Tipo Aquilo #55 – O alfabeto cirílico
Na virada de 1980 para 1981, ainda não existia o Twitter para as pessoas discutirem se a década já tinha virado ou não. Se existisse, teria algum tweet solto no meio dessa discussão tosca tentando falar de dois eventos importantes daqueles 31 de dezembro de 1980: a morte do Marshall McLuhan e a ascensão de São Cirilo e São Metódio a co-patronos da Europa. O papado de João Paulo II, segundo maior do catolicismo, começara há apenas dois anos, e esse gesto seria um de vários acenos do líder católico ao leste europeu, região em que teve maior atuação.
Para o cristianismo, Constantino (nome de batismo de Cirilo) e Metódio foram importantes para a evangelização dos povos eslavos do Império Bizantino, e são tão reverenciados quanto os apóstolos na igreja ortodoxa. Os irmãos missionários desenvolveram o primeiro alfabeto dos povos eslavos, e a herança cultural deixada pelos dois — especialmente Cirilo, o mais erudito — sobrevive como uma escrita oficial em nove países e é usada por mais de 250 milhões de pessoas na região da Eurásia em dezenas de línguas eslavas, túrquicas e centro-asiáticas. Hoje o Tipo Aquilo conta a história do alfabeto russo cirílico.
É comum que o alfabeto cirílico seja chamado de “russo”, já que é o país mais proeminente da geopolítica a usá-lo. Contudo, a origem do alfabeto cirílico é o primeiro Império Búlgaro, quando alguns monges foram convocados no final do séc. IX para produzir uma nova escrita para os povos eslavos. Eles tinham como ponto de partida o alfabeto glagolítico, criado por Cirilo algumas décadas antes para representar textualmente a língua eslava eclesiástica. Os irmãos monges haviam sido enviados para a Morávia para evangelizar a região; contudo, pela dificuldade de usar os alfabetos romano e grego para as línguas eslavas, eles divisaram uma nova forma de escrita baseada no grego uncial.
O alfabeto glagolítico teve uma vida curta: os irmãos traduziram textos religiosos para a nova escrita até a morte de ambos em 885. No mesmo ano, o Papa Estêvão V restringiu a produção e disseminação de textos religiosos em outras línguas além do latim e do grego. Seus discípulos foram expulsos da Morávia e perseguidos por um ano até serem acolhidos pelo czar Bóris I da Bulgária, que manteve o alfabeto glagolítico a salvo da Igreja Católica Ocidental. Seu filho e futuro czar Simeão I, requisitou que eles criassem uma nova escrita para o império. Novamente o grego uncial foi usado como referência para essa nova escrita; em 893, as letras criadas pelos monges da Escola Literária de Preslav tornaram-se a escrita oficial da Bulgária e da Igreja Ortodoxa Búlgara.
As 43 letras do alfabeto cirílico tornavam-no o mais rico dos sistemas de escrita usados na Europa, representando adequadamente os fonemas usados nas línguas eslavas. Algumas formas usadas no alfabeto grego uncial foram preservadas; já para os sons que este não era capaz de representar, foram criadas combinações de letras gregas com ligaduras, ou novas letras inspiradas na escrita glagolítica. O resultado foi um alfabeto que ganhou tanta adesão para o uso em livros e registros religiosos da Igreja Ortodoxa que ele resistiu até mesmo à queda do primeiro Império Húngaro contra os bizantinos, tornando-se uma escrita comum entre várias línguas de povos do leste europeu que tinham Constantinopla como centro religioso.
A expansão do alfabeto cirílico para o norte do Mar Negro teve como principal agente o príncipe Vladimir I de Kyiv. Após uma série de disputas familiares pelo controle do Rus de Kyiv (que compreendia a Ucrânia e a Rússia Europeia), dignas de alguma série épica cheia de sangue e pouco pudor, assumiu o trono ora pertencente a seu pai, Sviatoslav I. Vladimir converteu-se ao cristianismo ortodoxo em 988 para fortalecer os laços comerciais com o Império Bizantino e reafirmar seu reinado. A Igreja Ortodoxa espalhou-se pelo Rus de Kyiv; com ela, o alfabeto cirílico tornou-se a escrita padrão e estabeleceu fronteiras parecidas com as atuais.
Após a tomada de Constantinopla pelos otomanos e a consequente queda do Império Bizantino, o legado cultural da Igreja Ortodoxa ficou dividido entre os impérios da Bulgária, Sérvia e o Rus de Kyiv, que futuramente se tornaria o Império Russo. O alfabeto cirílico passa a sofrer adaptações locais e sociais em cada local que é adotado. A leste, o cirílico também é adotado por algumas línguas túrquicas e persas da Ásia Central, como a Tajik e o Osseto. Já no séc. XX, a formação da União Soviética torna-se um novo momento de expansão e consolidação do uso do alfabeto cirílico nas repúblicas soviéticas, contando até com uma reforma ortográfica logo após a Revolução Russa de 1917, sob o governo provisório de Alexander Kerensky.
A tipografia também foi importante para a sobrevivência e expansão do alfabeto cirílico no leste europeu. Os primeiros tipos gravados com letras desse alfabeto foram gravados por Rudolf Bosdorf e impressos por Schweipolt Fiol, alemão estabelecido na Polônia, impressor do primeiro livro impresso com caracteres cirílicos, Oktoich (Octoecos). Francysk Skaryna, impressor nascido no Ducado da Lituânia, foi o primeiro a imprimir a Bíblia usando caracteres cirílicos, entre 1517 e 1519. Ivan Fyodorov foi o primeiro impressor conhecido no Rus, fundador do Pátio de Impressão de Moscou a pedido do Czar Ivan IV. Em 1564, junto com o ajudante Piotr Mstislavets e o gravador Vassiuk Nikiforov, produziram duas mil cópias de um volume com atos dos apóstolos do Novo Testamento, o primeiro livro impresso na Rússia, também com caracteres cirílicos.
Até o começo do séc. XVIII, as letras cirílicas tinham desenhos bem únicos, que ainda se relacionavam com as gregas unciais, mas tinham um estilo bem reconhecível, chamado poluustav. Esse estilo era usado tanto em livros religiosos quanto em publicações seculares. Se hoje os caracteres cirílicos têm formas que, de alguma forma, relacionam-se com o alfabeto latino, essa mudança deve-se às reformas trazidas pelo czar Pedro I, último czar antes da formação do Império Russo. Pedro tinha a intenção de tornar a cultura russa mais próxima do restante da Europa, num afã de “modernizar” o Czarado Russo. As vestimentas da corte, a arquitetura, pintura e também a tipografia passaram a imitar estilos dos grandes centros europeus. O czar restringiu o uso do poluustav para textos religiosos, e introduziu uma reforma tipográfica que mudou as formas das letras para as demais impressões.
Pedro, inspirado pelo trabalho de Luís XIV com as Romanas do Rei, envolveu-se pessoalmente no desenvolvimento dessas novas letras, produzidas no Pátio de Impressão de Moscou com o auxílio de máquinas e impressores de Amsterdã. Essa influência neerlandesa aproximou os caracteres cirílicos das convenções tipográficas, como métricas verticais, formas de serifas e formas redondas, vigentes há mais de 200 anos no oeste europeu. Assim, em 1710, foram instituídos os tipos civis, a primeira de várias reformas na escrita cirílica que a tornaria mais familiar com o alfabeto latino. A quantidade de letras foi reduzida, assim como o uso de diacríticos, e foram adotados os sinais de pontuação e números arábicos que já eram comuns no oeste. Desde então, o estilo dos caracteres cirílicos passou a acompanhar a evolução das letras do alfabeto latino.
O caminho de volta também aconteceu, durante os primeiros anos da União Soviética. Com a intenção de formar artistas, arquitetos e projetistas altamente qualificados para a indústria, foi criada em 1920 a escola superior de arte Vkhutemas. A escola tinha a visão de fazer da arte um instrumento de educação e transformação social; assim, a produção gráfica da Vkhutemas tinha um grande apelo popular, para a comunicação de massa. Os professores da escola, como El Lissitsky e Alexander Rodchenko, ajudaram a criar o estilo de letras quadradas e pesadas que viraram um cliché do alfabeto cirílico e da própria União Soviética. Por meio da troca constante de influências entre a Vkhutemas e a Bauhaus, esse estilo tipográfico também seria visto na Alemanha dos anos 1920 e, depois, no restante da Europa.
Foi um caminho natural para que, com a estatização pesada da União Soviética, ela centralizasse a produção de tipos móveis em um órgão, o Polygraphmash (eu falei dele aqui, ainda no primeiro ano do Tipo Aquilo). Além de produzir máquinas para oficinas gráficas, o Polygraphmash foi responsável pela produção tipográfica da URSS, já que o bloco era isolado comercialmente pela Guerra Fria. Contudo, o parque gráfico da Polygraphmash, que produzia quase todos os livros e impressos do bloco, não conseguiu acompanhar a evolução tecnologia do outro lado da Cortina de Ferro. Após a dissolução da União Soviética, o legado da Polygraphmash, com a mais completa coleção de tipografia cirílica do mundo, passou para a ParaType, referência mundial em produção tipográfica multi-escrita e destino de muitos dos designers e funcionários da antiga estatal soviética.
O fim da União Soviética, para muitos, parecia um caminho irreversível de “ocidentalização” das ex-repúblicas soviéticas e suas aliadas. Com exceção do Cazaquistão, Uzbequistão e Mongólia, o alfabeto cirílico permaneceu como escrita oficial desses países e é usado diariamente por milhões de indivíduos de nações que compartilham uma rica história em comum. O legado criado por São Cirilo e São Metódio resistiu à ascensão e queda de vários impérios, e ainda estará presente no dia-a-dia de várias futuras gerações de eslavos, túrquicos e outros povos próximos ao Mar Negro e à encruzilhada do mundo.
Recomendações:
🎧 Podcast: Fronteiras Invisíveis do Futebol #4 e [#5], com a história da Ucrânia desde os povos do Rus de Kyiv ao Euromaidan e seus efeitos no leste europeu.
🎥 Vídeo: O Alfabeto Cirílico | Alomorfe um resumo da história do alfabeto cirílico e a pronúncia de suas letras.
🔗 Link: Cyrillicsly, (em inglês) o blog e workshop de type design cirílico das designers Maria Doreuli e Krista Radoeva, imperdível para quem desenha caracteres desse alfabeto.
🇧🇷 Fonte brazuca: Oscine, de Bruno Maag, Rafael Saraiva e Deiverson Ribeiro.
Nota do editor:
Se tem uma edição que realmente precisa de uma nota do editor, é essa de hoje. Eu sei que vocês curtem uma onda escapista no Tipo Aquilo, de ler uma história para esquecer do mundo por um tempo. Eu também gosto, mas tento equilibrar essa tendência com um pouco de visão crítica também. Acaba inevitável que um momento histórico do tamanho de uma invasão da Rússia à Ucrânia não apareça aqui, e com um tema que acaba juntando os dois países pela história em comum.
Apesar do governo russo ter perdido toda a razão ao decidir por um ataque criminoso, não acho justos os exemplos de russofobia que apareceram mundo afora, como a suspensão (já retirada) de aulas sobre Dostoiévski na Universidade de Milão. Não é a melhor forma de se solidarizar pelo povo ucraniano (que merece solidariedade, tendo que se esconder das forças russas e rezar pra não encontrar nenhum neonazista pelo caminho) ou demonstrar virtuosismo, e só nesse texto vocês viram um pedaço do quanto a história e cultura russa são ricas e importantes.
No mais, desejo a vocês que busquem informação, não limitem-se a uma única fonte e sejam mais céticos sobre tudo dessa guerra. Antes dela, a gente vive uma guerra de desinformação há alguns anos, e quanto menos nos prendemos a discursos, mais a gente vence essa guerra contra as notícias falsas.
Escrito em 99812.47
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Este episódio foi escrito por Cadu Carvalho, que também produz essa newsletter e adora estrogonofe. Debora Sales faz a revisão e faz ótimos drinques com vodka.