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Tipo Aquilo #60 — Tipografia e dislexia
Como a tipografia (não exatamente) pode ajudar o disléxico
Percy era um garoto inglês de 14 anos que, em quase todos os aspectos, era igual aos seus amigos da mesma idade. Tinha um bom porte físico, sabia brincar e jogar com seus colegas. Era o filho mais velho de pais bem instruídos, e o diretor da escola em que estudava julgava-lhe capaz de aprender facilmente tudo aquilo que lhe fosse ensinado… contanto que fosse ensinado de forma oral. Percy enxergava normalmente, mas apresentava uma grande dificuldade para ler e entender textos, mesmo sendo alfabetizado. O cirurgião oftalmologista William Pringle Morton, diante desse fenômeno, chamou o caso de Percy de “cegueira congênita para a palavra”.
Provavelmente existiram vários Percy’s ao longo da história. No entanto, o garoto foi responsável pela primeira descrição médica, em 1896, de um caso de algo que entendemos atualmente como distúrbio de leitura; no caso, a dislexia do desenvolvimento. Desde então, essa condição vem sendo estudada por médicos de todo mundo, a fim de encontrar uma cura, entender como funcionam a escrita e a leitura dentro do cérebro, e as causas de transtornos de aprendizado. O Tipo Aquilo de hoje vem para conhecermos mais e entendermos nossa responsabilidade como cidadãos e como designers com o aprendizado e a vivência de pessoas que vivem com a dislexia.
Apesar do primeiro caso documentado datar de 1896, o termo “dislexia” foi cunhado alguns anos antes, pelo oftalmologista Rudolf Berlin, em 1883. No entanto, Berlin referia-se, com o termo, à perda de habilidade de leitura e aprendizado causada por algum dano ao cérebro no decorrer da vida. O caso de Percy, relatado por Morgan, não encaixa nessa condição: como Morgan descreveu, ele era saudável, com plenas funções motoras e sem déficits de percepção, mas com grande dificuldade para ler e escrever corretamente. Fosse nos dias atuais, Percy provavelmente seria diagnosticado com o que entendemos como dislexia: um transtorno neurobiológico adnato de aprendizagem, caracterizado pela dificuldade de leitura e escrita.
A dislexia não compromete a inteligência e a capacidade de reter conhecimento; só que, enquanto não é diagnosticada e tratada, ela compromete a aprendizagem e a formação escolar básica de crianças e adolescentes, pois manifesta-se enquanto esses jovens estão desenvolvendo habilidades de alfabetização. Ao longo da vida, ela faz a leitura ser mais demorada e penosa para quem nasceu com o distúrbio, e os typos (jargão para erros de ortografia causados por uma letra errada ou em falta) são constantes nos textos do disléxico. Estimativas apontam que o distúrbio afeta de 15% a 20% da população mundial, sendo responsável por até 90% dos casos de transtorno de aprendizado.
Sabe-se que o distúrbio decorre de um déficit de processamento fonológico; não tem a ver apenas com a dificuldade de perceber letras espelhadas (b/d, p/q) ou similares (c/e/o, e o “a” single storey de fontes geométricas), por exemplo. Também não se resume a dislexia em letras embaralhadas dentro da palavra; sabe aqleua hsitróia de que o céerbro cnsoegue ler, msmeo que as lretas esjetam tordacas, ecxeto a piremira e a útilma? (tá, parei) Não é disso que se trata a dislexia, assim como ela não se resume em palavras “voando” aleatoriamente no meio do texto. Aliás, o transtorno não se manifesta de maneira uniforme: há casos mais brandos, em que a pessoa tem leves (porém, constantes) dificuldades com ortografia, e casos mais severos, em que até palavras monossílabas são difíceis de decodificar. A dislexia diz respeito a como o cérebro processa os sons das letras ao invés de suas formas, levando disléxicos a confundir mais vezes letras com sons comuns; e pode, em certos casos, estar associada a outros distúrbios, como o TDAH, discalculia e disortografia.
Algumas pesquisas com ressonância magnética mostram que, grosso modo, o processamento de linguagem de pessoas com dislexia é mais demorado por tomar um caminho mais longo dentro do cérebro do que pessoas sem o distúrbio. Isso ajuda a mostrar que os sintomas causados pela dislexia vão aparecer, não importa qual fonte seja usada no texto que a pessoa esteja lendo. Talvez você já tenha esbarrado em alguma reportagem ou artigo sobre fontes específicas para disléxicos, que tendem a exagerar certas partes das formas das letras, de forma que elas sejam menos similares entre si. Também corre bastante aquela história de que a Comic Sans seria uma fonte ideal para disléxicos porque as formas das letras não são parecidas entre si e isso tende a gerar menos confusão… ok, muita calma nessa hora.
Relacionar tipografia com dislexia já foi objeto de inspiração para designers e pesquisadores criarem fontes voltadas para disléxicos, e também de dezenas de pesquisas nas áreas de psicologia e pedagogia, na tentativa de comprovar se essas fontes realmente funcionam. Essas fontes, como a OpenDyslexic, Sylexiad a Dyslexie, têm como objetivo reduzir a similaridade de letras como b/d/p/q e deixar as porções inferiores das letras maiores e mais ancoradas à linha de base. No entanto, as pesquisas que investigam se o uso dessas fontes melhora efetivamente a leitura para disléxicos ainda não apresentam evidência de que elas realmente funcionam melhor do que fontes convencionais, como Charles Bigelow, type designer e pesquisador, concluiu ao vasculhar dezenas de pesquisas sobre o tema sem conseguir encontrar uma resposta clara.
Algumas das premissas que embasam fontes para disléxicos, como a confusão entre letras similares, também não tem uma conclusão clara; várias pesquisas sugerem que disléxicos não confundem essas letras mais do que pessoas sem o distúrbio. Os esforços para tornar certas letras menos parecidas entre si, como criar esporas inferiores para a letra “l”, e até as formas pesadas na linha de base, não melhoram a legibilidade para disléxicos de maneira que não-disléxicos não compartilhem dessa melhoria. O distúrbio não é exclusivo a leitores do alfabeto latino; outros sistemas de escrita, como árabe, hebreu, CJK, também estão suscetíveis às falhas de processamento fonológico do cérebro, quando o cérebro associa símbolos (letras e ideogramas) a sons.
Essas questões não significam, contudo, que fontes voltadas para disléxicos não tenham qualquer utilidade. Sendo feitas por pessoas que nasceram com o distúrbio, elas colocam em evidência alguns recursos que seriam bem-vindos em fontes convencionais, quando o foco é conseguir a melhor legibilidade possível. A Clearview Hwy, por exmeplo, é uma família de fontes que beneficia-se de um time multidisciplinar para que os desenhos dos caracteres atendam, além da dislexia, outros problemas de leitura e percepção. Pelo benefício da dúvida, fontes específicas para disléxicos encontram-se disponíveis com diversas licenças — se você tiver um Kindle, por exemplo, a OpenDyslexic estará entre as opções de fontes para leitura.
É conveniente observar algumas recomendações de disléxicos com o uso de fontes convencionais, enaltecendo fontes que tenham: distinções claras entre os caracteres I/l/1; o “g” redondo ao invés de sua forma caligráfica; e o espaçamento entre letras bem resolvido, que evite que “moderno” seja lido como “modemo”. Fontes sem serifas, aqueles pezinhos mais largos das letras (Maldonado, 2021), tendem a ser preferidas por disléxicos, já que reduzem a complexidade do desenho das letras e a confusão que elas podem causar. Traços ascendentes e descendentes bem evidentes também contam a favor, já que uma forma que disléxicos têm para melhorar a leitura é memorizar a forma das palavras (embora não-disléxicos também façam essa memorização).
Derrubar o mito de que a Comic Sans ajuda disléxicos a ler melhor é uma boa forma de fechar esse episódio. Ela atende a algumas das recomendações acima, e beneficia-se da preferência de alguns disléxicos por fontes manuscritas. Só que a forma como esse argumento é construído em reportagens desvia a atenção do que é dislexia, focando-se em formas e percepção das letras e reafirmando outros mitos sobre dislexia. Ao contrário, quando o designer preocupa-se em fazer uma composição textual agradável, utilizando corpos de texto maiores, com distância agradável entre linhas, e espaços entre letras bem resolvido, ele melhora substancialmente a leitura entre disléxicos e também não-disléxicos. Não tratar a dislexia como piada, ou apenas uma questão de “aprender a focar”, nem destratar os direitos garantidos a disléxicos por lei, são atitudes importantes para fortalecer o aprendizado e a vivência de pessoas disléxicas na sociedade.
Recomendações:
🎧 Podcast: Entrementes #20, em que Luiz Fujita conversa com a pedagoga e neuroeducadora Renata Haddad sobre dislexia, seu diagnóstico e acompanhamento.
🎥 Vídeo: DislexClub – O que é Dislexia, em que Felipe Pippo descreve o que é dislexia e como o cérebro disléxico funciona.
🔗 Link: BBC – Things not to say to someone with dyslexia, (em inglês) um compilado de mitos comuns sobre pessoas disléxicas que devem ser evitados.
🇧🇷 Fonte brazuca: Blauth, de Sofia Mohr.
Nota do editor:
Eu sei que estou atrasado, mas tem um monte de coisa acontecendo ao mesmo tempo, que depois eu conto pra vocês com calma. Eu fico feliz que, aos poucos, mais pessoas estão se inscrevendo e recebendo os textos; então pra quem chegou agora, seja bem-vindo e desculpe a bagunça… e a demora.
No mais, como eu sei que eu tenho alguns leitores pesquisadores e relacionados com medicina: caso eu tenha dito alguma besteira nesse texto, eu tenho zero problemas em me retratar, fazer erratas ou até uma nova edição com correções, e buscar aprender mais. (=
Escrito em 100064.09
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