Tipo Aquilo #97 – Você roubaria uma fonte?
Tecnologias tipográficas, direito autoral, IA e pirataria
Tempo de leitura: 11 minutos
Como alguns devem imaginar, essa edição é baseada no vídeo The secret history of font piracy, do Linus Boman, e busca estender um pouco seu conteúdo, trazendo mais esclarecimentos e alguns causos adicionais. Mas não deixe de ver o vídeo.
Leitores mais antigos do TipoAquilo sabem que eu uso esses dois primeiros parágrafos para cativar a atenção do leitor, pegando algo do cotidiano e mostrando como isso está relacionado a um tema mais profundo. Contudo, dessa vez, quem também precisa de atenção, e da sua solidariedade, é o Pirulla. Ele é um dos maiores YouTubers de divulgação científica no Brasil, ajudando a transmitir conhecimento sobre vários assuntos e formar uma rede de influenciadores cientistas e entusiastas de ciências. Na semana passada, ele foi acometido por um AVC, estando hospitalizado e impossibilitado de produzir conteúdo desde então. Por isso, seus amigos estão em campanha para ajudar a manter seus canais e o bem-estar da família, aceitando doações pelo PIX pirula1408@gmail.com (em nome de Marcos Siqueira, parente do Pirulla. No site oficial dele, vocês podem encontrar mais detalhes.
Eu não considero o Tipo Aquilo como divulgação científica… ele está mais como meu diário (público) de estudos pós-especialização e treino de narração de histórias, sem tanto preciosismo acadêmico, mas sem falar mentira. O Pirulla é alguém que eu gosto de acompanhar, admiro pelo trabalho de formiguinha de espalhar conhecimento sólido num mundo assombrado por demônios de fake news e especulação barata, e tento fazer o mesmo por aqui, no limite de minhas habilidades. Num mundo de influenciadores de tigrinho, casas de aposta e outros golpes, também é admirável a postura do Pirulla em jogar limpo com a audiência, afastando-se dessas práticas. Por isso, a edição de hoje aborda alguns eventos moralmente questionáveis no mundinho da tipografia, e discorre sobre pirataria e propriedade intelectual no mundo do design de tipos.

Pirataria no meio tipográfico é um assunto quase tão antigo quanto a própria tipografia em si. Os primeiros “selos de origem” das gráficas surgiram pouco depois da própria invenção da tipografia, com Johann Füst (que havia financiado Gutenberg alguns anos antes) e Peter Schöffer adotando uma marcação com dois escudos heráldicos no final de cada volume da impressão de 1462 da Bíblia. A tendência espalhou-se, com novas gráficas adotando marcações próprias e até copiando, ou inspirando-se mais do que deviam, no emblema usado por Füst e Schöffer. Contudo, embora esses selos atestassem as origens das impressões, não havia algum dispositivo capaz de atestar a origem dos tipos em si. Dessa forma, famílias tipográficas bem sucedidas em alguns mercados podiam ter versões piratas demasiadamente parecidas facilmente encontradas em outros mercados, e digamos que nunca houve muito o que se pudesse fazer sobre isso. O manifesto de Robert Besley sobre versões alheias de má qualidade da Clarendon é uma amostra do quanto isso era um problema sem solução.
A introdução da galvanoplastia (em inglês, electrotyping ou electroforming) deu uma nova dimensão ao problema da pirataria, não apenas na tipografia, mas em várias outras indústrias. Em resumo, a galvanoplastia permitia a reprodução de objetos metálicos usando um molde não-metálico pintado com material condutor, como prata ou grafite. Se você quisesse criar réplicas de uma medalha, por exemplo, você devia:
Fazer um molde de silicone da face gravada da medalha, colocando a face gravada contra o silicone, e deixando ele secar com a arte da medalha gravada em si;
Aplicar uma pintura metálica nesse silicone onde a arte foi impressa, com prata ou grafite, por exemplo;
Levar esse molde para um banho eletrostático com cobre por algumas horas.
Após o banho, você terá uma réplica em cobre da gravação da medalha. Assim, usando o mesmo molde até ele estragar, você pode criar quantas réplicas quiser. Óbvio que isso acendeu um alerta em várias indústrias. As fundições tipográficas usavam a galvanoplastia tanto para criar novas matrizes de suas fontes, quanto para duplicar tipos de seu próprio catálogo e, dizem boatos, de outras fundições. Estes mesmos boatos, no entanto, nem sempre atestam que as cópias eram feitas de forma licenciada.


O problema que as fundições da época tinham ao tentar proteger suas fontes e perseguir cópias é que, de forma geral, nenhuma legislação ou instância judiciária no mundo permitiu a proteção de desenhos de letra, exceto em logotipos. Essa situação persiste até hoje, já que as leis de propriedade intelectual entendem letras como “objetos funcionais” de propriedade coletiva. Segundo o advogado Rafael Aguillar, “o redesenho criativo e original das letras do alfabeto não implica no domínio do alfabeto em si, enquanto elemento abstrato de uso comum da sociedade”. Esse entendimento permite que, por exemplo, uma pessoa crie uma fonte a partir de outro trabalho tipográfico pré-existente, como um logotipo e até mesmo outra fonte. Rudolf Köch, um dos grandes nomes da tipografia e caligrafia alemã, processou a ATF por causa da fonte Rivoli, lançada em 1929, que guardava… digamos… semelhanças demais com a Koch Antiqua, lançada pela Klingspor em 1922. No entanto, ela perdeu o processo, com a ATF alegando que tanto a Rivoli quanto a Koch Antiqua tinham uma “inspiração” em comum — no caso, o estilo do calígrafo suíço Urbanus Wyss.
Extrapolar esse argumento de “inspiração em comum” impede proteger legalmente qualquer desenho de letras, já que será sempre fruto de inspiração de um design anterior. Isso é importante para entender casos que parecem cópias óbvias, mas a eles, cabe apenas o julgamento da moralidade e da virtude na nossa indústria. Sim, agora é a hora de falar de Matthew Carter, um dos maiores designers da história recente da tipografia. Você pode não conhecê-lo pelo nome, mas provavelmente já usou alguma fonte dele, como Verdana, Tahoma, Georgia, Charter, dentre várias outras. Carter nasceu e viveu dentro da indústria tipográfica, sendo filho do designer de livros e historiador do design Harry Carter. Começou como estagiário da fundição neerlandesa Enschedé. Estudou por anos a gravação de tipos móveis, entrou para a Linotype como especialista em tipografia por fotocomposição, e posteriormente fundou com Mike Parker e outros colegas uma das primeiras fundições totalmente digitais, a Bitstream.

Carter e Parker, antes de fundarem a Bitstream, eram uma dupla sertaneja connoisseurs de várias famílias tipográficas da Linotype na época, como Helvetica, Univers, Times (New Roman), Eurostile, Frutiger, entre outras, tendo trabalhado na adaptação delas para fotocomposição. Em seus primeiros anos, o catálogo da Bitstream compunha-se de fontes com nomes genéricos esquisitos, como Swiss 721, Zurich ou Humanist 777, mas com desenhos praticamente iguais aos das fontes da Linotype. Em alguns casos, o uso da tipografia digital permitiu à dupla revisitar e ampliar algumas fontes em seu catálogo, além de adicionar fontes inéditas. Contudo, não bastasse a maioria das fontes serem digitalizações de desenhos clássicos, a Bitstream revendia as fontes de seu catálogo em CD-ROM's a preços muito inferiores. Isso possibilitou a designers gráficos terem um acervo barato de fontes clássicas da tipografia; por outro lado, criou uma onda de banalização da tipografia digital, gerando um mercado paralelo de CD's com milhares de fontes de origem incerta e licenciamento duvidoso a preços módicos. Isso fez com que essa estratégia da Bitstream fosse encarada pelo type designer John Hudson como um dos maiores casos de pirataria da indústria tipográfica.
“Mas Cadu, então eu posso criar a minha Helvetica?” Sob certas condições… sim, você pode. Legalmente, nada te impede de criar, por conta própria e sem fazer engenharia reversa, uma nova fonte “parecida demais” com as que existem no mercado. Tecnicamente falando, os arquivos de fontes são mais protegidos legalmente, como softwares ou sistemas digitais, do que os desenhos das letras em si, e é sobre o uso dos arquivos de fonte — os .ttf, .otf, .woff etc — que versam os chamados EULA, acordo de licenciamento para usuário final (do inglês, End User License Agreement). Esses acordos dizem o que uma pessoa pode e, principalmente, não pode fazer com os arquivos. Eles podem permitir ou proibir, por exemplo, acesso ao código-fonte, engenharia reversa, modificações, melhorias e, o mais importante, instalação em quantidade limitada de dispositivos e, no caso de webfonts, uma quantidade limitada de visualizações. Enfim, os acordos podem ser tão extensos quanto possível sobre os arquivos, mas tendem a ser inócuos em relação aos desenhos das letras em sua forma física. Até os nomes das fontes, como marcas nominais — não ouse chamar de Helvetica sua cópia da Helvetica —, têm mais proteção legal que os desenhos das letras.

Isso não significa que a indústria tipográfica é uma grande bagunça; 99% dos casos de pirataria tipográfica versam mais sobre o uso indevido de arquivos do que de redesenhos “inspirados demais”. Existem empresas cujo modelo de negócios envolve caçar cópias ilegais de webfonts em outros sites e notificar tanto os autores quanto os contraventores. Contudo, o caso a seguir ilustra bem uma área muito cinzenta da legalidade entre paradigmas tecnológicos. Imagine estar num dia qualquer no Instagram e chegar num reel mostrando como “roubar” qualquer fonte:
Pegue uma imagem de referência com as letras desejadas;
Peça para uma inteligência artificial generativa como o ChatGPT criar um alfabeto inteiro baseado nas letras daquela imagem;
Transforme a imagem em preto-e-branco total num editor de imagens;
Use o template do serviço Calligraphr para criar uma fonte funcional baseada nas imagens.
Quando isso é feito para um projeto comercial, torna-se feio e imoral quando o trabalho apropriado foi feito por um ou mais seres humanos sem estar em domínio público ou com a devida autorização. A dúvida sobre a legalidade vem sobre como e com quais recursos as IA's aprenderam a fazer letras, já que desenhos de letras não têm proteção legal, mas arquivos de fontes e imagens de referência podem sim ter proteção legal. A Adobe jura de pé junto que o Firefly só trabalha com material licenciado, mas a OpenAI nunca deu qualquer garantia disso. Além disso, Sam Altman alinha-se com Zuckerberg e outros líderes da área que simplesmente não se importam com propriedade intelectual. Comparar isso com o que Carter e Parker fizeram nos anos de Bitstream é inocência: nunca houve, no caso deles, o ato de terceirizar trabalho a um agente legalmente dúbio.
Nessas horas, tudo o que resta é o tribunal informal da moralidade e da virtude na profissão, baseado naquele mandamento de não fazer com alguém o que não gostaria que fizessem contigo. Por conta da área de atuação do design não ter regulamentação, é difícil precisar o que pode e não pode ser feito, e o que o coleguinha pode ou não pode achar ruim e injusto. Matthew Carter é tido como um dos maiores nomes do type design; quero falar mais dele aqui porque, opinião minha, ele contribuiu para a indústria muito mais do que a comprometeu nos anos de Bitstream. Só que há uma quantidade de pessoas que nunca o perdoarão por esses anos, e os motivos delas não estão exatamente errados. Ok que, por bem menos, tem gente que considera a própria Arial um caso de pirataria (e não estou afim de discorrer sobre Gotham e Montserrat). Os julgamentos e consequências tendem a ser também nebulosos quando nossa posição baseia-se no empirismo do dia-a-dia de designer, na formação individual do caráter e num conjunto de normas de cada país entende como propriedade intelectual.

Lembrando que o assunto muda muito de figura quando falamos de logotipos. Você até pode usar um logotipo como base para criar uma fonte e, se não a batizar de nenhum nome que seja propriedade intelectual da organização dona da logomarca, não terá feito nenhuma contravenção. A ala do DaFont de fontes “inspiradas demais” em filmes, séries e franquias do entretenimento vive dessa brecha. Isso muda de figura ao fazer um logotipo “inspirado demais” em outro logotipo, caso em que, aí sim, cabe o litígio. Algumas licenças de uso de fontes também podem versar especificamente sobre o uso dos desenhos das letras para criação de logotipos e identidades visuais, e é importante que o designer esteja ciente do que essa licença permite e proíbe. Ter um conhecimento básico de direito autoral e propriedade intelectual não serve pra muita coisa no tribunal da virtude do design gráfico, mas previne grandes dores de cabeça.
E por mais que o texto tenha que acabar agora, propriedade intelectual em tipografia é quase um buraco sem fundo de coisa para contar. O contexto de um país como o Brasil, que não consegue oferecer acesso a certos recursos como outros países, também contribui para que conversar sobre pirataria não verse apenas sobre a letra das leis e a virtude dos privilegiados. Mesmo quando tiramos IA da discussão, ainda tem designer sonsinho que só lembra que EULA existe quando o processinho chega. Felizmente, a gente ainda pode dar risadas da ironia do destino… Vocês lembram daquela campanha cafona e de discurso altamente questionável perguntando “você roubaria um carro?”, para ativar algum senso de culpa em adquirir ou compartilhar DVD's e cópias ilegais de filmes, certo? Imagine a alegria das pessoas ao descobrir que uma das fontes usadas nessa campanha era uma… cópia ilegal da FF Confidential.
Recomendações:
🎥 Vídeo: Fontes tipográficas Digitais: Design, Licenciamento e Aplicações, uma palestra do designer Diego Maldonado sobre licenciamento de fontes tipográficas e o uso correto delas em projetos de design gráfico.
🔗 Link: Como funciona o licenciamento de fontes tipográficas digitais, um artigo da designer Amanda Ardisson sobre licenciamento de fontes tipográficas para diversas finalidades.
🇧🇷 Fonte brazuca: Londrina, de Marcelo Magalhães.
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Escrito por um ser humano em 102416.068
Esse vídeo vem aparecendo pra mim há alguns dias https://youtu.be/J06tluN7rtE
Que conteúdo bom!