Aviso: não há como falar da vida de Eric Gill sem abordar alguns temas pesados, como estupro e abuso de menores. Se você não quer ouvir falar disso, então nos vemos na próxima quinzena.
Há um meme circulando por aí há uns meses que compara o fã de música pop com o metaleiro. Enquanto o fã de pop faz milhares de tweets e dezenas de threads atacando ou defendendo o cantor que solta alguma frase de mau tom, o metaleiro com alguma consciência já fica feliz demais quando o ídolo não é adorador daquela ideologia alemã repugnante. Com o passar dos anos, nenhuma das artes passa ilesa da situação de fãs e admiradores tendo que escolher entre passar pano ou cancelar um ídolo.
No cinema, música e literatura, artes donas dos maiores holofotes, a repercussão de escândalos e debates públicos sobre casos de abusos e assédios é mais evidente. Só que, hoje, o Tipo Aquilo vem pra trazer tristeza e consternação a quem achava que o nosso mundinho tipográfico estava alheio a isso. Para tal, eu trago um personagem que, intencionalmente, eu comento pouco por aqui, e vocês verão o porquê. Vamos a uma das manchas impossíveis de limpar da história artística e tipográfica do Reino Unido.
Até 1989, o mundo conhecia Eric Gill mais ou menos da forma com que ele era descrito pelo Oxford Dictionary of National Biography, “um gênio da gravação e design de tipos e o maior artesão do século XX”. É um exagero, diria qualquer um nascido fora do Reino Unido e que não usa flabbergast pra descrever o trabalho de Gill, mas ele é importante sim. Foi um grande escultor, desenhista, estudioso de caligrafia e tipografia, e autor de vários livros escritos e impressos por ele. “Ensaio Sobre Tipografia”, de 1931, publicado e traduzido em dezenas de países, ainda é um livro significativo para estudo da história da tipografia, tanto pelo conteúdo em si quanto por ser o primeiro uso de sua família tipográfica Joanna.
Ah sim, sobre as fontes: a Gill Sans é um franco sucesso comercial, sendo muito utilizada até hoje. Gill foi aluno de caligrafia de Edward Johnston e chegou a trabalhar com ele no começo do desenvolvimento da Johnston Underground, a família de fontes feita para o sistema de transporte subterrâneo de Londres. As letras feitas por Johnston foram referência para sua família de fontes homônima, encomendada por Stanley Morison para a Monotype, com quem já tinha trabalhado anteriormente na criação da Perpetua, outro trabalho bem-sucedido de Eric. O escultor chegou a fazer outras fontes, mas ele é consagrado pela tríade Gill Sans, Perpetua e Joanna, tidas como referências do modernismo inglês na tipografia.
A caligrafia é um dos fundamentos mais notáveis nas fontes feitas por Gill; mesmo com as serifas ausentes, a inspiração nas letras imperiais romanas é notável na Gill Sans. Além disso, ao contrário de fontes geométricas de sua época como a Futura e a Erbar, o contraste entre traços finos e grossos é perceptível. Já na Perpetua e Joanna, Gill propõe caminhos diferentes de fontes inglesas clássicas, como a Caslon e Baskerville, usando suas letras gravadas em pedra como referência para as duas fontes. Dessa forma, por exemplo, os terminais arredondados deram lugar a acabamentos quadrados na Joanna e pontiagudos na Perpetua, e junções sem incisões em letras como “b”, “q” e “d”.
Além das fontes comercializadas pela Monotype, Gill também escreveu vários livros. Esse resgate da caligrafia confunde-se com a visão sobre tipografia que Gill comenta em “Ensaio sobre Tipografia”, em que o autor medita sobre o conceito de beleza e o efeito às vezes nefasto, porém inevitável, da industrialização nas formas das letras. Gill tinha um grande apreço pelas artes manuais, tendo um zelo inquestionável em sua produção gráfica e artística, e temia que esse zelo fosse perdido com a produção em massa dos objetos do dia-a-dia. É possível fazer um paralelo entre o temor de Gill sobre a industrialização nos anos 1930 e o receio atual de que a digitalização e inserção de inteligências artificiais no nosso cotidiano tire o aspecto humano das coisas.
Gill tinha uma visão fervorosa da manualidade e do aspecto humano das coisas, a ponto de dedicar sua vida às artes manuais e ao conhecimento. Ele converteu-se ao catolicisimo em 1913 e mudou-se em 1924 para um monastério abandonado no País de Gales, onde teve seu período mais produtivo. Retornou para a Inglaterra em 1928, abrindo a gráfica Hague and Gill com seu genro, onde imprimiu e publicou quase todos os seus escritos. Por toda a vida, foi uma pessoa reclusa, dedicada à igreja, ao trabalho e à família. Gill chegou a fazer parte da Sociedade Fabiana na juventude, mas mesmo após deixar o movimento, os ideais reformistas da social-democracia foram defendidos por ele em alguns ensaios. Dessa forma, viveu de 1882 até 1940, deixando um legado de várias esculturas e inscrições em pedra, entre outras obras de arte.
Eric tinha tudo para ser um dos maiores ingleses da história. Várias biografias póstumas ressaltavam suas qualidades como artista e filósofo. No entanto, além das obras de arte, Gill deixou uma série de diários em que registrava suas atividades cotidianas e os pensamentos que mais causavam-lhe intriga e aflição. A primeira biografia a trazer o conteúdo desses diários, escrita em 1989 por Fiona MacCarthy, causou um grande choque na sociedade inglesa e na comunidade de designers pelo conteúdo acerca da vida sexual de Eric Gill. A imagem de artista genial passou a co-existir com a de uma pessoa que praticou diversos casos de adultério, incesto com suas irmãs e abuso sexual de suas filhas mais velhas enquanto ainda eram crianças.
Por algum tempo, a reputação de Eric Gill permaneceu incólume ao conteúdo da biografia, ao passo em que todos estes abusos aconteciam — o que ele talvez dissesse num grande tribunal da história — porque ele era uma pessoa deveras curiosa sobre o ser humano e a sexualidade. Escolas e faculdades de design pouco ou nada comentavam sobre o Gill abusador, limitando-se ao seu trabalho de artista e tipógrafo; suas fontes permanecem à venda, com a Gill Sans vindo embarcada em algumas distribuições do Windows e do macOS. No entanto, conforme outros abusadores infantis eram descobertos, julgados e condenados, não olhar para a história de Eric Gill tornava-se uma posição cada vez mais insustentável.
Em janeiro de 2022, um homem foi preso após passar quatro horas atacando a marteladas uma estátua de Gill na entrada da BBC. A estátua foi atacada novamente em maio deste ano. “Prospero e Ariel” retrata dois personagens da peça “A Tempestade” de William Shakespeare, com Ariel sendo representada por uma criança despida. Há anos que vários abaixo-assinados pedem a retirada da estátua do local. Ao passo em que a emissora estatal britânica não tem planos de remover a estátua do frontispício de um prédio público, ela alega não concordar com as ações e opiniões de Eric, numa postura ambígua, pra dizer o mínimo.
Esse “cancelamento” do Eric Gill não é recente. O Ditchling Museum of Art + Craft, onde grande parte do legado do artista é concentrado, foi conhecido por muitos anos como um museu dedicado à sua memória. Nos últimos anos, contudo, tem retirado várias peças de exposição e tido Eric como mais um entre vários artistas do museu. Desde o ano passado, a casa de leilões de arte Christie’s não comercializa mais as obras de Gill, e pelo menos desde 1998 associações religiosas pedem para que obras suas instaladas em igrejas e templos sejam transferidas para outros lugares.
“Mas isso é mimimi, não podem apagar a história”, imagino que alguns pensem assim. Eric Gill não é o único artista conhecido por casos de abusos sexuais; aliás, alguns dizem que, tirando do mercado todos os artistas abusadores, não existiria mercado de arte — o que diz muito sobre o termo “mercado”. Contudo, “apagamento” é o que menos tem acontecido para artistas como Caravaggio, Paul Gauguin, Pablo Picasso, por exemplo: museus e exposições ainda vão da discrição à nulidade ao abordar vidas sexuais que, para nossa moral e ética atuais, vão do repugnante ao criminoso. Há também quem tome esses casos romantizando abuso sexual como “fardos” de “gênios atormentados”. Para Gill, o que mais pesa é que os abusos sexuais não existem por relatos de outrem: são suas próprias palavras, mesmo que expressem culpa ou curiosidade genuína.
Vários críticos de arte e pesquisadores do ramo hesitam em uma conclusão sobre “separar o artista da obra” no caso de Eric e de outros artistas, dado o peso do elefante na sala. A jornalista Martha Gill (não parente) sustenta que a solução dada nos últimos anos a esses artistas tem sido tratar a arte como “inofensiva”, que sustentar uma peça de arte na parede é meramente decorativo. Se tem algo que qualquer estudante de arte aprende logo no primeiro semestre, é que arte passa longe de ser inofensiva. O mero uso da Gill Sans numa peça gráfica ainda é um salve para um artista brilhante e abusador, e nunca estará errado quem escolhe abrir mão do tal “consumo ético” (antes isso fosse possível) e não mais usá-la, assim como a Perpetua e a Joanna.
Essas fontes ainda estarão nos livros de tipografia, serão exemplos e objetos de estudo do modernismo inglês no design gráfico. Também há uma grande quantidade de fontes que podem substituí-las. Contudo, a responsabilidade ao abordar pessoas como Gill e outros artistas diz respeito ao tamanho do pedestal dado para eles, a proteção para estar acima da lei e da ética nesse pedestal, e o quanto isso também inspira outros a querer estar acima da lei e da ética. Aos poucos, ostentar a Gill Sans numa identidade visual ou uma estátua na frente de um prédio deixa de ser uma homenagem a um grande artista e torna-se uma mancha terrível na reputação.
Nota do editor
Dessa vez, trago a nota antes das recomendações porque, de verdade, eu entendo você chegar até aqui discordando de mim em pouco ou em quase tudo. Nem acho que essa discussão acaba por aqui. Nas recomendações, eu deixarei um podcast e um vídeo dedicados ao tema de separar artistas de suas obras, e estarei aberto a responder nos comentários do Substack quaisquer questões que vocês considerem pertinentes a esse assunto.
Recomendações
🎧 Podcast: Pontes Podcast – Separar o artista da obra, com Benjamin, Cleide e Leo discutindo sobre o controle de narrativas e o lado dos fãs de artistas problemáticos.
🎥 Vídeo: The Art Assignment – Love the art, hate the artist, (em inglês) com a autora e curadora Sarah Urist Green discutindo sobre a a admiração por artistas problemáticos e as consequências para a sociedade.
🔗 Link: Gill Sans alternatives, uma seleção pessoal da professora e tipógrafa Indra Kupferschmid de fontes que podem substituir a Gill Sans em diversos contextos.
🇧🇷 Fonte brazuca: Curiosa, de Henrique Beier, Ana Laydner, Eduilson Coan e Fabio Haag.
Escrito em 101083.57
Ótimo e necessário texto, Cadu! Para mim a obra pode até ser objeto de estudo, com mil ressalvas e sempre lembrando quem foi o artista e o que ele praticou, mas não tem como utilizar ela fora desse contexto.
E obrigado por compartilhar a Curiosa 🙌