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Eu começo essa edição com um breve adendo à edição #81, sobre as letras das rodovias. Eu expliquei pouco a disputa entre a Highway Gothic e a Clearview porque ela é uma novela consideravelmente dramática. Em 2004, a FHWA emitiu uma recomendação pública provisória favorável ao uso da Clearview, criada a pedido do Texas Transportation Institute, para novas placas substitutas a outras que precisavam de modernização. Entre 2004 e 2016, quando a recomendação foi retirada, novas pesquisas comparando as duas tipografias foram feitas. Os testes anteriores também foram revisados e o que veio em seguida foi uma grande batalha de lobby com direito a troca de acusações, barraco e quebra-quebra. A FHWA retirou sua recomendação alegando que os testes favoráveis à Clearview tinham resultados manipulados, envolvendo até comparar placas velhas e desgastadas com placas novas usando a Clearview, uma situação onde inevitavelmente a nova fonte seria mais legível. O Estado do Texas, por sua vez, conseguiu via força de lei federal que sua Clearview fosse autorizada novamente em 2018, e desde então, a FHWA não desautoriza nem recomenda o uso da fonte.
Há interesse do estado texano em que a Clearview seja usada para aumentar sua arrecadação com os custos de licenciamento da fonte pagos pelos demais estados. No entanto, você pode pensar que fontes usadas em sinalização rodoviária deviam ater-se apenas a questões técnicas, onde certas decisões de design melhoram ou pioram a legibilidade. Só que, mesmo que a gente tire todo o lobby dessa novela, ainda resta o problema de que legibilidade não é uma coisa fácil de ser medida, posta em números e doravante escrita em pedra. Pesquisadores de vários campos tentam entender como a escrita funciona dentro do cérebro e determinar estilos de letras que funcionam melhor que outras, e algumas dessas medições assemelham-se demais a jogar ciência contra a parede e ver o que acontece. No Tipo Aquilo de hoje, vamos visitar algumas pesquisas, discutir resultados e métodos, e entender melhor como a tipografia funciona para quem precisa coloca-la no bico de Bunsen.
Um aviso importante: essa edição não vai terminar com um resultado definitivo sobre qual fonte, ou qual tipo de fonte, é mais legível sob quaisquer circunstâncias. Como você verá a seguir, toda pesquisa dirigida a aferir legibilidade faz recortes muito precisos e, quase sempre, difíceis de transportar seus resultados para outros recortes. Isso é feito não apenas para atender demandas mais tangíveis, mas também para tornar a própria pesquisa possível e viável. Cada variável nova que pretende-se medir adiciona complexidade (leia-se mais tempo e custos) que pode, na pior das hipóteses, gerar resultados pouco relevantes e/ou difíceis de transpor para alguma ação possível. Em algumas ocasiões, os resultados podem ser favoráveis a uma determinada tipografia, mas não significa que ela seja a melhor escolha; às vezes, apenas significa que ela tem alguma coisa que faz parte do caminho para uma decisão tipográfica melhor. Por isso, você nunca verá a última e derradeira pergunta “qual é a fonte mais legível de todas?” sendo respondida, porque, na prática, é impossível.
Comecemos, então, por Sawyer et al. (2020), comparando a performance de fontes lidas de relance em notificações de smartphones e outras interfaces de tela. Digamos que faz sentido, num mundo em que somos mais dependentes de notificações, medir qual tipografia promove uma melhor leitura sob pressão de tempo. 73 pessoas com acuidade visual comprovada e média de idade de 55 anos foram submetidas a testes de leitura, num quarto parcialmente iluminado, de informações curtas apresentadas num monitor a 70 cm de distância dos olhos por quantidades variáveis de tempo, escritas em 8 fontes diferentes. O resultado da pesquisa coloca a Frutiger e a Meta como as fontes que os participantes demoraram menos para ler os textos na tela — em tese, as mais legíveis desse comparativo. Contudo, a discussão não aponta um motivo preciso para que elas tenham tido resultados melhores, mas dá algumas pistas, como proporção de altura-de-x mais agradável e desenhos de letras com contraformas mais abertas.
Ainda sobre letras em telas, Sheedy et al. (2005) mediram as condições limiares para que as pessoas conseguissem reconhecer letras e palavras em telas de baixa resolução com diferentes tecnologias e métodos de renderização. Ao longo de três experimentos com pouco mais de trinta pessoas de idade entre 18 e 35 anos e acuidade visual comprovada, mostrou-se benéfico para a legibilidade o uso de tecnologias de renderização de fontes, como o uso de escala de cinza e o ClearType1. Fontes como Verdana e Arial foram consideradas mais legíveis em telas de baixa resolução, e comparando fontes mostradas em diferentes resoluções. houve uma melhoria de performance em displays com mais pontos por tela. Uma vantagem para fontes sem serifa em telas luminosas também foi percebida por Ko (2017) ao experimentar com 108 pessoas de 18 a 25 anos a percepção de logotipos em Arial e Times New Roman com múltiplas combinações de cores e disposições.
Algo que vocês já me viram falar algumas vezes por aqui é que as pessoas lêem melhor com fontes que elas já estejam acostumadas em cada contexto. Nedeljković, Jovančić e Pušnik (2020) demonstram esse fenômeno submetendo 84 participantes entre 18 e 35 anos com acuidade visual comprovada a testes de leitura e eye tracking com textos usando a Arial, uma tipografia amplamente utilizada em países com alfabeto latino, e outras duas fontes criadas para o experimento — uma delas, com desenhos de letra unicase, que as pessoas não estão habituadas a ler no cotidiano. Enquanto não houve diferença significativa de tempo de leitura entre textos com a Arial e a fonte sem modificações, houve uma disparidade considerável comparando-as com a fonte unicase, indicando que a legibilidade pode decorrer de algo que teóricos como Adrian Frutiger descrevem como uma “forma ideal de letra”. Em “Sinais e Símbolos”, Frutiger demonstra essa forma “ideal” sobrepondo letras iguais de fontes diferentes, obtendo uma mancha densa que expõe os contornos ideais de uma letra “ultralegível”.
Legibilidade é um assunto caro também para pessoas com baixa visão, que dependem de artefatos corretores (óculos ou lentes de contato) quando possível. Minakata et al. (2023) buscaram entender a relação entre legibilidade e as serifas e contrastes nos desenhos das letras. 19 pessoas com acuidade visual reduzida2 foram submetidas a testes de leitura por exposição de palavras simples em intervalos curtos de tempo utilizando quatro fontes. As tipografias usadas eram similares, porém com duas variáveis: presença ou ausência de serifas, e diferenças maiores ou menores de espessuras de traços. Os resultados mostraram que fontes sem serifas e contraste reduzido (como a Thesis Serif, de Luc de Groot; ou a Avance, de Evert Bloemsma) ofereceram melhor legibilidade para os participantes. Algo interessante de pontuar é que Minakata e Beier (2022) haviam feito um estudo anterior com metodologia e procedimentos semelhantes, porém com 57 participantes de acuidade visual plena. Neste, fontes sem serifa e com baixo contraste tiveram melhor performance, podendo ser lidas em tamanhos menores de corpo de texto, enquanto as demais exigiam maior esforço cognitivo para a mesma tarefa.
Ainda no campo de pessoas com visão reduzida, Arditi e Cho (2007) submeteram quatro participantes (dois com visão normal e dois com baixa acuidade visual) a dois experimentos com exposição de palavras simples numa tela luminosa. Como variável do experimento, os verbetes eram exibidos em minúsculas, maiúsculas e com as duas caixas misturadas aleatoriamente. Foi constatado no experimento que as palavras escritas em maiúsculas foram lidas mais facilmente pelos participantes, oferecendo melhor legibilidade. A princípio, isso vai de encontro ao conhecimento geral de que palavras com letras minúsculas, ou com maiúsculas na primeira letra, são mais legíveis; porém, as condições em que as palavras foram exibidas no experimento — uma sequência de palavras, com uma palavra por vez — não são comuns no cotidiano. Isso faz com que precisemos de certos caveats ao entender os resultados.
Voltando à eterna batalha das serifadas vs. sem serifas, Daxer et al. (2022) utilizaram Helvetica e Times New Roman como objetos de estudo para comparar a legibilidade de fontes com e sem serifa. 36 pessoas de 18 a 38 anos, durante o experimento, foram convidadas a ler três parágrafos com larguras e fontes diferentes, aferindo-se o tempo necessário para a leitura de cada parágrafo numa folha distinta. O resultado é que houve uma diferença notável de leitura entre parágrafos mais largos e mais estreitos, mas em relação às duas fontes, não foi constatada uma diferença significativa no tempo de leitura ou de contagem de erros. Aqui, também vale o mesmo aviso sobre as condições de leitura reproduzidas no experimento terem pouca correspondência no dia-a-dia das pessoas, tornando mais difícil que o resultado obtido provoque uma ação prática por quem faz diagramação de livros e outros produtos editoriais todo dia.
Talvez você esteja achando estranho não existir um consenso, já que, por mais que seres humanos sejam diferentes entre si, o cérebro talvez funcione de uma forma semelhante. Só que a falta de um consenso aparente não é uma exclusividade desta edição: Hou et al. (2022) verificaram, por meio de uma revisão sistemática, recomendações de diversos estudos acerca de tamanho de corpo de texto para pessoas idosas em interfaces digitais. Diversos estudos, com metodologias e ferramental distintos, mostraram recomendações diferentes para tamanhos de fontes, variando entre 8pt e 22pt, de acordo com o dispositivo, a fonte, o propósito do texto e até o alfabeto utilizado na interface, com sistemas de escrita leste-asiáticos recomendando maiores tamanhos.
Falando em escritas leste-asiáticas: dislexia é um campo onde existe muito desencontro de informações, já que ainda sabe-se pouco sobre o distúrbio e sempre temos alguma novidade. Esse assunto já teve uma edição própria no Tipo Aquilo #60, em que menciono que o distúrbio de leitura e aprendizado não é exclusivo para leitores de idiomas com alfabeto latino. Kuester-Gruber et al. (2023) investigaram um grupo de 40 crianças alemãs entre 9 e 11 anos, com 18 crianças disléxicas, a fim de avaliar a performance de leitura com um sistema de escrita diferente do alfabeto latino. Após receberem aulas de Chinês, as crianças passaram por testes de leitura com ambos os alfabetos latino e chinês. No fim, não foi constatada nenhuma diferença significativa na performance de leitura, e crianças com dislexia apresentaram problemas similares de reconhecimento de letras latinas e ideogramas chineses.
Eu consigo imaginar você terminando essa leitura meio confuso. Se você leu bem, eu avisei que não teria uma resposta clara sobre legibilidade, e isso não é ruim. É importante vermos o que a ciência tem a dizer sobre como a tipografia pode funcionar para as pessoas, e como pesquisadores podem colaborar para entregar respostas mais completas e satisfatórias, mesmo que não definitivas e até divergentes, em alguns casos. Pesquisas acadêmicas sérias e bem fundamentadas mobilizam políticas públicas que, no fim, tornam-se legislação para coisas do dia-a-dia que precisam de normatização, como bulas de remédios, placas de trânsito, manuais de aviação, avisos de composição de alimentos e outras aplicações técnicas para a população geral. Isso é um motivo importante para que pesquisadores olhem para o nosso campo com mais afinco, pois mais estudos são necessários. Mais estudos serão sempre necessários.
Recomendações
🎥 Vídeo: Typeface Legibility and Low-vision Readers – ATypI 2023 Paris, (em inglês) com a Profª. Sofie Beier falando sobre diversas manifestações de deficiências visuais e os desafios de desenhar fontes para pessoas com baixa acuidade visual.
🔗 Link: Measuring The Performance Of Typefaces For Users (parte 2), (em inglês) um artigo em duas partes de Thomas Bonn para a Smashing Magazine sobre como medir a eficiência de famílias tipográficas em interfaces de produtos digitais.
🇧🇷 Fonte brazuca: Borogodó, de Álvaro Franca e Felipe Casaprima.
Escrito em 101311.02
ClearType é uma tecnologia desenvolvida pela Microsoft para melhorar a exibição de fontes em telas de baixa resolução, alterando sutilmente as cores de alguns pontos dos contornos das letras para acentuar ou reduzir a intensidade individual de subpixels RGB de monitores.
Os participantes deste experimento eram pacientes com Atrofia Óptica Autossômica Dominante, uma neuropatia óptica hereditária que causa perda de acuidade visual, percepção de cores e de campo visual.