Letra Aberta #02 – Cuidado com o vão
Os espaços que precisam ser preenchidos num projeto de resgate tipográfico
Tempo de leitura: 7 minutos
Todo passageiro de metrô já se deparou com o aviso “cuidado com o vão entre o trem e a plataforma”. Ela é irmã de sua versão anglófona de três palavras, “mind the gap”, e prima desajeitada daquele aviso em todos os elevadores, “antes de sair, verifique se o mesmo encontra-se neste andar”, imposta via legislações municipais e vítima infeliz do bullying de quem diz, certo de ser o grande humorista do momento, que olha para os lados e nunca encontra esse tal de mesmo. Com o tempo, ela aprendeu que isso é puro recalque, típico de quando a pessoa precisa rebaixar os outros para sentir-se no topo, “por cima da carne seca”. Aliás, na engenharia e arquitetura, recalque significa o afundamento de uma estrutura pelo seu próprio peso em relação ao solo. Ou seja: na verdade, é a pessoa que, inconsciente de sua inferioridade, faz essa piada para afundar tudo ao redor na insustentável lama do tiozão do pavê, fazendo notório o recalque.
Isso é uma lição de moral que pode ou não ter a ver com o resto do texto, mas eu só queria um pretexto para falar sobre vãos. Espaços vazios, pequenos vácuos, que a gente só nota que existem quando precisam ser preenchidos. Projetos de resgate tipográfico podem acumular vários destes vãos, de acordo com o que o designer deseja ao trazer um certo estilo de letras de um passado com contextos culturais e econômicos diferentes. As decisões e os métodos com que se decide se esses vão serão preenchidos, e como serão preenchidos, exigem que o designer aprofunde-se no contexto das letras que deseja trazer à vida, e entenda também o que ele quer, no final: uma reprodução quase fiel, uma interpretação livre, ou alguma coisa no meio disso que atende requisitos e satisfaz (quase) todos os envolvidos.

Essa edição baseia-se numa roda de conversa organizada pelo prof. Rafael Neder, em que estive junto com Érico Lebedenco e Gabriel Figueiredo, em que eu precisei pensar num fio condutor para as histórias de meus dois projetos de resgate tipográfico. A Grotesca Reforma é conhecida de alguns de vocês; foi meu TCC de Especialização em Tipografia pela Faculdade Senac, teve seus méritos e percalços, e vários casos de uso dela me deixam bem orgulho. Essa nova tipografia, o estudo de caso do Letra Aberta, já tem nome definitivo (que vai ficar lá no final) e uma coleção de dores-de-cabeça acumuladas pelos vãos deixados pelas necessidades que Neumeister e Orfini tinham lá pelos idos de 1472, e pela própria evolução da linguagem escrita.
Um breve recap: este que vos redige está criando uma fonte baseada na primeira edição d’A Divina Comédia, escrita por Dante Alighieri. Essa edição, datada de 1472, foi impressa em Foligno, Itália, pelo alemão Johannes Neumeister, monge calígrafo e provável funcionário de Gutenberg, com letras gravadas por Emiliano Orfini, ourives italiano e mestre-da-moeda da Igreja. A edição #1 conta mais sobre esses sujeitos e o próprio projeto.
Lá na primeira edição, comecei a contar um pouco sobre esses vãos: algumas letras que não existiam, ou não eram usadas na língua italiana da época, como “y”, “w”, “k” e “j”. Curiosamente, alguma letras existiam com formas diferentes entre maiúsculas e minúsculas, como o caso de “u” e “V” que eram desenhos diferentes da mesma letra, e o caso do “s” longo, que coexistia com o “s” regular (usado apenas no final de palavras) e o “S”. Não fossem poucos os problemas, algumas letras como o “h” e o “x” ainda herdavam desenhos caligráficos, e o desenho padrão do “z” continha floreios (swashes) que destoavam das demais letras.

Quando o OpenType chegou ao mercado, em 2000, foi bastante celebrada a flexibilidade que ele oferecia aos designers de tipos para guardar, no mesmo arquivo de fonte, desenhos diferentes da mesma letra. Minha intenção é fazer uma família tipográfica adequada aos requisitos tecnológicos da atualidade, que funcione bem em corpo de texto. Acessar esses caracteres alternativos não exige um conhecimento avançado de outros designers e diagramadores; por isso, é tentador pra mim manter, na mesma fonte, uma versão “normalizada” de letras com desenhos incomuns, e outra versão mais fiel. Por enquanto, faço isso usando o recurso de stylistic sets, embora o uso de character variants tenha chamado minha atenção por ser mais flexível e mais próxima do meu intuito, de fato.
Escolher um arsenal de referências de fontes análogas, por período de referência ou proximidade estética, também foi importante para preencher outro vão: a ausência de sinais de pontuação. Marcações como vírgulas, pontos finais, exclamações e interrogações são historicamente mais recentes do que a gente imagina, e praticamente inexistem nas impressões de Neumeister e Orfini. Tipografias como Centaur, Adobe Jenson, Guardi, Apollo e até a Alegreya serviram de exemplo para os desenhos das pontuações e até de algumas letras que deram trabalho.
Porque sim, estamos enfim falando de desenhar letras. Como eu disse na edição passada, embora essa primeira edição impressa tenha um valor histórico inestimável, a qualidade da impressão é bem ruim, com problemas de entintamento e letras com problemas sérios de consistência dos desenhos. Fazer uma reprodução fiel de algo tão caótico, pra mim, não vale a pena neste momento da vida; eu quero fazer algo usável, que carregue alguma essência desse impresso que me cativa há algum tempo, mas deixando para trás os atributos que não pertencem mais a este tempo. Por isso, sim, as letras serão diferentes das referências originais; alguns podem chamar de “apagamento”; o que eu entendo, porém discordo, e não terá sido o primeiro nem o último projeto de resgate tipográfico a tomar um caminho assim.

Durante o desenho das primeiras letras, precisei prestar atenção em detalhes recorrentes, como o “a” com um desenho “rotundo”, com o ombro quase fazendo uma volta completa até a o bojo. A letra “e”, sempre com o seu traço inclinado, permaneceu assim até o ponto em que ela parecia excêntrica demais perto das outras letras. O “n”, de serifas espessas e prolongadas, precisou calçar serifas menos pronunciadas, que compensam melhor a espessura natural de traços verticais. O mesmo desenho deu origem ao “h” sem o formato de gancho, preservado num caracter alternativo já nas primeiras versões. O “x” tomou o mesmo caminho, mas com um pouquinho de pesar no coração, porque a forma caligráfica dele ganhou meu afeto.
E no meio do caminho… não é que um “y” apareceu? Não exatamente um “y”, mas uma forma encontrada por Neumeister de mostrar duas letras “ii” ligadas. Os calígrafos tinham uma tradição centenária de abreviaturas que a tipografia deixou no passado, mas uma coisa ou outra seguiu adiante. Acabou que essa ligadura foi preservada como um “y” alternativo, já que o desenho original é estranho até para um “y” de fato.
Eu quero terminar essa edição com o troféu da minha maior batalha nesse momento inicial do percurso. Muitos designers iniciantes temem ao ver o “s” e sua espinha como uma barreira que separa novatos de profissionais no type design, mas aprendi a discordar disso com o “g”. Para que ela não marcasse o texto e criasse manchas escuras em tamanhos menores, como de 5pt a 8pt, eu precisei passar por várias provas de impressão e colocar o “g” de outras fontes em comparação detalhada para entender e fazer um desenho mais amigável, mas que ainda lembrasse o “g” de cauda projetada de Neumeister e Orfini. Do jeito que ficou, me satisfez.
Na próxima edição, eu conto mais sobre os desenhos das maiúsculas e o início das itálicas. Minha palestra tem alguns spoilers porque, neste momento, a fonte está com suas versões romana e itálicas quase prontas, na iminência de ganharem mais pesos. Ela já foi até exposta num pôster, na oitava edição do Swash & Serif, aqui em Toronto. Esse vão na história desde a primeira edição pra cá, eu vou contar com mais detalhes nos próximos textos. Só que, quem gosta de spoilers, vai saber o porquê dessa fonte chamar-se, doravante, Stelle.


Escrito em 101751.252
deslumbrante teu trabalho ⭐️