinando-as para criar um itálico falso. Esses truques enganam olhos descuidados, mas os resultados finais são bem ruins. Ok, é compreensível que o Word não precisa ser uma suíte tipográfica completa; tanto que quem cumpre a tarefa de proporcionar estilos “diferenciados” para “embelezar”, de capas de trabalho escolar a constituições estaduais de alguns estados, é o… WordArt.
Porém, não apenas de cafonice tipográfica vive o Word; em 2007, a Microsoft trouxe com o Office uma série de novas fontes desenvolvidas por type designers de peso, como Luc de Groot e John Hudson. As C-fonts, que tinham como intuito popularizar o motor de renderização de texto ClearType, trouxeram fontes como Calibri, Constantia e Corbel substituindo Times New Roman e Arial onde estas eram padrão. No ano passado, a Microsoft trouxe mais uma atualização para seu set padrão de fontes do Office, introduzindo a família Aptos, de Steve Matteson, como nova fonte padrão do Word e demais aplicativos, além de outras quatro famílias tipográficas encomendadas para a suíte de produtividade e outros softwares do Windows.
A relação do Word com a linguística também é esquisita. Os milhões de usuários do processador de textos do Office em todo o mundo acostumaram-se com o sistema de autocorreção. Contudo, apesar de ser cômodo ver o Word corrigindo pequenas falhas por si, ele também é rígido com o uso de uma “norma culta” do vocabulário, tratando expressões regionais com o mesmo peso de erros de ortografia e tornando-se um “árbitro” da linguagem. Tudo que desvia da linguagem corporativa “eficiente” de escritório é visto como erro, trazendo como “punição” sublinhados vermelhos e azuis e a aparição do terrível, hediondo, implacável, impiedoso e irritante Clippy.
A tendência de padronização da escrita no Word, apesar de sua “eficiência”, também traz prejuízos em outros aspectos. Segundo reportagem da BBC, estudos mostram que o uso do Word como ferramenta complementar de aprendizado de idiomas traz um impacto negativo no desenvolvimento de habilidades de escrita e fala. A autocorreção, sugerem estudos, reduzem a exposição do usuário a erros ortográficos e compromete a memorização da grafia correta das palavras. O autopreenchimento de texto, que tende a ser mais presente nos próximos anos com ajuda de inteligência artificial generativa, desincentiva os usuários a buscar sinônimos e expandir seu vocabulário, e tornando mais homogênea a comunicação corporativa e acadêmica.
Só que, como admirador da influência da tecnologia na vida das pessoas, acho injusto encerrar essa edição sem enaltecer o Word em aspectos onde, de fato, ele melhorou a vida das pessoas. Mesmo que você use outros processadores de texto, como o Google Docs ou o LibreOffice Writer, eles carregam familiaridade com o Word para o usuário comum não sentir tanto estranhamento, como a posição dos menus e ferramentas mais utilizadas. A presença massiva dos computadores e processadores de texto ajudou a reduzir o esforço cognitivo de escrever, deixando o usuário focado apenas no conteúdo e estratégia de comunicação, enquanto o Word sozinho resolve alinhamento, quebras de linhas, hifenização e outras dores-de-cabeça.
Ao longo do tempo, o Word trouxe recursos que agilizam a criação de textos bem formatados, como estilos de parágrafos, marcadores e listas numeradas automáticas, criação de índices, referências e notas de rodapé, revisão com histórico, marcações e comentários, entre outros. De forma geral, mesmo com a Internet, o Word ainda é um grande motivo para as pessoas comprarem computadores e fazer deles uma ferramenta de produtividade, para que elas possam produzir e compartilhar conhecimento para o mundo usando as ideias que o Word trouxe e, por utilidade e conveniência, provaram-se imunes ao tempo…
Tirando o Clippy. O Clippy, de longe, foi a pior ideia do universo.
Recomendações
🎧 Podcast: Primeiro Contato S2 #1, com Henrique Sampaio relembrando a vida digital dos lares brasileiros entre a chegada dos computadores domésticos e a popularização da Internet.
🎥 Vídeo: Microsoft Word Evolution, mostrando amostras de tela de todas as versões do Word entre 1983 e 2023.
🔗 Link: Make WordArt, um editor de textos decorativos utilizando os mesmos controles e formatos padrão do WordArt.
🇧🇷 Fonte brazuca: Versos, de Eduilson Coan, Henrique Beier, Ana Laydner, Thiago Bellotti e Fabio Haag.
Escrito em 101193.99
Meu primeiro curso do Office 95 foi em 1996. Foi Windows 3.11, Word 95, Excel 95, Atualização para Windows 95 e Introdução a Internet. XD
Esse curso foi um pré-requisito do meu pai para me dar meu primeiro computador. Mas eu gostei muito, depois fiz todos os cursos disponíveis na escolinha de informática, inclusive do Pagemaker que você citou. Uns anos depois eu quis fazer um zine e meu desejo era ter o Pagemaker para diagramar e não consegui encontrar pirata e tive que fazer no Word mesmo.
Hoje uso cada vez menos. Tenho no trabalho, mas é rara a necessidade. O Excel um pouco mais. Documentos normalmente acabo redigindo dentro do software de processo eletrônico adotado pelo órgão onde trabalho.
E para uso pessoal, não tenho mais Office no meu computador, uso o Google Docs e Sheets mesmo.
Mas sim, a primeira vez que ouvi falar numa fonte foi nesse curso do Office em 96.
a criança dos anos 90 que habita em mim amava o Clippy e o WordArt... tudo que envelheceu mal 🥴