Vamos falar de fontes #1 – Franklin Gothic e Melindrosa
Góticas americanas e geométricas brasileiras
Franklin Gothic, de Morris Fuller Benton
Por um tempo, tive um certo ranço da Franklin Gothic, enquanto eu a conhecia apenas como “aquela fonte dos títulos da Veja”. A IstoÉ também compunha suas headlines com a Franklin Gothic; por algum motivo ela parecia querer imitar a Veja em corpo, mas ser um tanto oposta em espírito, talvez. Enfim, a ideia não é revisitar os anos 90 do mercado editorial brasileiro, mas mostrar a versatilidade da Franklin Gothic para revistas, pôsteres, capas de álbuns e outras aplicações em letras garrafais desde o começo do século passado.
O nome “Gothic” causa estranheza em alunos de design gráfico ou curiosos de tipografia porque… bem… ela não tem nada de gótica. Geralmente pensamos em góticas como fãs de Nightwish bebendo num cemitério as letras medievais blackletter; só que, na cultura européia, especialmente em países de línguas anglo-saxônicas, o termo “gótico” era usado de forma pejorativa para algo feio ou exótico. Mais ou menos quando um cidadão, para demonstrar o caráter negativo de algo vindo fora da cultura greco-romana, usava o termo “bárbaro”, como eram os povos godos, ostrogodos e visigodos — é deles que vem a palavra “gótico”.
“Gótico” tem quase o mesmo valor do termo “grotesco” para demonstrar o quanto as formas das letras de fontes como a Akzidenz Grotesk, Monotype Grotesque ou a Neue Haas Grotesk (nome-piloto da Helvetica) trazem ruptura com as letras serifadas. Embora sejam sinônimas em caracterizar fontes sem serifa, as chamadas “American Gothics” refletem o crescimento maciço da indústria dos EUA a partir de 1865, com o fim da guerra da secessão e da escravidão, a concentração de mão-de-obra especializada em estados do nordeste americano, e o crescimento do mercado interno via políticas de imigração e povoamento dos estados a oeste. O crescimento econômico dessa industrialização, acentuado após a Primeira Guerra Mundial, estabeleceu o país como um pólo de tecnologia tipográfica fora da Europa.
Projetada em 1904 pelo americano Morris Fuller Benton, talvez o designer de fontes mais influente do país, a Franklin Gothic é o “poderoso chefão” das American Gothics, nomeada em homenagem a Benjamin Franklin. Inicialmente, as fontes da Franklin Gothic eram as mais largas e pesadas de uma série de fontes “gothic” projetadas por Benton para a Monotype. Outras fontes, feitas por Bud Reinshaw e Whedon Davis, foram adicionadas à família; no entanto, apenas nos anos 1970 a Franklin Gothic passou a contar com letras mais leves e voltadas para a texto, projetadas por Victor Caruso para a ITC.
Só que a Franklin Gothic já tinha sua fama consolidada no mercado editorial, estampando um sem número de títulos de revistas, jornais, pôsteres, embalagens, cartazes e outras aplicações. Consolidou, por fim, o primeiro estilo tipográfico americano, resgatado até hoje em fontes como a Ringside (Jonathan Hoefler e Sara Soskolne; Hoefler&Co.) e a America (Noël Leu e Seb McLauchlan; Grilli Type), e rivalizado apenas nos anos 1970, com a popularização de uma certa fonte suíça.
Melindrosa, de Flavia Zimbardi
Quem visitou a exposição “J. Carlos — Originais” no IMS em 2019 teve a oportunidade de visitar o Rio de Janeiro do início do séc. XX sob o olhar do ilustrador e chargista carioca João Carlos de Brito e Cunha. A qualidade e autenticidade de sua produção estava presente em mais de 300 peças selecionadas para a exposição, entre ilustrações, quadrinhos e esboços, expondo seu rigor técnico com acabamento, suas influências do art nouveau e art déco, e os discursos de sua narrativa visual que mostra a diversidade da cultura e da população carioca, mas tropeça constantemente no racismo e na xenofobia.
A indústria tipográfica brasileira ainda engatinhava na época; quase todos os tipos e máquinas usadas nas gráficas brasileiras vinham da Europa. Nesse ínterim, J. Carlos desenvolveu letras que ornavam com suas ilustrações e misturavam a precisão geométrica do art déco com a vivacidade do cotidiano carioca, marcado pelo samba e o carnaval. Suas letras artesanais, feitas com nanquim, eram presentes tanto nos títulos de publicações como “Careta”, “Para Todos”, “Fon-Fon!” e “O Malho” quanto em outros detalhes presentes nas capas e demais ilustrações.
As letras titulares ganharam vida nova em 2003 com o lançamento da Samba (Caio de Marco e Tony de Marco; Linotype), trazendo para o meio digital os floreios geométricos e delicados das capitais de J. Carlos. No entanto, o artista carioca deixou dezenas de letterings e outros estilos de letras em seu legado. Em março, foi a vez da Flavia Zimbardi trazer ao público a Melindrosa (Future Fonts), uma releitura dos letterings de J. Carlos fiel ao seu estilo, mas focada em outras aplicações além dos títulos de revistas. O cartunista tinha uma série de personagens referentes a certos arquétipos e estereótipos da sociedade carioca; uma delas, a Lamparina, representava as mulheres da primeira onda feminista, a quem ele referia como “melindrosas”.
Neste revival da Flavia, ganham foco os pequenos letreiros usados na numeração de capas das revistas; contudo, as letras da Melindrosa não compreendem um set específico usado por Carlos num contexto particular, mas congregam traços e exemplos de várias aplicações de momentos distintos da carreira do ilustrador. As letras minúsculas, ausentes no resgate dos de Marco, trazem em letras como “g” e “s” o aspecto ornamental presente nas letras maiúsculas. As ligaturas e caracteres alternativos da Melindrosa evocam o aspecto quase psicodélico das ilustrações do carioca.
Flavia lança mão, também, de influências mais recentes, como a Avant Garde (Herb Lubalin e Tom Carnase; ITC), que conversam com o art déco à brasileira de J. Carlos. No entanto, o esforço dos pesquisadores brasileiros em não deixar nossa memória gráfica desaparecer com o tempo é o que possibilita com que J. Carlos e outros grandes artistas sejam referências para Tony, Caio, Flávia e futuras gerações de designers de tipos. Por mais bem acabadas que sejam, Samba e Melindrosa representam apenas uma fração de uma farta produção de letreiros de J. Carlos.
Onde aquirir
Melindrosa v.0.1, Flavia Zimbardi, em Future Fonts.
Franklin Gothic, ITC, em MyFonts.
Nota do editor
Olá, pessoas! Talvez vocês estranhem um pouco o título dessa edição; em 2023, intercalada entre as edições tradicionais, a TipoAquilo.calt trará textos de linhas editoriais auxiliares para testar outras abordagens, manter uma produção mais regular e diversificar o conteúdo. (=
Hoje, trago a Vamos falar de fontes, dedicada a fazer uma breve crítica sobre famílias tipográficas clássicas e recentes, sem julgamentos, pontuação, ranking ou qualquer coisa do tipo. A ideia é apresentar e contextualizar brevemente duas fontes por edição, com a reverência de sempre aos designers brazucas.
O TipoAquilo.calt (nome derivado do recurso de contextual alternates do OpenType) aparecerá mensalmente entre cada edição normal do Tipo Aquilo, e você pode escolher entre receber as duas newsletters ou apenas o TA normal, feito para contar histórias com tipografia em foco.
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