Reprint #2 – Pavimentando travessias, de Arthur J. Silva
Como criar um mundo possível no design e na sociedade
No ano passado, um dos texto que eu mais gostei de lançar por aqui foi aquele sobre Cristina de Pisano e caligrafia medieval. A vida dela ajuda a ilustrar a mudança de ares que vinha com a passagem para a Idade Moderna, em que os papéis de gêneros estabelecidos durante a Idade Média começavam a ser rasgados. Cristina viu-se assumindo posições sociais ocupadas majoritariamente por homens para sustentar a família, tendo escolhido não casar-se novamente, e deixou essa inconformidade com os papéis de gênero da época em várias obras. O Livro de Transformação da Fortuna, por exemplo, é um poema manuscrito de 1403 cujo narrador, enquanto mulher, vê seu marido morrer num naufrágio e deixa-lo com uma filha para criar. Ao longo de mais de 23 mil versos, vê Fortuna tocando sua constituição física e transformando-a num corpo masculino, enfim representando no exterior como sentia-se em seu interior.
Para os dias atuais, o poema de Cristina é considerado uma pré-literatura trans, uma bibliografia que tem suas origens no poema Metamorfoses, do poeta romano Ovídio, escrito em 8 a.C. e que narra a transformação e a fluidez da matéria viva como poderosos agentes das histórias da mitologia greco-romana. Talvez o hinduísmo seja uma fonte ainda mais antiga, trazendo Shiva, arqui-inimigue de Shurato deus da transformação, representade simultaneamente como mulher e homem. Algumas histórias percorreram em sussurros a Idade Média, como a Novela de Silence, escrita no séc. XIII e atribuída a Heldris de Cornwall, que conta a história de uma criança nascida mulher e criada como garoto para que pudesse herdar as posses de seus pais e juntar-se à corte inglesa como cavaleiro. Já no séc. XX, Orlando de Virginia Woolf, lançado em 1928, é tido como um dos primeiros romances transgênero em inglês.
Nos últimos anos, a literatura trans viu um aumento gigante na quantidade de obras publicadas e de autores, encorajados a mostrar-se pro mundo pelos exemplos de vidas de seus pares e por grandes histórias protagonizadas por pessoas trans, e encorajando outras pessoas a serem quem são de verdade. Cá no nosso mundinho da tipografia brasileira, Arthur é uma dessas pessoas, assim como b. benedicto e L Leitenperger. Como eu tenho a tradição de indicar fontes de type designers brasileiros em toda edição regular do Tipo Aquilo, essa não é a primeira vez que ele aparece aqui. Agora, Arthur J. Silva aparece no Reprint com um texto inspirador publicado no The Ugly Lab sobre sua experiência de “sair do armário” tanto no contexto da sociedade quanto na carreira de designer. Arthur ilustra, já no título, a importância de que a sua experiência e a de outras pessoas trans seja compartilhada: “Criar mais um mundo possível, pavimentar a travessia de quem virá depois de mim”.
Lá na Revista Recorte, já tive a oportunidade de discorrer sobre como a presença de um ambiente racial e sexualmente mais diverso tende a produzir estúdios, agências e profissionais mais criativos e conscientes do espírito de seu tempo, inclusive com exemplos de fontes que transcendem estereótipos de gênero. Arthur compõe um universo de cerca de 19 milhões de pessoas no Brasil que declara-se publicamente LGBTQIAPN+ (Unesp/USP, 2022); esse número provavelmente é maior, já que apenas metade dessa população declara-se publicamente (TODXS Brasil, 2020). Compartilhar a experiência de uma travessia ajuda e inspira outras pessoas que precisam fazê-la, tornando a transformação do toque de Fortuna menos penosa e mais inspiradora.
Arthur J. Silva é mineiro, transmasculino não-binário e designer gráfico e de tipos, tendo criado fontes como Guarita Serif e Catullo, e projetos editoriais voltados ao público LGBTQIAPN+. Trabalha atualmente na Editora Biruta.
Nota do editor
Duas notinhas rápidas. A primeira é que o Rodrigo Ghedin, do Manual do Usuário, trouxe de volta o Diretório de Newsletters Brasileiras, uma referência de periódicos eletrônicos produzidos em língua portuguesa para o público nacional. O Rodrigo fez uma revisão minuciosa da primeira versão, mantendo newsletters com produção ativa e independente. Se você gosta desse negócio de receber conteúdo de qualidade em sua caixa de e-mail regularmente, visite o diretório e confira mais de cem periódicos de todo gênero que você pensar.
A segunda é que, no dia 3 de março de 2024, aconteceu a primeira Marcha Transmasculina do Brasil, com milhares de pessoas, dentre cis e trans, defendendo direitos básicos da população trans no Brasil. Esse texto foi escrito no final de janeiro desse ano, sem que eu tivesse conhecimento da Marcha. Acabou que ele sair agora, pouco depois do evento, foi uma feliz coincidência.
O Arthur esteve presente e me mandou algumas fotos que achei por bem estar aqui; algumas, em especial, com a minha Grotesca Reforma em uso. Designers de tipos sempre buscam sustentar-se com suas fontes, vendendo-as ou distribuindo conforme a possibilidade; só que, além de sustento, vários ficam felizes ao ver suas fontes usadas em aplicações legais e causas que valem a pena. Esse foi um caso. (=