Dividir períodos históricos em intervalos precisos de anos é um grande problema dos historiadores com a necessidade de ensinar história. Sabemos que não chegou um comunicado na casa de cada pessoa vivente em 31 de dezembro de 1452 avisando que, no dia seguinte, acabaria a Idade Média e começaria a Idade Moderna. A transição entre estes períodos toma o ano de 1453, da queda de Constantinopla para o Império Otomano e do fim da Guerra dos 116 100 Anos, para fins de facilitar o estudo de um século inteiro de grandes mudanças. Antes de 1453, no entanto, vários eventos da Idade Moderna estavam em curso: por influência das Cruzadas, as ciências da natureza tiveram um grande progresso ainda no séc. XII e as rotas comerciais abertas no período tornaram as cidades vizinhas mais populosas. Em paralelo, o arquiteto Filippo Brunelleschi já tinha plantado as sementes do renascimento artístico, e Portugal já começava o período das grandes navegações.
Várias mudanças políticas e sociais em curso na Europa entre as décadas de 1910 e 1930 foram importantes para, posteriormente, o estabelecimento e expansão do design modernista. As consequências econômicas e sociais da Primeira Guerra Mundial, a popularização da fotografia como plataforma de criação artística e a formação de escolas de artes e ofícios como a Vkhutemas e da Bauhaus são alguns dos fatores que transformam as artes e o design gráfico. Contudo, o Tipo Aquilo de hoje destaca dois eventos do ano de 1932, na Alemanha e na União Soviética, como fundamentais para que essas transformações que “causaram” o design moderno fossem propagados mundo afora.
Primeiro, um recap da Europa após 1919. O Império Alemão, derrotado, deu lugar a uma República de Weimar em frangalhos. Inglaterra e França, vitoriosas, acumularam dívidas e milhões de vidas perdidas. O Império Russo, último a carregar elementos de uma sociedade feudal, agora era uma União Soviética em estado de penúria. Enquanto o restante da Europa reerguia-se com empréstimos e investimentos dos EUA, a URSS viveu anos de conflitos internos entre dissidências até que começasse seu processo de industrialização e eletrificação em massa, surgindo como potência emergente e vitrine do comunismo.
As artes, arquitetura e design foram instrumentos vitais para propaganda, urbanização e comunicação em massa da União Soviética. A criação da Vkhutemas, escola de artes e ofícios do estado soviético, em 1920 formou centenas de profissionais aptos a coordenar e liderar os processos de produção de fábricas, estúdios e oficinas, fomentando as indústrias de tecelagem, mobiliário, construção, metalurgia e comunicação. A Vkhutemas foi um ambiente ideal para que artistas como Rodchenko, Lissítsky, Tatlin, Stepanova, Malevitch, Klútsis, Kandinsky e Kulagina despontassem como grandes nomes do avant-garde russo e ganhassem notoriedade no circuito artístico europeu, que desde a instalação de um mictório como peça de arte numa galeria, passava por uma completa transformação.
O uso do design gráfico como ferramenta de comunicação de massa fez com que a fotografia, a colagem e o uso de composições tipográficas com letras com poucos ornamentos e de fácil reprodução fossem os cartões de visita do construtivismo russo. As artes gráficas tinham o dever cívico de comunicar para o povo e para o mundo os ideais de grandeza e transformação social do Partido Comunista, enquanto também referendavam influências no uso de tipografia, cores e ilustrações que propunham os artistas do Futurismo italiano, como Marinetti e Depero, e o dadaísmo de Jean Arp.
Em diversos princípios alinhavam-se a Vkhutemas e a Bauhaus, como a fusão de técnicas artesanais e populares com a alta tecnologia fabril e o modo com que sua produção gráfica e artística consumiam as influências dos movimentos avant-garde. A Bauhaus formou arquitetos, designers, artistas e especialistas para a nova indústria da República de Weimar. No campo tipográfico, os experimentos com letras geometrizadas na Bauhaus, especialmente o “alfabeto universal” de Herbert Bayer, foi importante para a criação do estilo grotesco geométrico, visto em fontes como a Futura (Paul Renner), Erbar (Jakob Erbar) e Kabel (Rudolf Köch). Além das fontes em si, a consolidação da nova tipografia de Jan Tschichold também vem na esteira das transformações no contexto da Bauhaus.
No entanto, a década de 1920 testemunhou a ascensão totalitária de Joseph Stalin e Adolf Hitler em seus respectivos estados. Eu sei que colocar esses nomes lado a lado atiça a mente da direita reacionária, mas nesta casa nós respeitamos a história e passamos longe de colocar nazismo e comunismo no mesmo espectro político. De similares, temos apenas os efeitos nefastos de líderes populistas que parasitam o sistema para seus fins pessoais e afrontam tudo que parece diferente e subversivo, como a produção gráfica e artística que os egressos da Bauhaus e Vkhutemas tornaram-se com o tempo. Não é novidade o horror que Hitler tinha para a arte moderna, tratando-a como obras de “mentes degeneradas”. Na visão utópica do arquiteto nazista Albert Speer, Berlim seria o berço de um novo renascimento artístico voltado ao heroísmo e culto à raça ariana.
O grande incômodo de Stalin era com o que chamava de “subjetivismo”, a expressão artística que não tinha um discurso palatável para o cidadão soviético comum e apenas “alimentava o ego” de uma “burguesia decadente”. Dessa forma, desde o momento em que sucedeu Lênin como Secretário Geral, o georgiano consolidou sua influência entre as instituições soviéticas para sufocar a produção artística que não atendesse ao que, posteriormente, foi chamado de “realismo socialista”. Com o fechamento da Vkhutemas em 1930, o cerco foi fechado, enfim, em abril de 1932, quando Stalin promulgou decreto “sobre a reestruturação das organizações literário-artísticas”, reordenando as uniões de classe e determinando o realismo socialista como doutrina a ser seguida para toda a produção literária e artística.
No território alemão, o ano de 1932 presenciou um caos político. Com a economia em recessão graças à crise de 1929, Hitler chegou ao segundo turno das eleições presidenciais e, à medida que o NSDAP conquistava mais assentos no Reichstag e o seu partido mostrava-se cada vez mais beligerante. A violência política acirra-se em junho, com a suspensão do banimento das milícias do partido nazista, as SS (Schutzstaffel) e SA (Sturmabteilung). O partido conquistou a liderança do parlamento em agosto, e em novembro começaram as negociações que tornaram Hitler chanceler no ano seguinte. Ainda em 1932, a Bauhaus, constantemente perseguida pelo partido sob a acusação de promover bolchevismo cultural (alcunha que nomeia o famoso manifesto de Paul Renner), foi obrigada a mudar-se de Dessau após o NSDAP assumir o controle da cidade, estabelecendo-se em Berlim até seu completo fechamento em 1933.
A situação de censura e constante vigilância consolidada após 1932 forçou centenas de artistas, designers e arquitetos a buscar refúgio em outros países, levando consigo as fundações do que popularizou-se nos anos 1950, com o apaziguar do mundo após a Segunda Guerra Mundial, como o Estilo Tipográfico Internacional. Também chamado de “Estilo Suíço”, ele evoca a ênfase nas tipografias grotescas dispostas em grids matematicamente precisos, mas com o dinamismo proposto na Nova Tipografia de Tschichold, contrastando com ilustrações simples e abstratas, paletas limitadas de cores e o uso de fotografias e composições com colagens. Com o discurso de “neutralidade”, até os anos 1980, o Estilo Suíço, baseado nas diretrizes do construtivismo russo, esteve presente na comunicação corporativa das grandes empresas e conglomerados multinacionais, na produção de peças gráficas como cartazes, relatórios, periódicos, formulários e peças de propaganda.
O Estilo Internacional foi quase sinônimo de design gráfico até os anos 1990, pautando o processo criativo de dezenas de agências, o currículo de vários cursos superiores de desenho industrial e a “neutralidade” do mundo pós-segunda guerra. Embora a passagem contínua e progressiva para uma estética modernista iniciada nos anos 1910 fosse inevitável, ao custo de centenas de artistas que precisaram abrir mão de suas terras natais para continuarem vivos ou que morreram nas mãos de regimes totalitários, os eventos de 1932 simbolizaram essa passagem e semearam em diversos lugares a linguagem visual predominante do mundo polarizado pela Guerra Fria.
Recomendações
🎧 Podcast: Polígono #1, com Rogério Lionzo e Rafael Bessa conduzindo a conversa sobre a autoria no design.
🎥 Vídeo: Bauhaus em 7 minutos: o movimento revolucionário do design explicado (legendas em português), um vídeo do Curious Muse sobre a escola alemã de artes e ofícios.
🔗 Link: Typeroom, artigo especial sobre a produção gráfica do designer suíço Emil Ruder.
🇧🇷 Fonte brazuca: Modet, de Matheus Fragoso.
Nota do editor
Papo reto, jogo rápido: a lojinha do Tipo Aquilo fecha para 2023 nessa semana, mas não nessa edição. A gente ainda se vê na quinta. ;)
Escrito em 100575.59