Tipo Aquilo #57 – Ariano, Borges, Samico e Armoribats
Um olhar tipográfico sobre o Movimento Armorial
Viver com uma pernambucana me garante uma quantidade periódica de risadas (respeitosas) sobre a grandiosidade de tudo que vem do estado e suas maiores cidades. Ninguém que conversa com um pernambucano passa incólume pela história da avenida em linha reta mais longa da América Latina ou pelo maior bloco de carnaval de rua do Brasil. Essa coisa arraigada, com ares de fantástica e mágica, tem raízes profundas: a antiga capitania de Pernambuco já foi a mais rica do Brasil, pertenceu a outro reino por um breve tempo, foi até um país independente e permaneceu como um grande polo de produção artística e cultural até hoje. Se isso não é uma história incrível de se contar, não sei o que mais pode ser.
Na década de 1970, um grupo de artistas e pensadores também tinha isso em mente; a cultura sertaneja, que parecia perdida e largada no interior, tinha uma identidade tão única e marcante que valia a pena ser revista com um novo olhar, com a intenção de fazer dela uma arte erudita, bem quista pelas pessoas, que fizesse frente à cultura estrangeira que parecia dominar o país. Esse afã de colocar no palco as manifestações populares e a tradição local, transformando-os em objetos de admiração, motivou o nascimento de um dos mais importantes movimentos culturais da história do Brasil. Encabeçado por Ariano Suassuna, nem o futuro esperava pelo que viria com o Movimento Armorial.
É fato que Suassuna é bastante conhecido Brasil afora graças às dezenas de reprises do filme “O Auto da Compadecida” de Guel Arraes (não tô reclamando não, Globo, reprisa a minissérie também, e já emenda “A Pedra do Reino” em seguida). O intelectual paraibano foi autor de várias obras igualmente fantásticas, como o Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta e O Santo e a Porca (também presente na adaptação de Arraes), mas falar de Ariano apenas como dramaturgo é um pecado. Muito das referências visuais que temos do Nordeste deve-se ao Movimento Armorial, uma iniciativa de Ariano dedicada a enaltecer a cultura do agreste, criando uma arte erudita em torno das histórias, do folclore e do modo de viver da população sertaneja. “Uma Arte brasileira erudita a partir das raízes populares da nossa Cultura”, nas palavras de seu próprio idealizador.
Como tudo que permanece, o Movimento Armorial não veio do nada; intelectuais como Gilberto Freyre, em seu Manifesto Regionalista de 1926, já propunham a necessidade de resgatar a riqueza cultural do agreste e conciliá-la com a cultura europeia, tida como ideal de erudição desde a colonização do Brasil e preferida pelos meios de comunicação em massa. O manifesto de Freyre somava-se a outras iniciativas de resgate da cultura brasileira sob o guarda-chuva do modernismo da década de 1920. Ariano, por sua vez, tinha a experiência de trabalho com o Gráfico Amador, que buscava na cultura pernambucana as referências gráficas para seus experimentos (tipo)gráficos, e proporcionou contato frequente com pessoas do gabarito de João Cabral de Melo Neto e Aloísio Magalhães.
Ariano também conhecia a distância além do mero espaço físico que separava o nordeste litorâneo do nordeste interiorano, onde tiveram refúgio o mamulengo, maracatu, reisado e outras manifestações populares resgatadas pelo Armorial. Os elementos marcantes, como as bandeiras, estandartes, os seres fantásticos vindos de uma mistura de histórias cristãs, indígenas e africanas, as cores primárias e vibrantes, o sol inclemente e a chuva redentora que marcavam o passar do tempo, animais e objetos do cotidiano, têm base num arcaísmo alimentado por essa distância que isolava a população sertaneja e mantinha relações sociais e políticas próximas às do feudalismo. Com o concerto “Três Séculos de Música Nordestina: do Barroco ao Armorial”, em 18 de outubro de 1970, e uma exposição de gravura, pintura e escultura, Suassuna inaugurava uma valorização dessa cultura popular que persiste até hoje.
Apesar de ter essa data marcada, a arte Armorial já vinha sendo pintada, modelada, tecida, cantada e gravada por artistas que comungavam desse sentimento de resgate cultural. São vários nomes que merecem destaque além do próprio Ariano com seus romances e peças teatrais, como o ceramista Francisco Brennand e sua esposa poeta Deborah Brennand, o Quinteto Armorial, o artista plástico Miguel dos Santos, o poeta Patativa do Assaré, entre outros ilustres. Para manter o foco na tipografia e design gráfico, essa edição dá destaque a dois expoentes do Armorial que são referências para a gravura brasileira: J. Borges e Gilvan Samico.
Começando por J. Borges, que se você tem amigos influentes (e/ou hipsters), já deve tê-los ouvido falar “eu tenho um J. Borges em casa”, com toda a pompa que a metonímia evoca. Patrimônio vivo de Pernambuco e autor de gravuras expostas em grandes galerias mundo afora, José Francisco Borges fez de tudo um pouco antes de perder a vergonha e enveredar para as artes, quando decidiu escrever cordel. Em 1964, aos 29 anos, lançou seu primeiro cordel, “O Encontro de Dois Vaqueiros no Sertão de Petrolina”, que vendeu milhares de exemplares e deu ânimo para que ele seguisse em frente. No entanto, para seu segundo cordel, Borges precisou fazer por conta própria as ilustrações, talhando uma igreja num pedaço de imburana e entintando a matriz da capa de “O Verdadeiro Aviso de Frei Damião Sobre os Castigos que Vêm”, lançado em 1965.
Borges escreveu outros cordeis, como “A Mulher que Botou o Diabo Numa Garrafa”, “A Chegada da Prostituta no Céu” e outros trezentos folhetins, mas foi justamente o trabalho de xilogravura que tornou-lhe ilustre. Suas gravuras ilustravam elementos do ideário local em seus livretos, como Lampião, vaqueiros, diabos, padres, a natureza e as festas de São João. Na década de 1970, passou a receber encomendas de versões ampliadas de suas gravuras, e posteriormente, passou a adicionar cores em seu processo de criação e impressão. As gravuras e cordeis de Borges chegaram então até Suassuna, que passa a apadrinhá-lo e considerá-lo “o maior gravador popular do Brasil”. Os elementos da vida sertaneja tornam-se cult em museus de todo o mundo, tendo aparecido em capas de livros de Eduardo Galeano e José Saramago. De forma humilde, Borges até hoje imprime em seu ateliê, em Bezerros, onde vive de sua obra.
A assinatura de suas obras na parte inferior, feita com um alfabeto próprio, tornou-se uma marca de J. Borges, herdada pelo filho gravador J. Miguel. Além de gravador, Borges também tem um pé na tipografia, tendo composto os textos de seus cordeis em uma máquina tipográfica que o acompanha até hoje. A renovação do parque gráfico das cidades maiores, marcada pela chegada das máquinas de linotipo e, posteriormente, as impressoras offset, empurrou várias impressoras antigas para o interior, onde ajudaram a formar pequenas gráficas locais e registrar a cultura interiorana. Apesar de ter largado a escola cedo, J. Borges tinha vocação para aprender coisas novas e se aperfeiçoar, sendo autodidata como escritor, impressor, e uma referência mundial para a xilogravura.
Gilvan Samico é outro ilustre expoente da xilogravura, reconhecido internacionalmente e exposto em diversas galerias. No entanto, a história de vida dele é quase oposta à de J. Borges; nascido em Recife, aprendeu pintura por conta própria e juntou-se a outros artistas locais na Sociedade de Arte Moderna de Recife, em 1948, onde ajuda a fomentar uma renovação da arte pernambucana. Depois, estuda gravura com suas maiores referências da época, Lívio Abramo e Oswaldo Goeldi, desenvolvendo um grande apuro técnico na confecção das matrizes e impressão das peças. Teve também a oportunidade de estudar na Europa e, mais tarde, lecionar gravura na UFPB.
Os caminhos de Samico e Ariano se cruzam em 1971, quando é feito o convite para que o gravador junte-se ao Movimento Armorial. Suas peças também ilustravam o ideário sertanejo, com elementos da natureza, da religião e do cotidiano, dotados de aspectos místicos e mágicos. Samico segue um caminho próprio como artista, inspirado na literatura de cordel, produzindo gravuras muito ricas e detalhadas e com uso preciso de cores vibrantes, presentes nas manifestações culturais populares do sertão. Ao contrário da rapidez de J. Borges, Samico dedica-se com o passar do tempo a produzir menos peças por mais tempo, a fim de refinar o manuseio da goiva e experimentar outras formas de cortes até achar uma textura ideal. Tanto apuro faz com que, no circuito artístico, ele seja considerado por vários críticos o maior xilogravurista do país.
Os caminhos do Armorial e da tipografia nunca deixaram de se cruzar; Suassuna, além de escritor, produzia iluminogravuras que representavam a poética de seu movimento e continham letras desenhadas pelo autor que tinham como origem os símbolos usados nos ferros de marcar gado, em que cada detalhe da composição tinha um significado especial. Essas letras inspiradas em marcação de animais, que Ariano chamava de “Alfabeto Sertanejo”, tornaram-se uma referência tipográfica importante para o movimento. O fascínio pelo ferro de marcar acompanhou-o a vida toda, chegando a usar o ferro dos Suassunas, herdado de seu pai, para assinar suas obras. Posteriormente, na década de 1990, quando comandava a Secretaria de Cultura de Pernambuco, Ariano foi supervisor de Ricardo Gouveia de Melo e Giovanna Caldas na produção de uma versão digital da Tipografia Armorial.
Além das letras de Ariano, o trabalho de levantamento iconográfico do prof. Leonardo Buggy deu origem ao registro em formato vetorial de vários elementos comuns na produção gráfica do Movimento Armorial. O trabalho teve como resultado dois conjuntos de 52 ícones consolidados em duas fontes dingbats, possibilitando o uso desses elementos em formato digital sem perda de informação; outro fruto desse trabalho foi o maravilhoso livro Armoribats (2022, Editora Serifa Fina), organizado por Buggy, que destrincha cada ícone com seu significado e importância para o movimento. No primeiro set, Buggy toma como influência a estética de cordel de J. Borges e as iluminuras de Suassuna; no segundo, o autor traz a perspectiva erudita de Samico e outros artistas plásticos.
O Armoribats é uma obra bem vinda, com acabamento impecável, e ideal para quem aprecia boa tipografia e/ou é fã do Movimento Armorial. Além dos dingbats feitos por Buggy, Gustavo Gusmão e Matheus Barbosa, também foi criada a Armordisplay, que revisita a Tipografia Armorial de Suassuna, simplificando seus traços, mas mantendo a essência da estética do ferro de marcar. Luciano Cardinali também explora o alfabeto sertanejo em sua fonte Nova Armorial. O cordel também é uma referência visual para outras fontes, como a Cordelia, de Erica Jung e Ricardo Marcin, e a Cordel, também de Buggy.
Entender o Armorial e seus artistas e pensadores ajuda a entender a imagem que o Brasil tem do Nordeste, e faz com que a região seja um foco de inspiração e admiração do país fora do eixo Rio-São Paulo. Se você pedir para um designer apontar uma referência visual dessa região, certamente ele falará do cordel, mesmo que o Armorial passe batido; só que o legado do Movimento Armorial vai além da produção artística. Ele está presente em toda vez que a gente olha para dentro e exalta o que a nossa cultura tem de única e especial, quando não se deixa que o belo venha apenas da grama do vizinho. Por mais discutível em certos aspectos que tenha sido a abordagem de Ariano, o Movimento Armorial tem uma importância inegável para a cultura brasileira; alguns dirão até que é a maior manifestação cultural nordestina em linha reta da América Latina. ;)
Para comprar:
🛒 Livro: Armoribats, organizado por Leonardo Buggy. Editora Serifa Fina.
Recomendações:
🎧 Podcast: Visual+Mente #178, com Leonardo Buggy, Almir Mirabeau e Ricardo Cunha Lima conversando sobre a produção do livro Armoribats.
🎥 Vídeo: No Reino de Samico, um curta-metragem que passeia pela história de Gilvan Samico, suas pinturas, o contato com a xilogravura e sua relação com a produção e mercado de arte.
🔗 Link: Estética Armorial, em que o prof. Eduardo Novais (que fez a finalização e geração das fontes do Armoribats) discorre sobre a origem da estética do Movimento Armorial.
🇧🇷 Fonte brazuca: J. Borges, de Bernardo Lapenda.
Escrito em 99914.04
Adoro xilogravura por conta dos cordéis. ♥
Fiquei bem interessada pelo curta indicado por você. Vou ver depois!
E cadê o final da newsletter com "escrita por Cadu e revisado por Deb - e uma gracinha adicional"? Hein, hein?