Tipo Aquilo #71 – Escribas, escritoras e Cristina
Um olhar de escrita e gênero sobre a vida e obra de Cristina de Pisano
“O Nome da Rosa” é daqueles filmes que, um dia, espero ter paciência para ler o livro de origem, escrito por Umberto Eco. Além de um belo filme, é daquelas obras que colocam o espectador num tempo em que a igreja era o único caminho para alguém que quisesse estudar e fazer algo mais da vida do que carpir ou guerrear, com toda a chatice dos ritos católicos no meio. Se você viu o filme, já sabe que eu quero falar da cena do escritório e dezenas de escribas caligrafando, fazendo iluminuras e tecendo volumes, fólio por fólio. Se você tiver a sorte de visitar a Abadia de Mont Saint-Michel, no norte da França, pode visitar esse salão em que praticava-se, além da escrita, outras artes voltadas à confecção de livros, como a produção de papel, tintas, penas e encadernamento.
A imagem do escritório do filme, cheio de monges e frades homens, faz a gente pensar que o universo da escrita medieval era excluivamente masculino. Só que sempre houve mãos femininas, mesmo que discretas, empunhando penas e tecendo belas letras. Se você não lê o Contraforma, da Flavia Zim, tem perdido uma sequência incrível de textos sobre mulheres na tipografia contemporânea e as fontes que elas têm produzido. Hoje, trago a história da primeira escritora profissional da Europa — tanto autora quanto calígrafa —, aprofundando em curiosidades da atividade de caligrafia na baixa Idade Média e comentando sobre as circunstâncias que permitem tecer algumas palavras de reverência à poetisa Cristina de Pisano.
A vida de Cristina, ao menos para a história do ocidente, é um de vários pequenos eventos que ilustram a passagem do mundo da Idade Média para a Moderna. Ela nasceu em setembro de 1363, na antiga República de Veneza. Seu pai, Tomás de Pisano, era astrônomo (ou astrólogo, nessa época não tinha diferença) e conselheiro da república, até aceitar um convite do Rei Carlos V da França para ser seu astrônomo real, alquimista e médico em 1368. Com isso, Cristina e sua mãe mudaram-se também para Paris. Não se sabe a identidade de sua mãe e pouco é sabido sobre sua infância, além de que ela cresceu no seio da corte francesa e tinha acesso a várias de suas bibliotecas. Aos 17 anos, Cristina casou-se com Etienne de Castel, secretário da chancelaria real, com quem teve três filhos. Etienne não opôs-se aos estudos de Cristina, permitindo suas primeiras aventuras na escrita.
Embora a vida de Cristina parecesse fortuita, em 1386, seu pai morreu deixando dívidas para a família. Em 1389, Etienne foi vitimado pela peste, e ela teve diversos problemas jurídicos para ter sua herança reconhecida. Com o pai e o esposo mortos, viu-se na dura situação de sustentar sozinha a mãe e suas três crianças. Um novo casamento com algum homem de posses era o caminho mais esperado para jovens viúvas em sua época; no entanto, apostou seu destino na vida literária, dedicando-se a escrever e produzir, inicialmente, volumes de poesias e histórias de amor. Alguns destes livros, que tinham seu envolvimento direto na própria escrita e na direção artística de ilustrações e miniaturas, eram dedicados a nobres e mecenas que circundavam a corte francesa, que garantiram sua segurança financeira.
“Mas Cadu, ela escreveu mesmo? Escrever não era coisa só de homens? Caligrafia não era coisa só da igreja? E o que quer dizer ‘miniatura’? CADU MIM AJUDA”
Calma, vamos por partes. Primeiro, sobre a escrita fora da igreja, um processo desencadeado pela formação das universidades que criou uma grande demanda por livros que a igreja sozinha não dava conta. Juízes, escrivões e outras figuras do direito medieval também passaram a redigir documentos oficiais por conta própria, tirando dos mosteiros o monopólio da escrita. A escrita blackletter, mais comprimida e modular do que os modelos caligráficos anteriores, mostrava uma secularização da produção literária, cada vez menos voltada para a própria igreja e mais para o conhecimento secular. A economia de papel que o uso da blackletter proporcionava fez com que a escrita fosse adotada como padrão em quase toda a Europa… exceto na Itália, que sempre torceu o nariz pra tudo que não era greco-romano.
Desde o séc. III, várias calígrafas notáveis destacavam-se nos impérios árabe, persa e chinês. Na Europa, os relatos do bispo Eusébio de Cesareia falam de freiras copistas desde as primeiras décadas da Igreja Católica, que abriram caminho para outras calígrafas famosas como Diemoth, Clara Hätzlerin e Jacomina Hondius. A vida de Cristina lembra a de outra mulher importante para a história francesa, a Condessa Mahaut de Artois, que também não casou-se após perder o primeiro marido e foi uma importante patrona para artistas locais. Também é longeva a autoria feminina de poesias e canções durante a Baixa Idade Média, em que, ao lado de Cristina, aparecem outras mulheres como Hildegarda de Bingen, Catarina de Sena e Margery Kempe.
Cristina representa uma convergência em vários desses caminhos que outras mulheres ajudaram a criar. Suas obras fizeram sucesso e permitiram que ela vivesse de sua própria produção artística. Além de autora, ela também era copista, tendo literalmente escrito vários livros que fez. Cristina também fazia a direção de arte das ilustrações de seus livros, orientando os artistas que criavam as miniaturas ao redor do texto. Ah sim, sobre miniaturas… você deve conhecer as iluminuras, ilustrações medievais ao redor dos textos, certo? Enquanto as miniaturas utilizavam pigmentos comuns, as iluminuras ostentavam tintas douradas que “iluminavam” as páginas. Ainda que os dois termos possam ser usados para a mesma coisa, tecnicamente, o uso do pigmento dourado diferencia ambos.
Durante a produção dos livros, os trechos tinham pequenas inscrições numeradas que identificavam cada copista; por exemplo, se um volume fosse manuscrito por oito escribas, cada uma era identificada de “Mão I” a “Mão VIII”. Algo que permite-nos afirmar que Cristina era mão de vários de seus livros é a presença de sua assinatura como “xpine de pizan”. Se vocês aventurarem-se pela paleografia, verão o uso constante de abreviaturas em documentos que exigem (muita) interpretação e contextualização. O “xp”, neste e em outros casos, é uma referência a Cristo: o “x” vem da letra grega “χ” (chi) e o “p” vem da letra “ρ” (ro). Em manuscritos de língua portuguesa, por exemplo, existiam abreviaturas como “bpõ” (bispo), “livº” (livro), “pmº” (primeiro) e outros que agilizavam a escrita. Assim, coisas relativas a Cristo ou que tinham nome derivado dele usavam a abreviatura “xp”, como a xpina… digo, Cristina.
No entanto, ao invés de preservar sua obra como bela, recatada e do lar, com o passar do tempo ela questiona o tratamento dado às mulheres na literatura e na sociedade medieval nas obras que escreveu em resposta ao “Romance da Rosa”, em que Jean de Meun retrata o feminino, segundo Cristina, como um mero objeto de sedução. Imbuída de mostrar a misoginia presente na representação feminina de Jean e outros autores medievais, ela escreve seus títulos mais célebres que dão início à Querela das Mulheres. “O Livro da Cidade das Damas” e “O Livro das Três Virtudes”, por exemplo, trazem uma utopia de uma cidade povoada apenas por mulheres, e como estas devem agir para que tornem-se tão virtuosas quanto as grandes mulheres da história, habitantes da cidade idílica criada por Cristina. A “Epístola ao Deus do Amor”, por sua vez, é uma crítica direta à misoginia presente na obra de Jean.
Ao longo de sua vida, Cristina escreveu vários textos ficcionais e não-ficcionais, em que narrou a vida de monarcas como o próprio Carlos V, e manuscritos como “O Livro da Transformação da Fortuna”, onde a narradora conta as mudanças que Fortuna impõe-lhe desde a tragédia da perda do marido até o momento em que ela torna-se o homem escritor dos versos do livro. Embora a transformação da obra tenha um cunho autobiográfico, referindo-se a como as atividades de escrita teórica e política feitas por Cristina eram vistas como “masculinas”, a obra não deixa de ser um exemplo de questionamento dos papeis de gênero na sociedade e uma pré-literatura trans.
Sua carreira dura até 1418, quando a Guerra dos Cem Anos levou à ocupação de Paris pelos ingleses, e a escritora abrigou-se num convento de Poissy. Até sua morte, em 1429, Cristina escreve como última obra “O Dito de Joana D’Arc”, em homenagem à heroína francesa. A importância de Cristina de Pisano para a literatura e para o movimento feminista, do qual é considerada precursora, não resume-se à sua prolífica obra de mais de 40 livros escritos ao longo da vida. Cristina puxa, consigo, a história de uma sociedade europeia em transformação sobre o papel da mulher, e as copistas, poetisas e patronas que pavimentaram seu caminho e a história busca resgatar.
Recomendações
🎧 Podcast: Mulheres Intelectuais de Ontem e Hoje #32, uma produção da Rádio UFRJ sobre a vida de Cristina de Pisano.
🎥 Vídeo: Mulheres na Idade Média: Cristina de Pisano, vídeo do coletivo Tarsila Grita sobre a vida de Cristina.
🔗 Link: Paleographando, o perfil da Profa. Stephanie Sander sobre manuscritos medievais e a atividade da paleografia.
🇧🇷 Fonte brazuca: Guarita, de Arthur J. Silva.
Nota do editor
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Escrito em 100857.62
Chocado com a diferença de miniaturas e iluminuras. Me lembrei do belo filme O Segredo de Kells.