Vamos falar de fontes #2 – Courier e Leluja
Máquinas de escrever e papéis de cortar
Courier (IBM), de Howard Kettler
Tem um arquivo no meu computador chamado “Everything You Ever Wanted to Know About Courier.pdf” que está há uns dois anos esperando para ser lido. Gosto de pensar que alguém, dotado de plenas faculdades físicas e mentais, acredita em coisas que eu, você e todo mundo sempre quis saber sobre a Courier e suas derivadas. Por isso, a primeira typeface desta edição é sobre a famosa Courier, presente na vida de programadores antigos, roteiristas e ex-agentes da CIA.
Criada por Howard Kettler e lançada pela IBM em 1955, a Courier — chamada inicialmente de Messenger — tornou-se conhecida por meio das máquinas de datilografia da marca. Não existia, na época, uma tipografia única para máquinas de escrever: cada marca tinha seu design e as letras tinham diferenças sutis entre si. Comungavam apenas do fato de serem mono-espaçadas, o que era fundamental para o funcionamento das máquinas de escrever da época. No caso da IBM, ela tinha o luxo de, na sua linha Selectric, poder vender esferas (chamadas na época golf balls) com fontes diferentes — sendo a Courier, uma delas, ao lado de tipografias como Prestige Elite, Letter Gothic, Orator, entre outras.
Contudo, por acaso ou não, a IBM não teve o cuidado de registrar nem o nome Courier, nem o próprio desenho das letras. Assim, ela pôde ser reproduzida por outras empresas quando estas precisavam de fontes para os primeiros computadores. A Courier (ou alguma variação dela) estava tanto nas impressoras quanto nas telas CRT monocromáticas dos anos 1970 e 1980, tornando-se comum entre profissionais de TI dessa época. Seus contornos finos e serifas retas, com terminais claras e “espinhosas”, davam à fonte um aspecto moderno, ante outras monospace de sua época.
Quando o computador tornou-se uma ferramenta cotidiana de todo mundo, a Courier, presente em todo Windows e Mac, tornou-se a fonte “oficial” dos roteiristas. A largura única das letras da Courier foi crucial para essa escolha: por décadas, o cinema criou roteiros em máquinas de escrever, e isso fez com que, em média, cada página de roteiro descreva um minuto do futuro corte final de uma peça audiovisual. Ajustar o layout do roteiro utilizando Courier em 12 pontos ajuda roteiristas a manter essa medida, e aplicativos de criação e edição de roteiro usam a Courier ou alguma versão modificada dela para este fim.
A Courier também era a tipografia padrão de órgãos como a CIA e a Secretaria de Estado dos EUA, até ser substituída nos anos 2000 pela Times New Roman, que oferecia melhor leiturabilidade para relatórios e outros documentos. Entre programadores novos, ela também não tem o mesmo prestígio: há uma série de fontes criadas e otimizadas para desenvolvimento e criação de código. No entanto, a onipresença e elegância da Courier ainda faz dela um bom clichê para tecnologia… é ela que faz Neo seguir o coelho branco.
Leluja (Omnibus Type), de Deia Kulpas
Pra falar da Leluja, precisamos voltar um pouco no tempo e colocarmo-nos num dos territórios mais complicados da geopolítica europeia. A Polônia é o meio do caminho do ocidente do velho mundo para o norte asiático, estando entre Romanos e Hunos, Mongóis e Francos, Rus e Germânicos. Em 966, nasceu o primeiro Império Polonês, num dos poucos espaços em que a cristianização católica fez prosperar a escrita latina, ante seus vizinhos cirílicos a leste. Chegou a formar a República das Duas Nações com a Lituânia até o séc. XVIII, sendo uma das maiores nações da Europa. No entanto, voltou a existir como nação somente após o fim da Primeira Guerra Mundial em 1919.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, a Polônia voltou a viver dias de paz, preservando até hoje as fronteiras estabelecidas nas conferências de Teerã (1943), Yalta e Potsdam (1945), tornando-se um país independente após o fim da União Soviética. Com uma história assim, vocês podem imaginar a Polônia como um grande campo aberto de centenas de batalhas ao longo dos tempos, com a população sofrendo diásporas, vivendo no fogo cruzado de trincheiras, e mantendo-se unido pelas tradições que sobreviveram aos mandos e desmandos de imperadores e generais.
Desenvolvida por Deia Kulpas para o Mestrado em Tipografia pela Universidade de Buenos Aires, a Leluja é inspirada em uma dessas tradições que sobreviveram ao tempo, os wycinankies. Também encontrados em outros países com populações eslavas, como a Ucrânia e Belarus (ou Bielorrússia), os wycinankies são decorações feitas com uma ou mais camadas de papeis coloridos recortados em simetria, com tesoura. Os desenhos formados pelos cortes, antigamente em couro, reproduzem motivos comuns da vida rural polonesa, como as árvores, animais, santos católicos, trajes, danças, ou abstrações em que os cortes duros de tesoura são mais notáveis. Evidências históricas sugerem que os wycinankies existem desde o século VI, mas tornaram-se populares apenas no séc. XIX, enquanto o território da Polônia era dividido entre os impérios da Rússia e Prússia — posteriormente, Alemanha.
A inspiração dos wycinankies na Leluja pode ser vista em detalhes como as hastes compostas de curvas abertas, serifas com terminais quadrados que interrompem os traços retos de letras com A, E, F, L, U, N e Z. Ao invés de conterem traços contíguos, as contraformas apresentam pequenas quebras que emendam seus eixos e ajudam a criar uma textura que lembram os desenhos feitos com papel cortado. Durante a maestría, Deia chegou a fazer letras cortadas e alguns wycinankies a fim de entender as formas mais apropriadas de traduzir as formas feitas na tesoura e estilete para o meio digital. O resultado é uma família tipográfica com uma identidade rústica, porém elegante, além de centenas de caracteres, compatível com idiomas como português, guarani e polonês, e presença em premiações como o Tipos Latinos 2016.
Uma grata surpresa é, após vários anos guardada e aperfeiçoada, a Leluja ser disponibilizada gratuitamente pela foundry latino-americana Omnibus Type. Além dos caracteres regulares de letras, números e outros sinais gráficos de texto, a Leluja conta com vários dingbats de wycinankies. Entre os motivos, encontram-se árvores, flores, galinhas, pavões e outros motivos que harmonizam com os caracteres e fazem da fonte um tesouro a ser preservado e utilizado por todos. (=
Onde adquirir
Leluja Original, Deia Kulpas, em Omnibus Type.
Courier, Howard Kettler, em Fonts.com.
Escrito em 101158.58