Tipo Aquilo #96 – Como se brinca com as letras
O ensino da caligrafia na infância e o universo das letras como um espaço lúdico
Essa é uma edição especial. Este que vos redige e vários escritores de newsletters estamos promovendo hoje, 30 de abril, o newsletteraço, uma ação para incentivar a escrita e espalhar a palavra da comunidade de escritores. Nessa edição, teremos uma mistura de pesquisa e o cunho jornalístico de sempre, com algumas memórias pessoais. No final da edição, eu trago a lista com todas as newsletters participantes para vocês conhecerem. (=
Uma tendência em redes sociais que começou recentemente é a das assinaturas caprichadas, daquelas que pegam uma forma de letra específica e fazem a caneta rodopiar sobre o papel tal qual um dançarino do Bolshoi. Isso resgata uma tradição antiga de assinaturas imponentes, daquelas que você tem certeza que seus pais e avós sabem o que estão fazendo no mundo quando eles empunham a caneta e marcam o papel em riscos ágeis, enquanto você custa a fazer a mesma assinatura do seu nome como estava na carteira de identidade. Eu tenha uma assinatura caprichada no passaporte, que eu treino desde os 16 anos e refinei com o que eu aprendi de caligrafia. Só que minha carteira de identidade é a memória mais remota que eu tenho da minha escrita quando criança, e eu preciso fazer esforço redobrado para escrever como naquela época, quando necessário. Obrigado pela firma reconhecida, cartórios.
Vez em quando, no Instagram ou no X Twitter, ainda apareciam algumas correntes incentivando a mostrar como é sua letra casual, algo que talvez não aconteça mais em tempos de IA generativa e uma máquina facilmente forjando sua escrita, se você der mole. Aliás, você lembra de quando e como aprendeu a escrever? Você ainda tem seus primeiros registros escritos, seu caderno de caligrafia, e os rabiscos das primeiras séries? Existe um infinito de sentimentos guardados na forma com que traçamos cada letra e entrelaçamos palavras. Gosto de acreditar que existe também uma relação entre o prazer de escrever e o ensino da escrita além de uma ferramenta de transcrição oral, mas também como um brinquedo, um material lúdico de infinitas possibilidades. É sobre isso, com um toque excepcional de pessoalidade, que o Tipo Aquilo aborda nessa edição extra.


Eu tenho um caderno de caligrafia que deve ter sido feito em 1930 e alguma coisa. “Curso Graduado de Letra Manuscripta (sic)”, editado em Porto Alegre pela Selbach & Cia., um presente que guardo como um registro histórico de como as crianças brasileiras eram ensinadas a escrever. Contém exercícios de prática da mão inglesa (socorr), além de textos sobre Deus, pátria, família e tudo que uma criança da época supostamente precisava saber escrever. Contudo, a caligrafia, como ofício de criar letras bonitas, já vivia uma certa decadência; no começo do séc. XX, as tarefas mais comuns da escrita não dependiam mais de um mestre calígrafo, e algumas até podiam ser feitas usando a tipografia. Os instrumentos de escrita também se modernizaram, com o lápis e a caneta esferográfica tomando o lugar das penas. Por mais que se desejasse que o aluno aprendesse a escrever ipsis litteris aos modelos caligráficos, com o tempo, isso deixou de ser uma necessidade para a sociedade de consumo.
Já no começo do séc. XX, a tradicional mão inglesa inclinada passou a concorrer com a chamada “escrita vertical”. De origem francesa, era considerada mais fácil, econômica e recomendada por médicos-higienistas da época que viam uma correlação entre as letras inclinadas da mão inglesa e um aumento em casos de miopia entre crianças. Essa visão espalhou-se pela Europa, e obrigou os educadores ingleses a reverem sua letra de ensino, tornando-a vertical. Até o final da década de 1930, as duas escritas eram ensinadas no Brasil em estados diferentes, até a letra vertical sobressair como hegemônica. Essa “mistura” de mãos, com o tempo, virou as letras com que eu, você e nossas gerações aprenderam a escrever nossas primeiras palavras, e é “normal” que elas mudem de um estado para outro, ou de um material didático para outro, mostrando uma dificuldade em apontar como preponderante a mão inglesa vertical ou a francesa na escrita casual do brasileiro.


Os modelos de escrita usados atualmente são ainda mais “fáceis”, observando não apenas a necessidade da escrita na nossa sociedade, mas também o crescimento de uma abordagem continuada do ensinar a escrever. Em raras escolas, a escrita não é uma disciplina pontual da pré-escola, mas um conhecimento a ser refinado com o tempo, observando como cada aluno desenvolve a escrita da forma mais ágil e legível para si. A minha escrita, por exemplo, ficou mais ágil depois que eu abri mão daquele mantra de “não tirar o lápis do papel”; outras pessoas, no entanto, seguem com letras contínuas impecáveis — e eu morro de inveja de vocês. Aliás, posso assegurar que a pior época da minha escrita casual, em que eu perdi velocidade e várias explicações no quadro perderam-se ad infinitum, foi quando eu deixei minha letra parecida com a “letra de máquina”, ou “letra de bastão”, que corresponde aos desenhos comuns das fontes sem-serifa. Foram elas que os EUA tentaram ensinar em alguns estados, e eventualmente, retornaram aos modelos de caligrafia escolar tradicionais.
Outro erro da minha vida foi ter dado menos valor à poesia do que ela merece. Desde pequeno, eu já era uma criança chata “prometida” à lógica e à matemática, e isso acabou me tirando tanto o prazer de usar as palavras como brinquedo de criar versos, quanto o de usar as palavras como brinquedo de registrar e imaginar em um diário. Diário e poeminha era “pra menina”, diziam na época. Há um tempo, passou pela minha timeline o relato de uma aluna repreendida pelo professor por “perder tempo” fazendo letterings para as matérias em seu caderno, e isso me doeu, como um adulto que desenha letras e vê uma expressão criativa sendo podada a troco de nada. Aliás, até o Cadu criança-chata tinha uma pequena veia criativa pulsante, graças ao rock, o hip-hop e a cultura do graffiti, que nos anos 2000 encontraram-se no Nü Metal, algo que rende uma edição do TA por si só. Vez ou outra, algum verso de prova e última página de caderno tinha alguma “grafitada” minha, e aos poucos os amigos desenhistas de cada sala foram aparecendo e “competindo” pelos desenhos mais massa véio ao som de Linkin Park.


Antes que vocês pensem… não, eu nunca fui um grafiteiro de fato, nunca pintei uma unidade de muro. Só que, tão logo a cena do graffiti expandiu-se para além das grandes capitais, vários deles brotaram na minha quebrada natal, Taguatinga, como botões esperando a chegada da primavera. E eu ficava impressionado com a quantidade de cores e as diversas formas de brincar com letra em efeitos de volume e perspectiva, e logo queria trazer tudo isso para os humildes desenhos de letras que eu fazia. Se você pensou “hmmm, deve ter sido daí que o Cadu virou esse doido por desenhar letras”… é, pois é. Não consegui preservar nenhum desses desenhos, já que eu cresci menos apegado à minha infância do que a maioria das pessoas parecem ser.
Outra coisa que me tirou do seio da computação e me colocou nas tetas da maldade no caminho do design foram as divisórias de fichários rabiscadas com as marcas das bandas que eu gostava de ouvir, e gostava de reproduzi-las tão fielmente quanto possível. Um ensaio de alguém preocupado com branding, talvez? É difícil encontrar algum designer que não tenha tido alguma forma de expressão gráfica pessoal desde a infância. Desde o “desenhista da turma”, que geralmente fazia a camisa de formatura do terceirão, aos que se destacavam quando os trabalhos escolares envolviam alguma dinâmica de teatrinho, apresentação de slides, maquetes ou performances diversas. Feiras de Ciências eram momentos importantes para ganhar aqueles pontinhos a mais no boletim ao custo de transmitir algum conhecimento de forma criativa.

Contudo, a escola vem deixando de ser vista como um espaço lúdico, o que me preocupa bastante. Isso vem ao passo de um número grande de adultos frustrados exigindo um currículo escolar meramente utilitário, um tutorial de declarar imposto de renda, sem espaço para o desenvolvimento da criatividade. Isso nem é um problema apenas na educação pública; até nas escolas privadas, a ênfase em formar vestibulandos, ao invés de seres pensantes, tem levado a uma sociedade cada vez mais incapaz de sonhar por si e aceitar interpretações divergentes de uma literalidade normativa em diversas questões. A ausência da interpretação de texto nas redes sociais pode ser atribuída, em alguma parte, a uma vida onde só se brinca literalmente com brinquedos. Não se brinca com a comida, não se brinca com as letras, não se brinca com as roupas… e olha esse comportamento, que com Jesus, não se brinca!
Leitores mais antigos sabem que, mesmo em tempos de Internet e uma vida permeada por dispositivos eletrônicos, o ensino da escrita à mão na infância será sempre defendido nesta newsletter. A prática tem, como grande benefício observado em dezenas de estudos, um aumento significativo da coordenação motora fina, responsável com que possamos fazer operações precisas com as mãos. Só que falar da escrita é apenas o começo; do reino dos brinquedos com que não se brinca, as letras e a linguagem são perfeitos para ensinar sobre entender regras e, em seguida, subvertê-las… seja em prosa, verso, lettering, diário, ou o que mais a criança possa desejar, pelo puro prazer de brincar.
E eu sou feliz por uma criança chata como o Cadu ter entendido isso. (=
Sobre o newsletteraço
Como eu disse, eu não estou sozinho escrevendo sobre infância, memória e sonhos. Hoje, todos os escritores abaixo estão nessa ação coordenada para estimular a leitura e descoberta de novas newsletters, e como incentivo para mais pessoas brincarem com letras e palavras de forma periódica.
Victória escreve a resenhas que ninguém pediu
Lethycia Dias escreve a Uma mulher que escreve
Leon Nunes escreve a O Substack de Leon
Júnior Bueno escreve a cinco ou seis coisinhas
Fernando Alves escreve a Futebol no Fim do Mundo
Lívia Reis escreve a Colcha de Retalhos
Danilo Heitor escreve a Antes do fim
Paula Maria escreve a te escrevo cartas
Denise Gals escreve a Aprendiz de Escritora
Karine Canal escreve a Kverso
Patricia escreve a Uma com a Terra
Mia Sodré escreve a Querido Clássico
Recomendações
🎤 Podcast: Pistolando #169 – Letras que ensinam, um papo com o Prof. Sandro Fetter sobre tipografia, caligrafia e o ensino da letra escolar no Brasil.
🔗 Link: Primarium, um projeto global da TypeTogether de pesquisa, mapeamento de letras escolares ao redor do mundo e desenvolvimento de fontes baseadas nessas letras.
🇧🇷 Fonte brazuca: Letra Brasileira, de Sandro Fetter.
Escrito em 102325.506
A ideia de que poesia é coisa (ruim) de menina pegou até em mim. Cresci sem beber dessa fonte.
Sempre bom encontrar conterrâneos por aqui.
'O desenhista da turma, que geralmente fazia a camisa de formatura do terceirão' se apresenta!
Valeu pelas recomendações, Cadu. Curti demais o projeto Primarium. Vou usar algum material de lá pra criar um tema gratuito pro WordPress. É só o que eu faço, afinal, hehehe... Abraço!