Tipo Aquilo #37 – O Gráfico Amador e a identidade no design
No começo do ano, eu listei alguns temas para o Tipo Aquilo baseados em coisas que eu quero conhecer mais e que eu consigo dissertar e alinhar com coisas do presente. O Gráfico Amador estava nesses temas, mas é complicado falar dele porque tem várias coisas legais que é possível falar usando o Gráfico Amador como pretexto.
Acabei escolhendo, a princípio, o tema de identidade no design, motivado pela última edição do Contraforma da Flavia Zimbardi, e o Tipo Entreletras #16, com Érico Lebedenco. Ambos tocaram num ponto importante, que é o resgate de uma identidade local para pesquisas e trabalhos mais diversos e interessantes. Os mãos sujas d’O Gráfico Amador, por exemplo, inspiraram-se na cultura gráfica feita no Nordeste para seus impressos, e produziram um conjunto de obras cuja manualidade e experimentalismo são impressionantes até hoje, tornando-se referência para novos designers gráficos e artistas.
A história d’O Gráfico Amador começou em Recife, na Rua Manoel de Carvalho, 423, quando Arthur Lício diz “Gastão, vamos imprimir este livro comprando um prelo manual que eu já vi, e que custa dez contos de réis”. O livro dessa história era um original de José Laurenio de Melo; os dez contos de réis, (estimo que fossem 10 mil cruzeiros) eram equivalentes a quase 10 mil reais hoje; e Gastão era o Gastão de Holanda, que junto com José Laurenio, Orlando da Costa Ferreira e Aloísio Magalhães, formaram em 1954 o quarteto de mãos-sujas da oficina de impressão. Sim, esse Aloísio, cujo nascimento é homenageado em todo dia 5 de novembro, o Dia do Designer.
O Gráfico Amador, durante sua breve existência, produziu livros e impressos com baixa tiragem de autores associados ao grupo, como Ariano Suassuna, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Mello Neto, que ensinou a José e Gastão o ofício de impressor tipográfico. Eles também produziram obras próprias, distribuídas entre cerca de 50 associados da impressão, que ajudavam a mantê-la funcionando. Pela limitação do maquinário e ferramentas disponíveis — um prelo, uma máquina impressora, algumas caixas de tipos e clichês —, os livros tinham tiragem de poucas dezenas de cópias.
Isso durou de 1954 a 1961, entre idas e vindas dos integrantes e a mudança da oficina para a Rua Amélia. Permitiram-se experimentar e combinar métodos diferentes de impressão, como linoleogravura, xilogravura e gravação de tipos próprios em madeira. Até 1961, quando houve a pretensão de transformar a private press em uma editora mais robusta, a Igarassu. No entanto, como cada um já caminhava por rumos próprios durante os sete anos que esteve em operação, Orlando foi voto vencido contra o fim da iniciativa.
O Gráfico Amador não foi a única oficina tipográfica de pequena escala do país, mesmo na década de 50. O concretismo era uma influência importante para o experimentalismo com tipografia no Brasil, como se via nos poemas dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos. A linguagem criada pelos quatro mãos-sujas (alcunha dada aos impressores, que sujavam a mão nas máquinas, em contraponto aos mãos-limpas, como Suassuna, que contribuíam intelectualmente para o grupo) possibilitou que Aloísio despontasse, em sua mudança para o Rio de Janeiro, como um dos maiores designers do modernismo brasileiro. Mesmo que não saiba, já deve ter visto várias marcas e símbolos criados por ele. Os demais também foram muito importantes para a arte gráfica no Brasil.
Destrancar o assunto d’O Gráfico Amador pode ser feito por várias chaves. Por exemplo, a da produção artística e intelectual fora dos ditos centros econômicos. Para o designer brasileiro, é importante ter nas referências visuais mais do que a produção feita por designers e artistas clássicos; como um povo, nós temos uma capacidade de inovar ao digerir influências de fora, misturar com nosso contexto, necessidades e valores e criar algo novo e possivelmente mais interessante. O mesmo também vale pra quando falamos do nosso universo de design fora do eixo Rio/São Paulo. Vale a pena mencionar, por exemplo, a importância de Recife, Caruaru e Fortaleza como pólos de produção acadêmica em Tipografia no Brasil.
Por fim, também podemos ver O Gráfico Amador com a chave do independentismo. O antigo ateliê pernambucano foi referência e inspiração para diversas iniciativas de publicação e produção gráfica independente no Brasil, como é o caso da Oficina Tipográfica São Paulo, de Claudio Rocha e Marcos Mello. A independência na produção gráfica é um meio (e mensagem) de expressar identidade, de apanhar o que existe de tecnologia de reprodução (após a virada do século, com a popularização dos computadores) e usar para algo que a indústria não tem interesse particular ou previsão de retorno financeiro. Ainda que, quando falamos do quarteto de mãos-sujas do ateliê pernambucano, falamos de quatro estudantes de direito que curtiam discutir James Joyce e fazer teatro, o espírito d’O Gráfico Amador está em todo jovem que lança sua zine feita em xerox ou começa um podcast com os amigos, ou quando um designer olha ao redor e transforma seu cotidiano em um produto singular.
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Recomendações:
🎧 Podcast: Anticast #147, com Ivan Mizanzuk, Ricardo Cunha Lima e Almir Mirabeau entrevistando o pesquisador Guilherme Cunha Lima sobre O Gráfico Amador e a influência no design modernista brasileiro.
🎥 Vídeo: O Gráfico Amador, que registra a exposição feita na Caixa Cultural São Paulo em 2017 e conta a história do grupo de impressores.
🔗 Link: LPG-UFPE, o Laboratório de Práticas Gráficas do Departamento de Design da UFPE, que reúne o acervo tipográfico d’O Gráfico Amador.
🇧🇷 Fonte brazuca: Bork, de Luisa Leitenperger.
Escrito em 98904