Tipo Aquilo #74 – Notas azuis e psicodélicas nas capas de álbuns
Uma visita breve aos álbuns da Blue Note e da Hipgnosis
Tempo de leitura: 8 minutos
Um dos fenômenos mais legais que o Spotify ajudou a espalhar pelo mundo é o dos nomes engraçadinhos para playlists, que mora na interseção de momentos históricos da fina ironia da Internet e do fim da necessidade de ter um iPod para ser um DJ amador. Não sou um ávido criador de playlists, atendendo apenas a minha demanda e satisfazendo-me com nomes como: “Satan fitness”, minha lista de rock para ouvir na academia; “Tentando ser hype sem grana”, minha lista de indie rock dos anos 2000; e minha segunda lista favorita, a “Jazzinho pra vida em banho maria”.
Já tem um tempo que eu quero falar de capas de álbuns aqui; em especial, as produzidas pelo estúdio inglês Hipgnosis. Música e podcasts dividem minha atenção sempre que estou trabalhando, cozinhando ou indo pra lá e pra cá. O interesse pelo rock veio por um sinal vazado da MTV Latina na TV do quarto quando eu era adolescente; já pelo jazz, veio mais tarde, quando entendi a importância para a música de nomes como Miles Davis e John Coltrane, e felizmente nunca mais me largou. Essa edição do Tipo Aquilo junta esses dois ambientes de droga gêneros e faz tanto uma homenagem aos artistas quanto a designers e fotógrafos da Blue Note Records e Hipgnosis que colocaram no mercado várias capas icônicas de álbuns.
O ponto de partida dessa edição é este vídeo da Vox sobre as capas produzidas pela Blue Note. Você pode assistir antes de seguir em frente, é um merecido agrado a olhos e ouvidos. Alfred Lion era um jovem alemão judeu que conheceu o jazz ainda em Berlim e apaixonou-se pelo estilo, mas fugiu do país em 1937 porque Hitler não gostava muito de jazz e de judeus. Estabelecido nos EUA, aproximou-se da cena local, sendo apresentado a vários artistas do be-bop, subgênero em moda na época. Foi apresentado também ao músico e escritor Max Margulis, e o poeta Emanuel Eisenberg, ambos judeus, que tornaram-se co-fundadores da Blue Note junto com Lion. O manifesto da Blue Note, criado por Margulis e Eisenberg, norteia a filosofia do selo e o compromisso com a qualidade da música, acima de tudo:
A Blue Note Records é concebida para servir às expressões irreverentes do hot jazz e do swing. O hot jazz direto e honesto é uma forma de sentir, uma manifestação musical e social, e cabe à Blue Note Records identificar esse ímpeto, e não seus adornos sensacionalistas e comerciais.
Margulis e Eisenberg, nos anos 1940, dedicaram-se a outros projetos. Contudo, outras três pessoas aproximaram-se de Lion e tornaram-se fundamentais para a Blue Note: Francis Wolff, Rudy Van Gelder e Reid Miles. Wolff era um fotógrafo exilado da Alemanha nazista e, tal como Lion, apaixonado por jazz. Tornou-se co-administrador da Blue Note, sendo frequentemente tido como co-fundador do selo, e responsável pelos registros fotográficos das sessões de ensaio e gravação. Van Gelder, engenheiro de som, era responsável pelas gravações, mixagens, e por dar aos álbuns produzidos pela Blue Note o som “cru” e potente que tornou-se característico do selo.
Reid Miles era o designer gráfico que criou toda a identidade gráfica da Blue Note. Ele produziu capas para quase quinhentos álbuns lançados pelo selo, utilizando as fotografias de Wolff e a tipografia como uma poderosa ferramenta capaz de expressar visualmente a potência e irreverência do hot jazz feito por músicos geniais como Art Blakey, Miles Davis, Hank Mobley, John Coltrane, Thelonious Monk, Joe Hendersen, Herbie Hancock, Freddie Hubbard, entre outros. Reid tinha um grande apuro para compôr a estética de um álbum usando fotografias, cores saturadas e arranjos tipográficos em sintonia perfeita.
Essa linguagem criada por Reid tornou-se um sinônimo da própria Blue Note e também do próprio jazz dos anos 1950. Outras gravadoras também lançavam álbuns de grande qualidade, mas os experimentos tipográficos e a harmonia entre cores, letras, fotografias e ilustrações esporádicas tornaram-se uma grande referência visual estudada e homenageada até hoje. Reid era um usuário contumaz da Franklin Gothic, reforçando o caráter de Gótica America que ela tem até hoje; no entanto, ele não se prendia a um estilo, tendo usado várias tipografias em seus álbuns, como Clarendon, Bodoni, Century, Caslon, Akzidenz Grotesk, entre outras.
Agora, mudamos de playlist e vamos para o rock da Inglaterra dos anos 1970. Já na década anterior, o formato clássico de capa de álbum, com um retrato e os nomes do artista e do álbum, parecia mofado. Álbuns como “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” (1967), dos Beatles, e “Beggars Banquet” (1968) dos Rolling Stones, foram inovadores em suas capas, abrindo espaço para algo mais que um retrato de banda e um letreiro. Aubrey Powell e Steve Thorgenson, uma dupla de artistas de Cambridge, foram além: algumas de suas capas mais famosas não têm nada além de fotografia. Pense que não era a coisa mais natural do universo ir a uma loja de discos em 1970 e deparar-se com uma foto de uma vaca num pasto, e só. Um disco de sons ambientes, talvez? Não, é só o álbum mais prepotente performático do Pink Floyd, “Atom Heart Mother”. Pegar as pessoas pela curiosidade é o que o estúdio inglês Hipgnosis mais fez entre 1968 e 1983, quando Powell e Thorgenson seguiram caminhos próprios.
A história do Hipgnosis é uma mistura de sorte e talento: dois jovens designers que tinham os amigos certos. A capa psicodélica de “A Saucerful of Secrets” (1968), do segundo álbum do Pink Floyd, abriu espaço na gravadora EMI para que Po e Steve trabalhassem com outras bandas, como T. Rex, Free e Electric Light Orchestra. No entanto, eles consolidaram seu estilo e tornaram-se um estúdio requisitado em 1973, com a capa de “The Dark Side of the Moon” vendendo milhões de álbuns e abrindo espaço para trabalharem com artistas como Genesis, Peter Frampton, Led Zeppelin, Paul McCartney, Black Sabbath, Def Leppard. O trabalho do Hipgnosis não se resumia às capas: vários álbuns com sua assinatura traziam fotografias, pôsteres, folhetins e outros impressos que enriqueciam a experiência do ouvinte e mostram a força da indústria fonográfica no período dourado do rock.
A dupla tornou-se trio em 1978, com o tecladista e cineasta Peter Christopherson sendo promovido de assistente a sócio. Contudo, apesar do destaque proeminente à fotografia, fotomontagem e ilustração com aerógrafo na história do Hipgnosis, não significa que a tipografia esteve ausente. Po, Steve e Peter também sabiam utilizá-la quando preciso, tendo feito capas tipograficamente expressivas, como o álbum de estreia do Bad Company (1974); o lettering com esferas coloridas de “Venus and Mars” (1975) e o letreiro de “Wings at the Speed of Sound” (1976) do Paul McCartney Wings; e o mais ousado deste segmento, todo composto com máquina de datilografia, o “Go 2” (1978), do XTC.
Capas como as de Reid Miles, Aubrey Powell e Steve Thorgenson ajudaram a tirar a mesmice do design gráfico na indústria fonográfica, mostrando caminhos inovadores e vibrantes para fazer as capas de álbuns expressarem visualmente suas músicas e a sonoridade de seus artistas. Com o tempo e a mudança das tecnologias de áudio, as capas perderam o impacto de outrora: de vinis, passaram para os CD’s, e hoje são thumbnails na tela do celular que, embora o meio digital dê suporte a algumas animações e firulas, não fazem o mesmo impacto que uma série de exclamações em Bodoni, ou um prisma decompondo um raio de luz.
Recomendações
🎧 Podcast: Braincast #456, com Carlos Merigo, Ana Freitas, Beatriz Fiorotto, Marko Melo e Luiz Hygino discutindo sobre a influência de bandas clássicas na formação musical dos jovens.
🎥 Vídeo: Squaring the Circle (The Story of Hipgnosis), (em inglês) o trailer do documentário de Anton Corbijn sobre o estúdio Hipgnosis e o rock dos anos 1970.
🔗 Link: Hipgnosis covers, uma seleção não-oficial do trabalho produzido por Steve Thorgenson e Aubrey Powell durante e após o estúdio Hipgnosis.
🇧🇷 Fonte brazuca: Magno Sans, de Lucas Gini, com pós-produção de Henrique Beier.
Nota do editor (update)
Falando em capas de álbum, fica aqui uma homenagem póstuma ao designer Jamie Reid, falecido recentemente aos 76 anos, que produziu capas, pôsteres e toda sorte de elementos que ajudaram a criar a identidade visual do Sex Pistols e a “cara” do punk inglês e do rock, de forma geral.
Escrito em 101232.45
Maravilhosa a edição! Que achados, não sabia de nada (e amei os títulos das playlists, rs).