Tipo Aquilo #92 – Andróides sonham com ovelhas azuis?
Reflexões sobre o designer e o criativo no mundo do algoritmo
Vocês lembram do do troca-troca de cartas entre escritores de newsletters? Ela está indo para a terceira edição, e o Tipo Aquilo desta semana é uma carta para uma das pessoas da comunidade. Mais especificamente, a
, autora, colunista no Delirium Nerd e produtora da newsletter . Mais uma vez, não fiquem acanhados, achando que estão lendo conversa dos outros; apesar de ser uma carta, a ideia é pegar um texto escrito pela Bia e continuar falando de tipografia com base nesse texto. Então, novamente, fique à vontade e aproveite esta penúltima edição do ano.Olá, Bia. Tudo bem com você? Espero que 2024 tenha sido um ano gentil contigo, e que 2025 seja generoso apesar de estarmos todos cronicamente online assistindo a muitos apocalipses ao mesmo tempo. Todos, menos a Jout Jout, mas não vou entrar nesse assunto agora. Primeiro, eu vou subverter uma regra do amigo secreto, que reza sobre pegar um texto da pessoa e discorrer sobre ele. Aqui, eu vou passear por algumas edições que você escreveu ao longo do ano pra escrever uma porção de coisas que talvez façam sentido no final. O motivo dessa subversão é que não tem como dizer que apenas um texto seu foi significativo nesse ano… aliás, vocês que não são a Bia e se importam com textos e reflexões oportunas sobre a vida online contemporânea, vão lá e assinem o Ovelha Azul.
Além de designer e tipógrafo, eu sou programador front-end. Há alguns anos, me definiria também como um entusiasta de tecnologia; só que esse mesmo mundo tem me deixado mais amargo com o tempo. Lembra quando várias big techs mudaram de marca para logotipos mais simples, com letras que prometiam mais “humanidade” para suas marcas? Só que, a partir daí, elas tornaram-se mais ferozes em seus movimentos anti-regulação e anti-concorrência, e colocaram dezenas de profissões e milhões de seres humanos vivendo em função das respostas binárias do tal do algoritmo. Geralmente, esse aqui é um espaço pra falar do mundo a partir do ponto de vista do design, do designer e — minha nerdice mor — da tipografia; só que o designer não está num lugar protegido nessa época do capitalismo tardio, Bia. Essa edição/carta tenta colocar essa classe dos designers junto a outras que estão perdidas nesse tiroteio global de algoritmos.
“The Corporation” (2003) é um documentário antigo, mas ainda longe de ser datado. Ele mostra como várias corporações usam um entendimento jurídico norte-americano de que pessoas jurídicas compartilham de direitos e proteções similares às de pessoas físicas. Com esse subterfúgio, elas praticam atos deliberados de ataque ao meio-ambiente, comunidades e o próprio sistema econômico, de forma a maximizar lucros e dividendos para acionistas. No final, ao compararmos as corporações com pessoas, elas mostram-se pessoas horríveis, que precisam de interdição para ontem… só que elas são empresas, então não podem ser interditadas porque… são pessoas. Desde então, tentamos dormir com essa contradição no ar, e o refinamento na arte de personalizar e despersonalizar corporações só tem aumentado.
Uma dessas táticas é o algoritmo, enquanto buzzword. Um algoritmo é nada mais que um conjunto de instruções para fazer algo e ter algum resultado. Sabe o caderno de receitas da sua avó? Cada receita é um algoritmo: pegue os ingredientes, faça cada passo certo e voilá, sua comida gostosa está pronta. O grande, robusto e sofisticado algoritmo, para o qual milhares de pessoas vivem em função, é uma série de condicionais para que algo seja (ou não) visto por você, baseadas no que as plataformas acham que você se interessa e em outros atributos definidos pelas próprias plataformas. Esses atributos podem existir para atender interesses externos (legislações e outras externalidades) e as regras das próprias plataformas. No fim, a novidade — que não é novidade — é que o trabalho de designers, publicitários, creators e artistas em redes sociais passa por um grande beija-mãos do que as próprias plataformas entendem como apropriado, bonito e moderno. Isso é algoritmo, o bode expiatório com que as redes sociais se despersonalizam quando necessário.
O tal do “algoritmo” não é uma consciência ou inteligência suprema, mas ele matou o mainstream. Ok, não o algoritmo sozinho; nesse caso, entenda algoritmo como o poder de influência das big techs na vida pessoal de 5,1 bilhões de habitantes do país Internet. A algoritmo criou 5,1 bilhões de formas diferentes de digerir a infinidade de conteúdo criado diariamente, ao ponto de que nenhum produtor de conteúdo que se preza cria para apenas uma plataforma. Citando a Bia, “não podemos mais falar de um grande rio principal, indubitavelmente sendo consumido por todos. A TV segue forte, mas ela mesma se adaptou a esse cenário: trechos de programas rodando pelas redes, interação ao vivo com comentários online, absorver estrelas nativas da internet”. Manter coerência e autenticidade do discurso, e a capacidade da pessoa reconhecer algo ou alguém entre algoritmos diferentes, tornou-se algo desejável entre artistas, profissionais criativos e marcas que não são plataformas.
E isso é um ponto a favor de quem não tenta ser um profissional algorithm-driven, um título maneiro de ostentar no LinkedIn, mas que não significa ser, de fato, alguém resolvendo um problema mais profundo do que exposição e alcance, ou lidando com mais do que grandes caricaturas das pessoas por trás de seus perfis. Nossas ferramentas clássicas de trabalho, como a pesquisa, o rascunho de ideias, a validação com usuários finais, seguem mais importantes do que olhar para o que um algoritmo aprova ou não. Todas as versões dos algoritmos, as que já passaram e as que entraram no lugar fazendo promessas não cumpridas de que você veria mais dos seus amigos, têm algo em comum: elas olham para o passado. Elas sabem o que uma pessoa fez, disse, como reagiu a um estímulo, mas elas trabalham sempre com o passado; sais pas, com uma versão reducionista do passado alheio.
É nesse ponto que um texto recente da Bia, sobre a anatomia da subversão, entra em consonância com um texto recente de outra escritora, a type designer Keya Vadgama, em que ela manifesta seu descontentamento em ter que criar conteúdo e até estratégia pensando em engajamento. Como se não bastassem seus requisitos inatos, as “sugestões” para conseguir likes e shares fazem a tarefa de criar projetos pessoais e corporativos ainda mais difícil. Chega ao ponto de que a coisa mais subversiva que um designer possa fazer para si é… esquecer o algoritmo. Testar possibilidades baseando-se na intuição, no que uma boa biblioteca de livros e referências, e no que a experimentação por livre e espontânea vontade podem oferecer. De novo, citando a Bia, “em um mundo online, subversivo acontece fora da tela”.
Ainda em sintonia com a onda de fazer mais coisas baseadas em feeling, ou confiar no próprio taco, o Toronto Design Directory fez há algumas semanas a décima edição do Cool Concept, um evento que chama designers para apresentar casos de sucesso de coisas que eles fazem para si, sem ser para um cliente. Existir dez edições do Cool Concept ajuda a mostrar duas tendências bem interessantes: a de que muita gente quer fazer coisas legais, fora do escritório e das limitações impostas por clientes; e a de que muita gente se interessa mais por isso, na verdade. Assumir-se ingenuamente como uma pessoa que quer fazer coisas legais, antes de designer, escritor, publicitário ou qualquer outra profissão, é o que motiva pessoas a fazerem coisas legais, que tiram o mundo da mesmice. Fazer coisas legais significa olhar para si, para uma existência completamente diferente das caricaturas feitas por andróides de algoritmos, e mais completa de substância. Não a daquele filme, isso fica pra outro dia…
Tendo dito tudo isso, tenho duas coisas a dizer.
Primeiro: Bia, eu sei que você faz um monte de coisas, e espero que todas elas sejam legais pra você como é o Ovelha Azul. Não foi a coisa mais fácil do mundo escrever pra você, porque quase todo texto seu tangencia algo importante para o universo criativo. Não tinha como escolher só um texto, então espero que tenha gostado dessa pequena costura. (=
Segundo: cumprindo a segunda parte do troca-troca de newsletters, a minha recomendação, que ilustra essa edição, é o artista brasileiro Alvaro Naddeo, nascido em São Paulo, morando atualmente em Los Angeles. A Bia sempre destaca um artista diferente em cada edição, então eu fiz algo similar, que destaca as belas aquarelas de Naddeo num contexto distópico atual.
No mais, que tempos melhores estejam à frente te esperando, Bia. Feliz Natal, e um belo 2025 para você.
Um grande abraço,
Cadu
Recomendações
🎥 Vídeo: Artist Studio Tour: Alvaro Naddeo for 'IndigNation', (em inglês) uma visita ao ateliê do artista destacado nesta edição.
🔗 Link: Plau Type Trends 2025, uma análise de tendências tipográficas da turma do estúdio brasileiro Plau para o próximo ano.
🇧🇷 Fonte brazuca: Momento Display, de Dan Schunck.
Escrito em 101976.548
Que sorte a minha que você me tirou! Adorei a costura de textos, as aquarelas (antes de você falar no final eu já estava salvando o nome) e esse TITULOO AA
Feliz Natal e um 2025 leve e cheio de arte pra você 💜
Gostei demais do artista! E da newsletter também.